Em 22 de março e 1º de abril de 2020, ainda nos primeiros instantes da pandemia, o governo federal, sob o argumento de apresentar medidas de enfrentamento aos problemas econômicos decorrentes da decretação da calamidade pública, editou, respetivamente, as Medidas Provisórias 927 e 936. Tais medidas, no entanto, como adverti, em 2 de abril do mesmo ano, somente aumentavam os problemas já identificados em 2018 e 2019, em razão do aumento da precarização do trabalho impulsionada pela “reforma” trabalhista de 2017.
Seria necessário e urgente, desde aquele instante, dar um passo em direção contrária ao aumento da precarização, conferindo garantia de emprego e de salários, com auxílio direto do governo a micro, pequenas e médias empresas para tanto. A escolha, no entanto, foi a de dar suporte financeiro a grandes empresas, para que estas, mantendo produção e lucros, reduzissem salários e suspendessem contratos de seus empregados, sob a retórica de que se estava conferindo auxílio econômico aos trabalhadores. Como dito à época:
Além de estimular a continuidade das atividades, expondo os trabalhadores a maior risco e menores ganhos, aumentando o número de contágios e retroalimentando a crise sanitária e humana e os danos econômicos, o governo federal também se mantinha inerte quanto às providências necessárias de prevenção, desprezando a gravidade da pandemia – chegando mesmo a incentivar práticas sociais incompatíveis com a redução pública do contágio.
O grande problema foi que, no que tange ao estabelecimento de normas que possibilitavam o aumento da exploração dos trabalhadores, vários setores dominantes da sociedade – que até se postavam contra o negacionismo governamental – se aliaram ao governo.
Com isso, as medidas em questão foram as únicas de fato implementadas e os seus efeitos nefastos, alimentados também por certo comportamento social negacionista estimulado publicamente pelo Presidente da República, foram rapidamente sentidos.
Assim, no início de agosto de 2020, chegávamos a 100 mil mortes.
Em 08 de agosto, me manifestei a respeito, no seguinte sentido:
“...como já se tem por revelado, as pessoas que estão morrendo são as vítimas históricas da opressão e da desigualdade social no país: pobres e pretos[i], sendo certo que a pobreza aumentou muito nos últimos anos[ii] e, certamente, foi impulsionada pela “reforma” trabalhista, que, ao mesmo tempo, proporcionou o aumento do lucro das grandes empresas[iii].
Concretamente, estão morrendo os que foram conduzidos à informalidade e que, durante a pandemia, perderam toda a renda, ficando sob a dependência do auxílio emergencial (que demorou a ser pago e ao que muitos sequer tiveram acesso), os que foram conduzidos ao desemprego e os que foram obrigados a continuar trabalhando com redução de salários e aumento dos riscos no trabalho e no transporte, sem falar dos que se mantiveram trabalhando na total informalidade, caso dos entregadores, submetidos a toda série de riscos. São essas pessoas (e seus familiares) os que compõem, majoritariamente, o número em questão.
De fato, o que se tem (e nada se fala) é um morticínio da classe trabalhadora – domésticas, enfermeiras, médicos(as), pedreiros, petroleiros(as), condutores(as), coletores(as) de lixo, trabalhadores(as) rurais, trabalhadores(as) em frigoríficos, terceirizados(as), condutores(as), entregadores etc., que apenas aparecem na grande mídia no relato formal de “heróis” e “heroínas”, além dos informais e desempregados(as)...
Importante perceber que uma das medidas do governo foi negar a doença como acidente do trabalho e, embora o STF tenha declarado tal norma inconstitucional, vez que se exigia a prova por parte do empregado que o contágio da doença se deu no ambiente de trabalho, também não se direcionou, concretamente, como seria necessário, no sentido contrário, afirmando inequivocamente que a aquisição da doença por um trabalhador em atividade é doença do trabalho e, portanto, um acidente do trabalho.
Assim, as empresas não estão emitindo a CAT e, com isso, não se tem o número estatístico de trabalhadores(as) infectados(as), inclusive por setor produtivo[iv].
Desse modo, mais uma vez na história, os(as) trabalhadores(as) são apagados(as) e o que aparece nas estatísticas dos hospitais é a morte de um cidadão, sem vínculo com uma classe social específica. O número de trabalhadores e trabalhadoras atingidos(as) é propositalmente negligenciado, embora tenha sido impossível deixar de reconhecer o recorde de mortes de profissionais da saúde[v] e o altíssimo índice de infectados entre os(as) trabalhadores(as) frigoríficos[vi].
A negligência com relação à garantia de emprego, inclusive, tem favorecido a dispensa de trabalhadores e trabalhadoras no primeiro indício da doença, o que se verifica com mais incidência ainda entre os(as) trabalhadores(as) terceirizados(as). É faltar ao serviço por doença, ou explicitar algum sintoma, que se perde o emprego...
A ausência do Estado, também estimulada nas MPs (que foram aplaudidas ou meramente negligenciadas pela grande mídia), na fiscalização das empresas quanto a concessão de equipamento de proteção individual aos(às) trabalhadores(as), com a eficácia e a quantidade necessárias, conforme cientificamente determinado, contribuiu igualmente para o aumento do contágio entre trabalhadores(as).
E compete não olvidar que os(as) trabalhadores(as) são, certamente, transmissores para seus familiares e demais pessoas com as quais mantêm contato, sobretudo, nos transportes públicos, que continuam lotados, em muitos lugares, ainda mais agora quando a vida parece ter voltado ao ‘normal’.
Cumpre também destacar que a política restritiva de direitos trabalhistas, com aumento da precarização do trabalho, não garantiu empregos. Mais de 9 milhões de trabalhadores(as) perderam o emprego na pandemia[vii] e isso se deu, sobretudo, porque as medidas do governo (que receberam apoio expresso da grande mídia) só tiveram alguma serventia – e para os objetivos errados, isto é, para favorecer a preservação (e até o aumento) de lucros –, pois para pequenas empresas (como bares e restaurante, por exemplo), cujos negócios foram interrompidos na pandemia, redução de salários e suspensão de contratos muto pouco ou nenhum resultado econômico efetivo produz.
Essa avalanche social e econômica está representada no número de pessoas dependentes do benefício emergencial, que saltou de 45 milhões, em abril, para 65 milhões, em julho[viii].
O fato concreto e insofismável é que a situação de pauperização e abandono, para favorecimento dos interesses econômicos de poucos, a que foi conduzida à classe trabalhadora ao longo da história brasileira, mas, de forma ainda mais intensa, pela “reforma” trabalhista e pelas medidas de “enfrentamento” adotadas pelo governo durante a pandemia, está diretamente ligada à tragédia sanitária e humanitária que se está vivenciado no Brasil e todos(as) aqueles(as) que contribuíram para que essas medidas se consolidassem e fossem validadas e aplicadas têm uma grande parcela de culpa na produção dessa triste realidade.
Ou, com honestidade e dignidade, reconhecemos isso e, assim, vislumbramos alguma chance de reversão desse quadro, o que exige a revogação de todas essas medidas e a formulação de um novo pacto social que efetivamente integre a classe trabalhadora, distribua justamente a riqueza socialmente produzida e respeite a vida (sem quaisquer discriminações e preconceitos), ou, assumindo a nossa incapacidade de constituirmos uma nação, estaremos condenados a, em pouco tempo, falar sobre as 200.000 mil mortes ou mais...” [2]
Como previsto, em 07 de janeiro de 2021, chegávamos a 200 mil mortes e daí em diante o processo genocida, determinado pela necropolítica em curso, se acelerou.
A marca das 300 mil mortes veio menos de três meses depois, em 24 de março de 2021 e, agora, em 29 de abril, exatos 35 dias após, chegamos a 400 mil mortes.
É certo, pois, que as medidas adotadas, que são unicamente no sentido de impor maiores sacrifícios e insegurança aos que estão trabalhando, não estão surtindo efeito, a não ser que o efeito esperado seja este mesmo o de exterminar pessoas da classe trabalhadora.
Verifique-se que o maior número de contágios e de mortes está entre os trabalhadores e trabalhadoras, notadamente entre aqueles e aquelas que exercem atividades mais precárias ou que estão na denominada “linha de frente” do contado público.[3]
E para aumentar a tragédia, eliminando qualquer possibilidade de uma perspectiva positiva a curto e médio prazo, a atitude que se verifica das autoridades é meramente o gasto de energia em um jogo político, cujo horizonte é o das eleições de 2022 (CPI da COVID incluso), enquanto o governo se vê livre e até incentivado (pelos poderes econômico e midiático) a manter exatamente a mesma postura de contribuir para o sofrimento da classe trabalhadora a favorecer a grandes empresas.
Não é coincidência, portanto, que no dia 28 de abril, o governo tenha publicado as MPs 1045 e 1046 que praticamente reeditam as MPs 927 e 936.
Essas Medidas Provisórias, ademais, se colocam no lugar, mais uma vez, das medidas que seriam efetivamente necessárias e urgentes – agora, já com bastante atraso – relativas à preservação dos empregos e de salários, acompanhadas de políticas de redistribuição de renda, com majoração de impostos de grandes fortunas e dos altos lucros, além da cobrança da imensa dívida pública dos grandes devedores, notadamente, as multinacionais, as quais, inclusive, vale lembrar, diante da redução do mercado, não sentem qualquer remorso ao anunciarem fechamentos de fábricas e conduzirem milhares de pessoas ao desemprego, mesmo tendo sido amplamente beneficiadas ao longo de décadas de exploração do trabalho no Brasil.
Não se pode esquecer, por certo, das medidas de prevenção, como o lockdown, o toque de recolher, a distribuição gratuita de máscaras e álcool em gel, assim como a mais que necessária distribuição pública de alimentos (e não meramente produtos alimentícios).
Tudo isso, evidentemente, ladeado da implementação de uma política eficaz e organizada de vacinação pública – rechaçando as iniciativas privadas, que são egoístas e ineficazes –, precedida da necessária quebra de patentes para a produção emergencial e acelerada de vacinas.
Fato é que, reproduzindo os mesmos vícios já amplamente denunciados em diversos textos, em uma situação sanitária, social, econômica e humana muito mais grave, o advento das medidas provisórias em questão representa uma autêntica condenação à morte de outros milhares de cidadãos e cidadãs brasileiros.
Diante da imobilidade concreta, contundente e eficaz da classe política, das instituições públicas (incluindo, de maneira proeminente o Judiciário) e também das organizações sindicais frente a todos os desmandos promovidos pelo governo federal, no que foi acompanhado nos aspectos principais por muitos governos estaduais (São Paulo, principalmente), a única coisa que resta a fazer para tentar, mais uma vez, mudar o rumo dessa história – afinal, todos os argumentos já foram exaustivamente expressos – é formular as perguntas: até quando assistiremos calados e inertes – inclusive forjando argumentos para dizer que não existe, atribuindo às 400 mil mortes o acaso e a má sorte, como se fossem mortes naturais– o genocídio que se promove no Brasil? Ou, dito de outro modo: quantas vidas precisam ser sacrificadas para que que se atinja o ponto da razão, da consciência e da indignação?
São Paulo, 29 de abril de 2021.
[1]. https://www.jorgesoutomaior.com/blog/mp-936-do-pandemonio-a-razao
[2]. https://www.jorgesoutomaior.com/blog/100-mil-mortes-ha-muito-mais-culpados
[3]. https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/04/20/interna_gerais,1255963/pnad-covid-19-indica-riscos-da-doenca-associados-a-rotina-de-trabalho.shtml