Jorge Luiz Souto Maior
Diante das inúmeras contrariedades que foram amplamente difundidas, o próprio governo federal se deu conta de alguns dos imensos despropósitos expressos na MP 927, de 22/03/20, e tentou, por meio da MP 936, publicada em 1º/04/20, esboçar algum recuo.
Pena que o recuo, embora importante (e que se eficaz fosse, merecedor de elogios seria – por que não?), foi, como tantos outros já realizados por este governo, um recuo contraditório, que sugere uma admissão em torno da necessidade de seguir em direção contrária à anteriormente assumida, mas que, não querendo reconhecer o erro, preserva boa parte do que disse antes.
No campo do direito, o resultado é, por assim dizer, uma balbúrdia jurídica, e do que menos se precisa neste momento é de imprecisão, ineficiência e insegurança normativa.
A MP 927 permitia ao empregador reduzir salários e até suspender os contratos de trabalho, sem oferecer qualquer contrapartida aos trabalhadores e trabalhadoras, que seriam, portanto, conduzidos à própria sorte, agravando o caos social e econômico e institucionalizando um autêntico crime humanitário.
Com a MP 936, o governo cria o “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”, pelo qual promete a esses trabalhadores e trabalhadoras o pagamento de um benefício social denominado “Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda”.
Além disso, garante aos(às) trabalhadores(as) atingidos(as) pela medida uma estabilidade no emprego pelo período equivalente ao tempo de duração da redução salarial ou suspensão do contrato.
Por fim, confere ao empregado com contrato de trabalho intermitente um benefício emergencial mensal no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais), pelo período de três meses (art. 18).
Param por aí, no entanto, os motivos para se ter alguma empolgação com a MP 936, persistindo vários outros que sustentam a crítica à postura adotada pelo governo no que tange às relações de trabalho.
Senão, vejamos.
1) O benefício oferecido pelo governo não preserva o valor integral do salário recebido pelo(a) trabalhador(a).
Ora, o valor do seguro-desemprego, que é adotado como parâmetro do benefício criado, é proporcional à média dos últimos três salários e sempre com redução. Para quem recebeu a média de até R$ 1.599,61, o benefício será de 80% desse valor, ou seja, o(a) trabalhador(a) sofrerá uma redução de 20% em sua renda, enquanto o empregador terá um auxílio de 100% do custo do trabalho.
Se a média salarial for de R$ 1.599,62 a R$ 2.666,29, a redução será ainda maior, pois o benefício será 50% da média, acrescido da importância de R$ 1.279,69.
E se a média for superior a R$ 2.666,29, o valor do benefício será de R$ 1.813,03.
Para cumprir sua obrigação, o governo deveria pagar a integralidade dos salários.
Tanto no caso de redução de salário com diminuição proporcional da jornada de trabalho, quanto no de suspensão do contrato de trabalho, o benefício concedido pelo governo não será suficiente para manter a totalidade da renda do trabalhador.
E vale perceber que quando a redução for inferior a 25% o governo não pagará benefício algum ao trabalhador (§ 2º, I, do art. 11).
2) A MP 936 presta auxílio a grandes empresas e a bancos, não considerando o lucro líquido obtido que obtiveram no(s) último(s) exercício(s) e mesmo a sua regularidade com o pagamento de tributos, contribuições sociais e direitos trabalhistas.
Conforme se extrai do § 5º do art. 8º, o benefício, quando decorrente de redução de salário e diminuição proporcional do trabalho, que serve apenas para compensar, como dito acima, parte da perda da renda, é devido a empregados de todas as empresas, independente do porte.
No caso de suspensão do contrato de trabalho, segundo o mesmo dispositivo, o benefício será concedido na integralidade (que já é reduzido) a empregados de empresas que tiverem auferido, no ano-calendário de 2019, receita bruta de até R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais), sendo que com relação às empresas com receita bruta superior a esta, o benefício, embora com a previsão da obrigação de que seja efetuado o pagamento de 30% do salário, também será pago.
Assim, como anunciado na epígrafe do item acima, o governo vai corroborar a redução de salários e compensá-los apenas parcialmente, financiando também as grandes empresas e os bancos, e sem fazer qualquer avaliação em torno da postura destes empregadores com relação ao pagamento de tributos, contribuições sociais e direitos trabalhistas, além de desprezar os incentivos fiscais que foram concedidos a diversos setores produtivos.
3) A MP 936, embora estabeleça a concessão de um benefício social aos trabalhadores e trabalhadoras atingidos pelas tais “medidas do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”, que são, essencialmente, “redução proporcional de jornada de trabalho e de salários”; e “suspensão temporária do contrato de trabalho” (art. 3º), mantém e até exacerba as perversidades da MP 927, pois:
a) persiste na lógica de solucionar os problemas econômicos por meio da imposição de sacrifícios (de renda e de condições de trabalho) aos trabalhadores e trabalhadoras;
b) insiste em aumentar o poder dos empregadores;
c) continua renitente em coibir as demissões (ao contrário do que têm feito vários outros países).
No que tange ao primeiro aspecto, além de autorizar (ainda que com a compensação do beneficio parcial criado) a redução da renda dos(as) trabalhadores(as), mantém todas as disposições da MP 927 que precarizam as condições de trabalho daqueles que, atuando em atividades essenciais, continuam trabalhando, como já expressei em outro texto, tais como a liberação para a prática de horas extras e sem o pagamento correspondente da remuneração adicional.
Sobre este aspecto, aliás, é bastante sintomático o disposto no art. 13 da MP 936, que, a despeito de ter concordado que cabe à lei a definição do que sejam atividades essenciais e não ao poder econômico, autoriza a redução da jornada com diminuição dos salários desses trabalhadores, quando o correto seria a minimização dos riscos dessas pessoas por meio da redução da jornada sem diminuição do salário e o incentivo à contratação de mais profissionais.
Ainda referente às condições de trabalho de quem, salvando vidas, permanece em atividade, o art. 19 da MP 936 parece fixar um recuo com relação à MP 927 que, em seu Capítulo VII, praticamente afastou a atuação da fiscalização do trabalho.
No entanto, vai além.
Com efeito, apesar de dizer que o referido Capítulo (da MP 927) “não autoriza o descumprimento das normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho pelo empregador”, o art. 19 da MP 936 afirma de maneira peremptória que nas situações excepcionais tratadas na MP 927 o descumprimento das normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho está autorizado.
Quanto ao aumento do poder dos empregadores, a MP reitera a autorização para que as alterações se façam por meio de acordo individual, o que, bem se sabe, não é propriamente um acordo, mas uma imposição patronal.
Mas a MP 936 não se limita a isso.
De fato, a MP não só autoriza o “acordo” individual como pune a negociação coletiva, estabelecendo um valor reduzido do benefício para as situações de suspensão e redução da jornada fixadas por acordo ou convenção coletiva de trabalho (art. 11).
A MP 936, aliás, promove uma total inversão de valores, segundo a qual, o acordo individual poderia estipular redução de salário e suspensão de contratos, dentro de padrões pré-estabelecidos, enquanto a negociação coletiva seria o instrumento para reduzir ainda mais esses direitos e não para garanti-los e efetivá-los.
E dentro dessa balbúrdia jurídica advém o art. 12 da MP que “livra” do acordo individual apenas os(as) trabalhadores(as), sem diploma de nível superior e com salário entre R$ 3.136,00 a R$ 11.000,00, exceto quanto ao ajuste para a redução salarial de 25% (parágrafo único do mesmo artigo).
Vai tentar entender...
E sobre a efetiva preservação dos empregos, a MP 936, a exemplo da MP 927, vai na contramão do que seria realmente necessário e continua, contrariando, inclusive, o disposto no inciso I, do art. 7º da CF, se referindo à dispensa sem justa causa como um direito potestativo do empregador, até mesmo no período de estabilidade que estabeleceu (§ 1º do art. 10), e sem, ao menos, fixar garantias direcionadas ao concreto recebimento das verbas rescisórias, ainda mais sabendo-se, como se sabe, ou se deveria saber, que, no Brasil é disseminada e praticamente impune a prática de se efetuarem dispensas de trabalhadores e trabalhadoras sem o correspondente pagamento das referidas verbas.
Enfim, o governo federal ainda deve à nação brasileira e, sobretudo, aos trabalhadores e às trabalhadoras que permanecem em atividade respostas que, sob o império da razão, considerando os pontos de vista social, econômico e humano, correspondam à gravidade e à profundidade dos sofrimentos gerados pela pandemia do novo coronavírus.
São Paulo, 02 de abril de 2020.