Por Helena Pontes dos Santos(*) (**)
"Para quem tem uma boa posição social,
falar de comida é coisa baixa.
É compreensível: eles já comeram."
(Bertolt Brecht)
Começa a quarentena. Os trabalhos se transformam, assim, rapidamente, em teletrabalho obrigatório (isso se você quiser ficar de quarentena e não se expor e aqueles com quem convive ao perigo de morte).
O capítulo II-A da Consolidação das Leis do Trabalho introduzido pela contrarreforma trabalhista, também ele, é rapidamente ignorado e relativizado em boa parte das esferas do serviço público e da iniciativa privada para obrigar empregados, servidores e “autônomos” que trabalham subordinados a, do dia para a noite, começarem a realizar seus trabalhos em home office, independente de terem ou não equipamento para tal, sem receberem nenhum auxílio nesse período considerando gastos de equipamentos próprios, aumento de consumo de luz, troca de internet para corresponder às necessidades do empregador; enfim, uma infinidade de despesas que devem ser suportados pelos empregadores ou, no caso de servidores públicos, pelo Estado. Nunca, em momento algum, deveria ser suportado pela pessoa que vive da venda de sua força de trabalho.
Nesse ponto, muitos não irão se convencer de que é necessário prazo maior do que o de 48 horas, previsto do art. 4º da Medida Provisória 927, visto que é só trocar o lugar de prestação de trabalho. Qual a diferença de casa para o home office que se tem em casa, aquele quarto de visita, da bagunça, não é mesmo? Bem, para começar, nem todas as pessoas trabalhadoras têm esse espaço “ajeitado” para tal e muito menos com toda a aparelhagem necessária. Há, no entanto, outra questão importante que algumas pessoas tiveram que encarar nesse período e se preparar nessa fase de quarentena: o que fazer com as crianças e com os idosos?
As escolas fecharam e as crianças foram colocadas em casa aos cuidados de suas mães e pais (cabendo essas reflexões a outros arranjos familiares que não os tradicionais ou nucleares). Na sociedade patriarcal, a divisão do cuidado das crianças sabemos que se traduz em horas de brincadeira e bagunça da casa com o papai enquanto a mamãe vive atarantada com crianças de diversas idades, inclusive marmanjos, sob sua tutela. Sim, há exceções, mas estamos falando de regras! Há, nisso, o problema também que se relaciona a alimentação das crianças e também a capacidade das casas populares de comportarem todos os seus membros, incluindo crianças em idade escolar, o dia inteiro em confinamento.
Os idosos, grupo de risco da covid-2019, precisam de auxílio para compras, bem como para uma infinidade de tarefas no preparo para o isolamento: desde realizar as compras no mercado ou garantir de alguma outra maneira mantimentos, até a realização do próprio trabalho doméstico nesse momento. Também tem a questão de manutenção de afetos em período de solidão (depressão atinge 11% dos idosos entre 60 e 64 anos, segundo o IBGE)[i].
Se o quadro já não era bonito até aqui, os silêncios absurdos das normas o pioram: o Capítulo II-A da CLT, assim como a MP 927 em seu art. 4º, são omissas ao tratar controle de jornada em teletrabalho. Deixando um hiato nesse particular e não prevendo a obrigatoriedade de redução da jornada de trabalho, bem como das metas de produção, não só nesse período (e principalmente nele), mas sempre (visto que essa modalidade de trabalho acaba trazendo mais ônus para a pessoa trabalhadora), reforça a ideia falaciosa de que o benefício é todo da pessoa trabalhadora que passa a não ser subordinada simplesmente por estar trabalhando de sua casa. A forma como se trata o teletrabalho geralmente é de que, em tempos normais, principalmente, é benesse concedida principalmente a mães, como é abertamente difundido, pois assim elas teriam mais tempo para cuidar de seus filhos (como se isso não se desse por ausência de compromisso coletivo com a criação das pessoas de amanhã). Há, inclusive, ambientes nos quais a produtividade exigida é maior do que no ambiente de trabalho, corroborando com esta ideia falsa.
Isso significa e tem resultado em uma multidão de mulheres exaustas em menos de um mês de quarentena, ao passo que observamos a mesma cobrança de prazos em nossos trabalhos e cursos, atividades acadêmicas e a pressão de ver cursos on-line diversos sendo disponibilizados. Enquanto isso, nós, mulheres, sem termos condições de participar de nada disso ou, pior, tendo que assistir homens extremamente machistas por omissão ou ação, aproveitarem-se desse momento e de nossos trabalhos para, mais uma vez, colocarem-se em posições de destaque e privilégio nas quais não estariam se efetivamente trabalhassem a mesma quantidade de horas no trabalho doméstico e de cuidado, como as mulheres têm feito nesse período excepcional da história recente.
Deste modo, vemos o trabalho de cuidado com crianças e idosos que poderia e deveria ser social - em especial se tivéssemos a coragem de decolonizar nosso pensamento e agir para além de verborragia acadêmica - ser arremessado, sem mais nem menos, nas costas largas de todas nós. A classe faz, sem dúvida, com que o peso dessas responsabilidades seja sentido de modos diferentes, afinal, imagine, não é muito mais tranquilo o ato de cuidar de uma pessoa de idade que teve/tem acesso a bons médicos, não teve seu corpo moído em trabalhos de desgaste físico quase insuportáveis, que se alimenta todos os dias bem (tende a ter uma imunidade muito melhor do que a imensa maioria da população brasileira, portanto), tem uma casa própria e bem estruturada, do que lidar com o cuidado de quem não goza desta situação confortável?
Porém, para além de uma questão “pessoal” das mulheres ou privada (e vejamos que há muitos anos as feministas nos lembram que os problemas “pessoais” ou “privados” são políticos, acima de qualquer coisa, e a noção de ideologia marxista também aponta no mesmo sentido), estamos diante do aprofundamento de três projetos presentes na agenda neoliberal:
1) ensino à distância para crianças de todas as idades e adolescentes, com transferência da responsabilidade da educação do Estado para a família, ou seja, para as mães, avós, tias, irmãs mais velhas; fim dos postos de trabalho na educação e precarização ainda maior no magistério, cuja categoria é composta por maioria de mulheres;
2) com a destruição, que segue curso, da Previdência Social, a transferência da responsabilidade para a família do cuidado das pessoas idosas, tanto material quanto econômica, fato que, mais uma vez, sobrecarrega filhas e noras, em regra;
3) o teletrabalho sem limites e o desmonte de uma regulamentação que proteja a pessoa trabalhadora minimamente, sendo “concedida” como verdadeira graça do patronato e não como sendo meio de impor jornadas ainda mais exaustivas, aproveitando-se da confusão entre local de labor e lar, fazendo com que a jornada de trabalho vá se arrastando dia (e noite) afora, sem qualquer fiscalização possível.
O que estou me propondo aqui a abordar é muito óbvio e, para quem acompanha a História, batido: a normalização da sobrecarga e superexploração de mulheres, pessoas negras, que não se adequam à heteronomatividade, neste período de quarentena significará, como constantemente é apontado pelas feministas (em especial as amefricanas e interseccionais) retrocesso para toda classe trabalhadora.
O momento deveria ser de repensarmos nosso modo de vida, de criticarmos o sistema e estarmos atentos às perversidades que emergem nesse momento de crise. Ao contrário disso, no entanto, fomos absorvidos por uma lógica opressora, por um se mover ideologicamente programado pelos algozes de nossa classe.
Observamos uma quantidade imensa de lives acontecendo sem a participação de mulheres, pessoas não-brancas, não-binárias, periféricas e poucos de nós se questionam diante disso. Aliás, fica aqui uma pergunta: como as pessoas têm coragem de aceitar participar de atividades como essas em canais excludentes, que nunca trazem pessoas dissidentes para socializarem seus conhecimentos e vivências? Como ser aliado de quem age com tamanho preconceito na construção de espaços de repercussões de ideias?
Pessoas que criticam de um lado a ideia defendida por empresários e políticos a seus serviços de que a economia não pode parar, mas não observam que seguem numa produção desenfreada de artigos, de palestras, de lives, num grande “segue baile” - ou “siga la pelota”, como queiram - para os problemas concretos desse momento histórico em que muitas pessoas gostariam de parar, mas não podem!
As mulheres vêm insistentemente apontando sua exaustão e não é para menos, pois estão, afinal, assumindo o trabalho que o Estado deveria constitucionalmente se responsabilizar, com crianças e idosos, porém que nesse momento se torna praticamente impossível. Exigir de quem está com a tarefa de cuidar e auxiliar nesse momento crianças e idosos que trabalhe e produza intelectualmente é cobrar trabalho impraticável para qualquer ser humano.
Vejam que não estou apontando simplesmente a dificuldade de conjugar vida acadêmica, teletrabalho, trabalho doméstico, maternidade e o cuidado de nossos anciãos (nossas bibliotecas vivas). Isso nós já fazemos há muito tempo. O problema é o fazer agora em confinamento, com total omissão do Estado e sem a possibilidade de contar com auxílios externos que a autogestão de mulheres historicamente proporcionam.
Enquanto há pessoas fazendo uso desse período para angariar likes, se rendendo à sociedade do espetáculo e toda sua lógica perversa de produtividade, de imagem e seu discurso individualista e egocêntrico, tão típico da masculinidade tóxica, há mulheres exaustas em toda parte, mas assim como para quem tem uma boa condição social falar de comida é coisa baixa, para quem não tem que realizar serviço doméstico e de cuidado obrigatório e gratuito também o é, como me apontou uma brilhante pesquisadora hoje. Voltamos aqui a máxima que aponta que a mulher está para o proletariado como o homem está para o parasitário burguês, não?
Ao seguir com suas atividades sem olhar a sobrecarga do trabalho feminino, participando de lives, cursos, conversas por aplicativos diversos com os parças, o que estão os homens se não aproveitando um momento de férias? Como repetem as médicas e médicos, devemos lhes lembrar que quarentena não é férias, mas momento de recolhimento, reflexão e cuidado com os outros seres humanos?
O modo como venho olhando certos setores de uma classe média letrada e acadêmica se movimentando nesse momento me incomoda, pois vêm tocando suas vidas e atividades nesses dias sem notar a responsabilidade que têm para o reforço de uma vida que não vale a pena ser vivida! Abraçam-se e defendem a lógica do que nos torna parte em um quadrado, cada vez mais frio nos necrotérios dos vivos.
Para além do grande individualismo nosso de cada dia, para além do discurso meritocrático masculino-racista-cisgênero-heteronormativo, tem alguém aí? O problema não é a covid-2019, mas não aproveitarmos esse momento para nos rever.
Vem cabendo a muitos, o que lamento, os versos finais do poema Não Somos os Melhores, de Thiago de Mello:
"É repetir: melhor é a nossa causa.
Mas no viver da vida, a vida mesma,
quando é impossível disfarçar,
quando não se pode ser nada mais
do que o homem que a gente é mesmo,
na prática cotidiana da chamada vida,
que é a verdadeira prática do homem,
fomos sempre e somente como os outros,
e muitas vezes como os piores dos outros,
os que estão do outro lado,
os que não querem, nem podem, nem pretendem
mudar o que precisa ser mudado
para que a vida possa um dia
ser mesmo vida, e para todos."
Caros, sejam melhores! Escutem as mulheres! Dividam a responsabilidade da organização e da realização do trabalho doméstico e, ao agendarem meetings, pensem no cronograma de uma casa com crianças e idosos. Em suma, pensem para além de vocês! Isso é um ato revolucionário!
São Paulo, 10 de abril de 2020.
(*) Membra do GPTC/USP (Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital) e do GPTC-Gênero.Especialista em Direito do Trabalho na FDUSP. Servidora Pública.
(**) Essas reflexões são fruto de debates e desabafos trocados pelas redes sociais com várias mulheres e contou com a contribuição de membras do grupo de pesquisa GPTC-Gênero e militantes afro feministas com seus apontamentos e questionamento, em especial Claudia Urano, Cidinha dos Santos, Katia Cezar e Érika Marques.
[i] https://istoe.com.br/ibge-afirma-depressao-em-idosos-atinge-11-da-populacao-entre-60-e-64-anos/