Jorge Luiz Souto Maior
“Nos deram um espelho e vimos um mundo doente”
(Legião Urbana - Renato Russo)
A COVID-19 provocada pelo novo coronavírus e que se alastra pelo mundo no grau de uma pandemia tem exigido muito esforço da inteligência humana, não apenas no que se refere à busca da cura (o que fica restrito a poucos cientistas), como também na formulação de estratégias de enfrentamento dos problemas sociais e econômicos decorrentes.
No primeiro aspecto, por mais que cada um de nós queira dar algum palpite quanto ao que representa a pandemia e como se deve agir diante dela, não há como, concretamente, fugir das orientações daqueles que dedicaram suas vidas aos estudos epidemiológicos e que, certamente, estão verificando os dados concretos e as experiências relativas ao novo coronavírus.
Essa solução, no entanto, gera implicações econômicas que têm atraído grande diversidade de análises. Em muitos debates, a preocupação econômica se sobrepõe à racionalidade médica e alguns (poucos, é verdade) vão até o ponto de questionarem a própria premissa da necessidade do afastamento social.
Não são esses, no entanto, os pontos que me impulsionam nesta reflexão.
Queria pôr em destaque duas preocupações que aparecem, com certa carga de unanimidade, nas diversas falas, mas que trazem consigo uma contradição insuperável:
a) o que fazer com a situação de milhões de pessoas que, dado seu estado de miserabilidade, de exclusão ou informalidade, não têm condições de sobreviver com o isolamento decretado;
b) como voltar o mais rápido possível à normalidade.
Ao se reconhecer que existem milhões de pessoas que não têm condições de sobreviver no isolamento, a questão que se coloca não é se o isolamento é devido ou não, ainda mais chegando ao ponto de afirmar que o fim do isolamento é a única forma de salvar essas pessoas, ou que quem é a favor do isolamento é egoísta, ou, ainda, que “isolamento só vale para classe média que tem geladeira cheia”.
O que se deve questionar é o que foi feito historicamente para que tantas pessoas em nossa realidade estejam nessa situação, sendo que ao se realizar essa análise fica excluída, necessariamente, a preocupação em torno da volta à normalidade.
A pandemia da COVID-19 trouxe complicações econômicas emergenciais graves, mas, em outros aspectos, apenas acelerou processos de deterioração social, política, econômica e até humana que estavam disseminados em nossa realidade e que muitos se recusavam a ver.
Assim, se, por um lado, a pandemia representa, em si, um grave problema, que nos desafia de forma emergencial, por outro, nos obriga a visualizar a realidade em que vivíamos, para que possamos buscar soluções que projetem para um futuro bem diverso da “normalidade” do passado.
A mudança brusca das práticas diárias fez com que situações do convívio social que estavam em estado de invisibilidade passassem a ser visualizadas.
Mas, no fundo, o que está em questão é a própria concepção de condição humana. Dito de outro modo, diante de uma situação de crise existencial tão profunda, o que se coloca em questão é a nossa capacidade de apreensão dos valores essenciais à convivência humana a partir do postulado da razão.
As tragédias nos colocam diante de nós mesmos, desafiando-nos a responder à indagação fundamental: quem somos nós?
Do ponto de vista da organização sócio-político-econômica, o que se perquire é, então: qual sociedade queremos, para quais seres humanos?
Falemos de forma mais concreta sobre isso, tratando de uma questão central: o trabalho, ou a divisão social do trabalho.
O isolamento social implementado mundialmente como modo de contenção do contágio da doença COVID-19 permitiu que se percebesse:
1) a centralidade do trabalho: sem o trabalho a economia não subsiste. Não há tino para os negócios, não há competência gerencial, não há inteligência empreendedora e não há astúcia em investimentos e comércio que, de forma generalizada, façam a economia girar sem envolver o trabalho;
2) que o trabalho é uma atividade humana: por mais que tantos, durante muito tempo, tenham tentado, como forma de desvalorização da força de trabalho, dizer que o trabalho acabou ou que o trabalho humano foi suprimido pelas novas tecnologias, resta, agora, evidente que o trabalho continua central na economia capitalista e que o trabalho é uma atividade dos seres humanos, dos trabalhadores e das trabalhadoras;
3) que a riqueza advém essencial e estruturalmente do trabalho: o empobrecimento generalizado pela supressão do trabalho é a demonstração cabal de que a riqueza social provém do trabalho;
4) que o trabalho não é mera força de trabalho ou mercadoria de comércio: quando pessoas aplaudem trabalhadores e trabalhadoras que, durante a pandemia, continuam em atividade para salvar vidas, fica visível que o trabalho é uma ação humana e não mera força de trabalho, no sentido de uma peça de engrenagem. Com a contratualização das relações de trabalho que estruturou o modo de produção capitalista, o trabalho foi reduzido a força de trabalho e o seu valor determinado pelas regras econômicas da comercialização de mercadorias. Essa prática, apesar do alerta feito no Tratado de Versalhes, nos impeliu a ver apenas o resultado do trabalho, sem compreender que há seres humanos por trás do trabalho e que a quantificação econômica do trabalho, seguindo padrões de mercado, podem conduzir a quem vive da venda da força de trabalho a condições subumanas, como verificado, historicamente, sobretudo, nos países periféricos e, de forma bastante evidenciada, no Brasil, desde as alterações legislativas e jurisprudenciais introduzidas desde meados da década de 90, atingindo o ponto profundo da “reforma” promovida em 2017;
5) que a riqueza socialmente produzida não tem sido devidamente distribuída: a visualização do alto risco de disseminação incontrolável da pandemia em razão do enorme número de cidadãos e cidadãs vivendo em condições subumanas, apesar de serem trabalhadores e trabalhadoras (com emprego ou na informalidade), atesta o quanto a riqueza historicamente produzida pelo trabalho humano beneficiou, prioritária e desproporcionalmente, os detentores dos meios de produção, que, contratualmente, compraram no comércio, atendendo a lei da oferta e da procura, a “força de trabalho”;
6) que a divisão sexual do trabalho revela a lógica de opressão: a visibilidade dada ao trabalho doméstico e a compreensão, agora, enfim, possível, de que, historicamente, esse trabalho tão importante e fundamental à sobrevivência humana foi direcionado às mulheres, que cumpriram, então, o papel de realizar, sem qualquer contraprestação, o trabalho essencial à reprodução da “força de trabalho”, permite compreender que toda a lógica da venda mercantilizada do trabalho, destinada à acumulação de capital e que gera a pauperização da classe trabalhadora, não é mero resultado de algum tipo natural de ajuste de vontades, mas de submissão no contexto de estado de necessidade determinado por relações sociais historicamente construídas a partir de muita força e opressão, sendo que, no ambiente doméstico, a cultura do machismo se introjeta no seio da classe trabalhadora e retroalimenta a lógica produtiva do capital;
7) que as relações humanas não devem ser determinadas pelas mercadorias: com o afastamento do cotidiano e a visualização das pessoas e, sobretudo, diante da compreensão de que o que ocorre com uma pessoa acomete a todas as demais, tem-se a oportunidade de compreender que a condição de vida do(a) outro(a) precisa ser visto como uma extensão existencial do próprio eu. Dentro dessa perspectiva, não são os bens mercantilizados, o status e os interesses individuais, que desconsideram a(o) outra(o) ou a(o) toma apenas como uma espécie de escada e, na sequência, como espectador(a) do sucesso particular obtido, com ares de demonstração de superioridade. Como já se disse, não cabe conceber uma sociedade em que somos impelidos ao consumo desenfreado de bens que não precisamos, para mostrar para pessoas com as quais não nos preocupamos;
8) que o capital é o dinheiro que se valoriza no processo de produção e que só se concretiza com a circulação: essa percepção está posta na própria “solução” trazida por muitos para o enfrentamento da crise econômica gerada pela redução da produção advinda da política de saúde pública no contexto da pandemia, a redução de salários. Ora, a redução de salários não salva o empreendedor da dificuldade econômica, podendo, quando muito, adiar a falência, dependendo do quanto este possua de capital acumulado, pois a mera redução do custo não é capaz de gerar capital. Com essa visualização concreta é fácil compreender que a redução de salários, posta de forma generalizada, reduz – e até elimina, em muitos casos – o consumo, destruindo capital e fazendo com que a vantagem da diminuição do custo (que para grandes detentores de capital e produção em massa diversificada – que são muito poucos) se perca no momento da implementação da providência e se alongue no tempo de forma indeterminada, sem perspectiva, portanto, de retomada do processo de valorização do investimento feito na produção, a não ser para muito poucos, o que gera a formação dos monopólios, o empobrecimento da classe média e a miserabilidade plena da classe trabalhadora (nela considerados os excluídos, discriminados e oprimidos de toda espécie).
Pois bem, se quisermos, efetivamente, sair da situação trágica em que nos encontramos para uma realidade melhor, superando os modos de convívio que geram os problemas sociais e humanos que agora conseguimos perceber, teremos que ser capazes de admitir o diagnóstico. Do contrário, corremos o risco de, superada a comoção social, voltarmos à “normalidade” de uma sociedade doente, onde todas essas constatações restam submersas e com elas nossa própria condição humana.
Aliás, é exatamente a explicitação do modo de ser social determinado pelo processo de produção que o isolamento social proporciona que explica a pressa que muitos têm para que as coisas voltem ao “normal”. Há, portanto, no fundo dessas iniciativas uma raiz ideológica.
O problema, para o conjunto dos seres humanos, das “soluções” buscadas para acelerar o processo da volta à normalidade é que elas: a) potencializam os riscos à vida; b) desprezam a razão, como elemento constituinte da condição humana; c) agravam os problemas sociais e econômicos, prolongando-os para além da crise; d) promovem, pelo modo como que têm sido tentadas, instabilidade política e democrática.
Mas os elementos concretos da crise nos permitem enxergar tudo isso com extrema clareza, sobretudo, quando analisamos o tema central que é o trabalho humano.
Cumpre perceber, inicialmente, que o argumento de defesa da sobrevivência das pessoas (na informalidade) que não podem viver sem trabalho, para justificar a aceleração do processo de retorno à “normalidade”, ou seja, para rejeitar o isolamento social, embora possa parecer, à primeira vista, altruísta, de fato desconsidera a importância da vida dessas pessoas, que, por conta da sua necessidade, podem ser conduzidas ao risco, para salvar uma economia que, como verificado historicamente, beneficiou a muito poucos e que as excluiu. A origem da pauperização e da dependência da venda da força de trabalho (sem sequer respeito a direitos mínimos) resta, assim, esquecida, naturalizada e, por fim, apresentada como justificativa não só para manter o processo de exploração, como também para transformar a exploração em uma grande benesse.
Em seguida, importante considerar que a acelerada volta à “normalidade”, sem elementos científicos que garantam a preservação da vida, potencializam os riscos daqueles(as) que voltam ao trabalho, mas também de todas as demais pessoas, independente de sua condição social e econômica, vez os contatos se multiplicam automaticamente. Não há eficácia em isolar uns se os que não estão isolados mantêm contato com aqueles.
A pressa, decorrente de uma preocupação estritamente ideológica, ou de ordem econômica, ou para satisfação de interesses pessoais, tende a aumentar e prolongar o sofrimento coletivo, ainda que aparente minimizar os dilemas financeiros de forma imediata.
Porém, o mais grave de tudo isso é a disseminação (e a assimilação, favorecida pelo estado de necessidade) de modos de equacionamento que constituem um desprezo ao pensamento lógico e à razão. No momento em que nos colocamos de frente com a precariedade da existência, o efeito mais humano e esperado é o do apego à razão e ao conhecimento, para tratar do que realmente importa, a preservação da vida, o que requer a formação de uma sociedade compatível com essa apreensão.
Se mesmo nesses momentos não conseguimos recobrar a relevância da razão e do conhecimento, não há muito o que se possa esperar de nós mesmos como sujeitos da construção de um futuro melhor.
A forma como lidamos com a pandemia, portanto, diz mais sobre nós mesmos do que sobre o vírus.
Isso nos conduz, mais uma vez, às questões postas inicialmente: Que seres humanos somos? Que valores humanos consideramos essenciais? Quais as práticas que preconizamos e nos engajamos para concretizar esses valores? Que sociedade queremos, para quais seres humanos?
Olhando esses questionamentos do ponto de vista das relações de trabalho, o pessimismo se impõe.
Ora, as soluções institucionalizadas até aqui correm ao largo dos efeitos mais visíveis da pandemia: essencialidade da solidariedade; centralidade do trabalho; e indispensabilidade e visibilidade de quem executa o trabalho.
Isto porque, em vez de proteger quem trabalha, até como forma de agradecimento real e efetivo, as MPs agravam as condições de trabalho, permitindo redução de salários, aumento da jornada de trabalho, ausência de equipamentos de proteção etc, como já enunciado exaustivamente em outros dois textos[i].
Além disso, ao apresentarem, para as empresas em dificuldade econômica, a solução da redução de salários (o que, como já demonstrado, não resolve o problema), as MPs estabelecem o acordo individual como método de se atingir esse resultado. Ocorre que o acordo individual em relações de trabalho, sem um patamar mínimo, conduz a uma superexploração do trabalho destrutiva de toda organização produtiva, ao mesmo tempo em que afronta todos os padrões da ordem jurídica constitucional, trabalhista e mesmo cível.
A Constituição não estabelece a redução de salários como objetivo da República, muito pelo contrário. E, em situações excepcionais (que não se encaixariam no contexto de uma pandemia, que exige saídas coletivas, dirigidas e financiadas pelo Estado*), para se chegar a esse resultado seria necessária a presença dos sindicatos.
Do ponto de vista do Direito do Trabalho, o contrato individual só tem sentido para ampliação das condições legalmente estabelecidas, até porque, segundo os próprios parâmetros do Direito Civil não há contrato entre pessoas desiguais, cuja vontade expressa, em estado de necessidade, compreende-se viciada. Preconizam-se saídas civilistas para as relações de trabalho, mas sequer se respeitam os padrões do Direito Civil.
O problema, portanto, de tentar impor essa saída da redução de salários é que ela só pode se institucionalizar com desprezo direto e expresso dos preceitos jurídicos e da própria lógica humana.
Então, quando se a tenta justificar a redução de direitos, o espetáculo que se assiste é o da redução do patamar da condição humana expressa, por exemplo, na perda da coerência argumentativa.
No julgamento sobre a constitucionalidade do rebaixamento de salários por acordo individual, previsto nas MPs, o que se disse foi que não há sindicatos suficientes para atender à urgente demanda de negociação (e houve até quem dissesse, expressamente, que os sindicatos não são probos o bastante para o cumprimento de tal tarefa). No entanto, meses atrás, quando a “reforma” trabalhista buscava impor o “negociado sobre o legislado”, para, assim, favorecer a redução de direitos, o que se disse foi que os sindicatos, por estarem bastante fortalecidos e estruturados, seriam os interlocutores maduros e ideais para a formalização de negociações coletivas com conteúdo de direitos abaixo dos parâmetros legais.
Nesse contexto do paradoxo estabelecido entre o reconhecimento da importância do trabalho e o aprofundamento oportunístico da política de rebaixamento jurídico e econômico do trabalho, ainda se avizinha a generalização da precarização das relações de trabalho por meio da criação da figura do denominado contrato verde e amarelo, que seria uma fórmula paralela de emprego, com nova redução de direitos e, desta feita, sem necessidade de negociação de nenhuma espécie (nem coletiva, nem individual).
E, diante de tudo isso, assiste-se um movimento contraditório de boa parte da grande mídia e da classe dominante que, perante arroubos autoritários, saem em defesa da Constituição e da democracia, mas que admitem (e até aprovam e incentivam, expressamente) a desconsideração plena da Constituição quando o tema é a redução de direitos trabalhistas, o que os faz integrantes de uma “parceria” complexa com aqueles a quem dizem combater, tornando-os, de certa forma, cúmplices do efeito mais amplo da destruição plena da Constituição e do próprio regime democrático. Alianças circunstanciais e parciais conduzem a uma relação promíscua que fortalece, no todo, o pretenso opositor.
Fato é que a Constituição e a democracia se veem gravemente ameaçadas quando o poder midiático e econômico, por interesse localizado, faz aliança com as forças antidemocráticas, ainda mais porque não é possível vislumbrar um movimento popular de defesa da Constituição e da democracia quando essas instituições já foram desconsideradas na perspectiva dos direitos populares. Além disso, é inconcebível a formação de uma aliança das classes populares com a grande mídia e as classes sociais que desconsideraram, expressamente, a necessidade do respeito aos direitos sociais.
Em suma, o jogo posto de afrontas reincidentes à Constituição e à democracia combinadas com afagos de redução de direitos trabalhistas, ao que se chega desconsiderando a Constituição e o regime democrático, deixa os apoiadores da destruição de direitos sem argumentos eficientes para a defesa da Constituição e da democracia. Trata-se, pois, de um jogo em que quem aceita as regras impostas por quem as estabeleceu previamente não tem como sair ganhando.
Assim, diante das respostas dadas àqueles(as) cuja relevância do trabalho ressaltamos, a indagação inevitável é: que espécie de condição humana estamos exercitando?
A mesma indagação se impõe, quando, tratando das condições de quem está trabalhando, com aumento de risco, para salvar vidas, se verificam as proposições das MPs 927 e 936, tais como: trabalho em horas extras (sem sequer ser remuneradas, já que integradas a um banco de horas); ausência de garantia de emprego; afastamento da configuração do acidente do trabalho em caso de ser acometida pela COVID-19; exclusão da responsabilidade do Estado na fiscalização da entrega efetiva de equipamentos de proteção etc.
Vejo muitas pessoas projetando análises sobre o pós-pandemia, mas se não formos capazes de produzir pensamentos lógicos, sinceros e racionais sobre a realidade que está à nossa frente, no presente, não temos possibilidade alguma de elaborar equacionamentos sobre o futuro.
Se, enfim, visualizamos a relevância e as dificuldades do cuidado e do trabalho doméstico e se enxergamos a sobrecarga de trabalho das trabalhadoras (inclusive no teletrabalho) que decorre do acúmulo de tarefas domésticas que lhe foram impostas historicamente, mas não admitimos, já, que se confira a esse trabalho, ao menos, uma igualdade plena de direitos e não alteramos (sobretudo homens) as condutas no trabalho, em casa e nas relações sociais, estamos condenados a continuar reproduzindo a lógica opressiva da divisão sexual do trabalho, como destacado na necessária advertência feita por Helena Pontes dos Santos[ii]. Se, enfim, estamos vendo os(as) entregadores(as) que estão por trás das mercadorias que chegam ao nosso encontro e até aplaudimos esse(as) trabalhadores(as), reconhecendo a importância do trabalho que realizam, mas não somos capazes de dizer o óbvio, qual seja, que tais pessoas prestam serviços nos moldes clássicos de uma relação de emprego (ainda que com inovadoras formas de dissimulação), sendo, por conseguinte, possuidoras dos direitos trabalhistas (e humanos) constitucionalmente garantidos, não temos como vislumbrar uma organização futura do mundo do trabalho dentro do projeto mínimo da seguridade social. Se exaltamos o trabalho das(os) enfermeiras(os) nos hospitais, mas consideramos perfeitamente normal (sem qualquer implicação em termos de ilicitude) que essas pessoas trabalhem 15 horas por dia, não temos como projetar qualquer modelo de sociedade baseado na centralidade do ser humano.
Fato é que, por ora, estamos negligenciando a nossa capacidade de sermos humanos e essa constatação obsta a consideração de que seremos capazes de conceber uma sociedade futura na qual os problemas descortinados pela pandemia sejam enfrentados, valendo destacar que onde a razão é desprezada o ódio e a intolerância encontram campo fértil para proliferar.
A esperança é a de que se antes toda essa desumanidade se escorava em argumentos supostamente técnico-econômicos e na inevitável adaptação aos comandos de uma tal modernidade, apontando-se os contrários como “ideológicos” e retrógrados, agora as explicitações fáticas que atingem de forma concreta o convívio social permitem deixar às claras os personagens, as suas ideias, os seus métodos e os seus propósitos.
Resta evidenciado que não estamos diante de nenhum tipo de inexorabilidade determinada por forças econômicas superiores alheias à vontade humana. Fica nítido que estamos diante de opções e estas não serão mais ocultas no argumento da imposição das leis do mercado.
Queiramos, ou não, estamos no momento da consciência, em que serão, inevitavelmente, medidas as responsabilidades por atos e ideias. No momento em que se perde o perdão da alienação, da falta de compreensão e da impossibilidade de reação.
Por vias tortas, por conta de intenso sofrimento e por mais paradoxal que pareça, a esperança que emerge neste momento é a de que a doença nos cure!
São Paulo, 21 de abril de 2020.
[i]. https://www.jorgesoutomaior.com/blog/mp-927-da-pandemia-ao-pandemonio
https://www.jorgesoutomaior.com/blog/mp-936-do-pandemonio-a-razao
[ii]. https://www.jorgesoutomaior.com/blog/agora-falando-serio-ou-apenas-o-obvio
(*) Sobre medidas imediatas para o enfrentamento da crise, vide: https://www.change.org/p/governo-federal-37-propostas-para-enfrentarmos-com-responsabilidade-o-coronav%C3%ADrus-e-suas-consequ%C3%AAncias-769092a5-bdd0-4c46-bf36-116be41cea79?recruiter=1060888375&utm_source=share_petition&utm_medium=copylink&utm_campaign=share_petition&utm_term=share_petition (nota inserida em 22/04/20, às 7h50)