Luís Henrique Salina
Jorge Luiz Souto Maior
“Tá lá o corpo estendido no chão
Em vez de rosto, uma foto de um gol
Em vez de reza, uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém”
(De frente pro crime. Aldir Blanc e João Bosco)
Se não bastasse a precarização das relações de trabalho impulsionada pelas alterações legislativas que vêm se acumulando nos últimos anos, os trabalhadores ainda têm convivido com o descumprimento reiterado de seus parcos direitos ainda em vigor e com os inúmeros obstáculos para o acesso à justiça.
Quem vive do trabalho, quando demitido do emprego, fica em situação vulnerável, especialmente quando salários, horas extraordinárias, horas de percurso, férias, 13º salário e verbas rescisórias não são pagos.
Diante do descumprimento de seus direitos trabalhistas básicos, resta-lhes acionar a Justiça do Trabalho. Por isso, o processo do trabalho deve constituir instrumento célere e eficaz para efetivação do direito material, reafirmando o valor social do trabalho, fundamento de nosso Estado Democrático de Direito. Não raro, no entanto, as práticas processuais contradizem esse objetivo, promovendo um fim melancólico: o processo a serviço da destruição de direitos e de esperanças na justiça.
Mas nada se compara à visão institucionalizada de que a conciliação é a melhor solução para o processo, não se avaliando se a conciliação configura, concretamente, renúncia a direito. Para tanto, chega-se até mesmo a dizer que “perante o juiz a renúncia do reclamante não tem vício de vontade”, omitindo-se o fato de que a coação vem, tantas vezes, do próprio juiz, quando diz ao reclamante que se não fizer o acordo como proposto pela reclamada o processo pode demorar muito para chegar ao final.
Aliás, essa ânsia institucional para estimular a conciliação, sendo esta legitimada pelo efeito de dar fim ao processo, aprimorar o dado estatístico da unidade judicial e melhorar a relação custo-benefício da estrutura judiciária, tem, historicamente, servido para auxiliar na construção e no desenvolvimento de fórmulas jurídicas de redução de direitos trabalhistas. Aliás, as duas experiências interagem reciprocamente nessa relação de causa e efeito, não se sabendo, concretamente, qual vem primeiro e qual é a mais eficiente para produzir seu resultado principal, que é rebaixar o patamar de cidadania da classe trabalhadora.
Nesta linha de uma completa despreocupação com a efetividade da legislação trabalhista, desapegada de qualquer sentido de solidariedade com aqueles que precisam se socorrer da Justiça do Trabalho para resgatarem um pouco da dignidade perdida, e até agindo de modo a atender o interesse das empresas-reclamadas, que se beneficiam economicamente com a demora do processo, é que se inserem as inúmeras decisões de Cortes superiores que, sob o pretexto de buscarem segurança jurídica, determinam a suspensão dos processos, até que definam, por seus órgãos plenos, seu entendimento sobre o sentido de uma norma específica.
É o caso, por exemplo, da decisão do ministro Gilmar Mendes que, sob demanda da CNI – Confederação Nacional da Indústria, determinou a suspensão de todos os processos trabalhistas cujo objeto tenha alguma relação com a tese fixada no Tema 1046 do STF. Tal decisão oi proferida em 28 de junho de 2019 e até hoje se mantém em vigor, gerando a paralisação de uma quantidade enorme de processos na Justiça do Trabalho.
O mais grave é que a decisão do Min. Gilmar Mendes, na verdade, é que se apresenta contrária à tese do Tema 1046, a qual o ministro considera que é um vale-tudo da negociação coletiva, mas não é.
A tese que o ministro Gilmar Mendes sustenta, de fato, foi vencida, por 6 a 5, no julgamento de 03 de maio de 2019, realizado no âmbito do próprio ARE 1121633/GO.
Assim, o pressuposto do tal risco de desrespeito ao entendimento do Supremo, em face da possibilidade de advirem decisões dos Tribunais trabalhistas que reafirmem o princípio da irrenunciabilidade de direitos também na via coletiva ou que estabeleçam a necessidade de contrapartida para a validação de instrumentos normativos negociais, não existe, pois foi exatamente isso o que se fixou no RE 590.415.
O que está pendente de julgamento, portanto, é apenas a tentativa do próprio ministro de alterar o entendimento fixado no RE 590.415.
Por isso, o pressuposto da decisão do ministro Gilmar Mendes não tem sentido lógico, já que até ser alterada (e se for) a decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal deve prevalecer. O que referido ministro fez foi negar validade à decisão do Supremo, colocando a questão novamente em pauta.
Vale destacar que a tentativa de alteração, no sentido proposto, foi rejeitada na Turma e remetida ao Pleno. Quando isso se deu, o ministro Gilmar Mendes, monocraticamente, suspendeu os processos até que o Pleno se manifeste sobre sua tentativa de alterar o entendimento consolidado no RE 590.415, como se este não existisse.
E, como dito, a decisão proferida no RE 590.415 não preconiza um vale-tudo em termos de negociação coletiva.
Então, para respeitar o pleno do STF, não se pode acatar a determinação monocrática do Min. Gilmar, que, ademais, equivale a um mandado de fechamento da Justiça do Trabalho, configurando, por conseguinte, uma afronta às bases constitucionais e republicanas do Estado de Direito.
Não se querendo chegar a isso, é possível e minimamente necessário dizer, como já anteriormente manifestado, que “A decisão monocrática proferida pelo Min. Gilmar Mendes, em 28 de junho de 2019, nos autos do ARE 1121633 / GO, determinando a suspensão de todos os processos que versem sobre o Tema 1046 não pode ser interpretada como uma suspensão de todos os processos em que se discute o sentido e a compatibilidade de normas coletivas com as demais normas e institutos jurídicos porque essa amplitude representa um desrespeito à decisão plenária do STF, já que o único ponto questionado sobre o que já se havia decidido, ensejando o Tema 1046, é o da não exigência de ‘explicitação de vantagens compensatórias ao direito flexibilizado na negociação coletiva’”[1].
No entanto, de forma generalizada, os processos trabalhistas com algum pedido relacionado à invalidação de certa cláusula coletiva são tidos como alvo do famigerado Tema 1.046 do STF e, com isso, com base na liminar monocrática do ministro, têm sido sobrestados na segunda instância e vão se acumulando como um nada jurídico nos sistemas eletrônicos, de modo a esvaziar a função da Justiça do Trabalho de realização do direito material.
Diante desse quadro, após mais de um ano da decisão do ministro Gilmar Mendes, surgem tentativas das partes para que reclamações trabalhistas, com múltiplos pedidos, voltem a tramitar.
A visualização estatística que se tem sobre a atuação da Justiça considera normal que, para que se dê prosseguimento a tais processos, que os trabalhadores renunciem à pretensão jurídica que deu causa à suspensão. Dissemina-se, assim, uma renúncia estimulada por uma coação institucional carregada de insensibilidade, que se disfarça no argumento do mal menor.
No exame de algumas petições, no entanto, nos deparamos com um pedido de renúncia com esse objetivo revelador da realidade que toda essa abordagem jurídico-formal tenta afastar.
Talvez já considerando que haveria de nossa parte uma renitência em acatar a renúncia e tentando, assim, nos demover dessa posição, o pedido com tal objetivo veio aos autos escrito e assinado pelo próprio trabalhador, conforme se pode ver na imagem que inaugura este artigo (divulgada porque, afinal, o processo é público).
O texto, no entanto, vai muito além da pretensão em si. Traz para o mundo do processo algo que há muito se perdeu no emaranhado de debates jurídicos: a realidade do(a) trabalhador(a) brasileiro(a).
Costuma-se falar em trabalho como custo e não se refere à condição de quem trabalha. Quando essa questão é vislumbrada, isso se dá a partir de imagens idealizadas de um(a) trabalhador(a) emancipado, que pode, inclusive, ser colocado em pé de igualdade, no sentido negocial, com o seu empregador. “O tempo da necessidade de proteção jurídica já passou”, preconiza-se.
Na petição juntada aos autos, grafada com as letras da verdade, o trabalhador pede ao Poder Judiciário que homologue a sua renúncia a um direito de diferenças de horas de percurso, porque, como provavelmente lhe explicou o(a) advogado(a), como a questão foi atingida pelo Tema 1046, a renúncia seria a única forma para que seus demais direitos pudessem ser, enfim, satisfeitos.
O pedido, no entanto, primeiro, só reforçou nossa compreensão contrária ao sobrestamento dos processos, demonstrando os prejuízos gerados à parte que busca no processo do trabalho a efetivação de direitos desrespeitados na vigência da relação de emprego e, segundo, explicita o quanto a renúncia a um direito social constitui uma violência e, por consequência, um sofrimento pessoal, ao mesmo tempo que representa uma marca na áurea coletiva de uma sociedade que se pretende justa, humana e solidária.
Tem-se, de todo modo, um registro histórico explícito da insensibilidade que constitui o fio condutor de muitos pensamentos e práticas jurídicas trabalhistas.
O documento não é uma peça processual, é um bilhete com um pedido de socorro, que não nos remete apenas ao dilema imposto judicialmente, mas também a toda uma vida de privações, sofrimentos e humilhações.
Entendemos, por isso, a iniciativa desesperada de trabalhadores(as) atingidos(as) pela suspensão indeterminada e punitiva de processos e nos compadecemos com o seu sofrimento e a sua angústia.
E é exatamente a compreensão dessa dor que nos impede de dizer que o pedido em questão está em conformidade com uma ordem jurídica pautada pelo princípio da preservação e elevação da dignidade humana. Dizer isso com toda convicção é muito importante, sobretudo neste momento em que a desconsideração da vida alheia tende a ultrapassar todos os limites. Mas não deixa de ser um fator de grande sofrimento pessoal, vez que carregado de um forte sentimento de impotência, afinal, se a rejeição à homologação obsta o caos da legitimação da violência, também não consegue dar uma resposta à altura das necessidades reveladas. Verdade que bem se poderia cogitar na aplicação da compreensão da teoria da sentença por capítulos e, com isso, separar os temas e dar prosseguimento aos que não estejam relacionados com o que é alvo da suspensão, mas isso, ao menos por enquanto, esbarra nos limites impostos pelo PJe, cuja lógica própria, baseada em lógica produtiva, impede que as regras processuais sejam racionalmente aplicadas.
De forma mais restrita, o fato insofismável é que o sobrestamento de processos trabalhistas, com base em decisão do ministro Gilmar Mendes, não pode implicar em nova violação dos direitos fundamentais, gerando, por exemplo, uma autorização judicial para se realizar uma renúncia de direitos sociais, garantidos que foram, na Constituição Federal e em diversos documentos jurídicos internacionais, como patamar mínimo de proteção à pessoa humana que vive do trabalho.
Vale lembrar que é exatamente por meio dessas situações de expor os trabalhadores a dilemas próprios de uma espécie de “escolha de Sofia” é que se vem naturalizando o rebaixamento da proteção jurídica social, com o subterfúgio de se ver nisso uma vontade livremente manifestada pelo próprio titular do direito.
Não, não se trata de uma livre manifestação de vontade. Trata-se de uma vontade viciada pela necessidade, instrumentalizada pela chantagem institucional da indefinição do tempo de duração do processo.
Embora posta nas costas dos(a) trabalhadores(as), essa "escolha" não tem como lhe ser imposta.
Essa angústia deve integrar a consciência de toda a sociedade e, em especial, deve constituir o fio condutor das preocupações de todos e todas que atuam profissionalmente com o Direito do Trabalho, incluindo advogados(as), juízes(as), procuradores(as), professoras(es) e servidores(as).
Receber quem bate às portas do Judiciário e lhe oferecer uma resposta justa e célere, afinal, é nosso trabalho, como preconiza, aliás, o pacto de solidariedade consagrado na Constituição Federal de 1988. Esta é uma tarefa que precisa ser perseguida a cada instante, até porque as normas processuais, que conduzem a atuação jurisdicional, embora só tenham sentido como instrumento para a realização de direitos e reafirmação dos valores sociais do Estado Democrático de Direito, quando interpretadas e aplicadas na perspectiva de atender as expectativas estatísticas, podem constituir fórmulas legitimadoras da negação de direitos e da consolidação do retrocesso social.
Processos sobrestados, paralisados e estéreis perdem o sentido, tornando-se verdadeiros “não-processos”, fenômeno que pode anunciar, no máximo, o melancólico fim da Justiça do Trabalho, sem que seja necessário um decreto ou o trancamento das portas dos fóruns.
No dia em que se considerar normal e homologável esse tipo de demanda, ter-se-á por consagrada a falência da compreensão acerca do princípio da dignidade e das instituições criadas para, nos limites do modo capitalista de produção, estruturar um modelo de sociedade minimamente compatível com a vida humana.
Campinas-São Paulo, 11 de outubro de 2020
[1]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “O Tema 1046 do STF e a urgência da retomada da atuação por inteiro da Justiça do Trabalho na pandemia e sempre”. Disponível em: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/o-tema-1046-do-stf-e-a-urgencia-da-retomada-da-atuacao-por-inteiro-da-justica-do-trabalho-na-pandemia-e-sempre