Em 23 de maio de 2019, foi publicado o acórdão do STF (relator Ministro Gilmar Mendes), proferido nos autos do processo ARE 1121633-GO, que deu origem ao Tema 1046, propondo uma reformulação no entendimento da Corte expressa anteriormente nos Temas 357 e 762.
Em 28 de junho de 2019, ou seja, há quase um ano atrás, em decisão monocrática proferida nos mesmos autos, o Min. Gilmar Mendes determinou a suspensão de todos os processos que versem sobre o Tema 1046.
A decisão em questão, pela forma como tem sido interpretada e aplicada, gerou uma diminuição considerável da própria atuação da Justiça do Trabalho, vez que muitos processos têm tido seu andamento suspenso, aumentando, e muito, o tempo de espera em mais uma das tantas longas filas que trabalhadores e trabalhadoras se submetem para reaver o que lhes pertence por direito.
O problema tem origem na forma como se explicitou o Enunciado do Tema 1046:
“Validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente.”
A redação sugere que está em aberto, de forma ampla, a definição do alcance jurídico das normas fixadas em negociações coletivas, mas não foi isso o que se decidiu no ARE 1121633-GO.
De fato, o único acréscimo trazido ao objeto no referido acórdão foi o da exigência, ou não, de “explicitação de vantagens compensatórias ao direito flexibilizado na negociação coletiva”.
Senão vejamos.
Conforme consta do acórdão, a posição expressa nos julgamentos dos Temas 357 e 762 ia “no sentido de que a discussão acerca de disposição de direitos trabalhistas por instrumento coletivo de trabalho restringir-se-ia ao âmbito infraconstitucional”.
Em outras palavras, também expressas no acórdão, o entendimento era o de que não se poderia tratar, em julgamento com repercussão geral, da validade das normas de instrumentos coletivos que regulam objetos como “redução do intervalo intrajornada e majoração da jornada de trabalho, no regime de turnos ininterruptos de revezamento”, por se situarem tais regulações no âmbito infraconstitucional.
Daí porque no Tema 357 se destacou a seguinte Ementa:
“Redução do intervalo intrajornada. Majoração da jornada em turnos ininterruptos de revezamento. Convenção e acordo coletivo. Matéria restrita ao âmbito infraconstitucional. Inexistência de repercussão geral.” (AI-RG 825.675, DJe 25.3.2011)
No julgamento do Tema 762 (RE-RG 820.729), em acórdão da lavra do Min. Teori Zavascki, publicado no DJe de 3.10.2014, “o Pleno consignou que a controvérsia relativa à validade de norma coletiva de trabalho que limita o pagamento de horas in itinere a menos da metade do tempo efetivamente gasto pelo trabalhador no seu trajeto até o local do serviço, fundada na interpretação da Consolidação das Leis do Trabalho e da Lei 10.243/01, é de natureza infraconstitucional”.
A Ementa foi a seguinte:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. NORMA COLETIVA DE TRABALHO. PAGAMENTO DAS HORAS IN ITINERE. FIXAÇÃO DE LIMITE INFERIOR À METADE DO TEMPO EFETIVAMENTE GASTO NO TRAJETO ATÉ O LOCAL DO SERVIÇO. VALIDADE. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. A controvérsia relativa à validade de norma coletiva de trabalho que limita o pagamento de horas in itinere a menos da metade do tempo efetivamente gasto pelo trabalhador no seu trajeto até o local do serviço, fundada na interpretação da Consolidação das Leis do Trabalho e da Lei 10.243/01, é de natureza infraconstitucional. 2. É cabível a atribuição dos efeitos da declaração de ausência de repercussão geral quando não há matéria constitucional a ser apreciada ou quando eventual ofensa à Carta Magna se dê de forma indireta ou reflexa (RE 584.608 RG, Min. ELLEN GRACIE, DJe de 13/3/2009). 3. Ausência de repercussão geral da questão suscitada, nos termos do art. 543-A do CPC.”
Ocorre que após isso, conforme consignado no acórdão proferido no ARE 1121633, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento proferido no RE-RG 590.415, alterou sua compreensão a respeito, formulando avaliação meritória sobre o conteúdo de norma coletiva de trabalho, em julgamento com repercussão geral (Tema 152).
Foi em razão dessa alteração que no acórdão proferido no ARE 1121633-GO se considerou necessária a revisão das teses anteriormente firmadas nos Termas 357 e 762.
E vale reiterar: a alteração de entendimento, verificada no RE 590.415 e também, posteriormente, no julgamento do RE-AgR 895.759, de relatoria do Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe 23.5.2017, se deu no aspecto de se ter entrado no mérito da discussão em torno da validade do conteúdo de normas fixadas em acordos e convenções coletivas de trabalho, contrariando o que já havia sido assentado nos Temas 357 e 762, no sentido de que tais assuntos estavam na órbita infraconstitucional.
O que se declarou no julgamento do RE ARE 1121633, portanto, conforme expresso no acórdão em comento, foi que se passou a reconhecer a “constitucionalidade da matéria em debate” e com base nisso é que foi declarada a repercussão geral, nos seguintes termos:
“Dessa forma, concluo que a controvérsia referente à validade de norma coletiva de trabalho que limita ou reduz direitos trabalhistas possui natureza constitucional e inegável relevância do ponto de vista social, econômico ou jurídico, além de transcender os interesses subjetivos da causa, já que a correta interpretação do art. 7º, XXVI, da Constituição Federal é tema recorrente nos tribunais trabalhistas brasileiros e tem gerado insegurança quanto à validade e alcance do pactuado em convenções e acordos coletivos em face das normas previstas na Consolidação das Leis Trabalhistas, à luz do citado preceito constitucional, o que dá ensejo ao reconhecimento da repercussão geral.”
Mas o acórdão vai adiante e, acolhendo proposta do i. relator, reafirma os entendimentos de mérito já fixados nas decisões do RE-RG 590.415 e do RE-AgR 895.759, entendimentos estes que, por conseguinte, à luz do decidido no ARE 1121633, deverão ser preservados no julgamento final do Tema 1046, com exceção apenas de um aspecto, como já dito: o da explicitação, ou não, de vantagens compensatórias.
Verifique-se que a tese expressamente fixada no ARE 1121633, que enseja o Tema 1046, é a seguinte:
“Os acordos e convenções coletivos devem ser observados, ainda que afastem ou restrinjam direitos trabalhistas, independentemente da explicitação de vantagens compensatórias ao direito flexibilizado na negociação coletiva, resguardados, em qualquer caso, os direitos absolutamente indisponíveis, constitucionalmente assegurados.” (grifou-se)
Desse modo, se o debate em um caso específico não tiver como ponto central essa questão referente à contrapartida, baseando-se, isto sim, em todos os demais fundamentos já definidos no RE-RG 590.415 e RE-AgR 895.759, que foram expressamente reafirmados no ARE 1121633, não se terá qualquer contrariedade com a proposta do STF para o Tema 1046, inexistindo razão para que o processo tenha seu andamento suspenso.
A decisão monocrática proferida pelo Min. Gilmar Mendes, em 28 de junho de 2019, nos autos do ARE 1121633 / GO, determinando a suspensão de todos os processos que versem sobre o Tema 1046 não pode ser interpretada como uma suspensão de todos os processos em que se discute o sentido e a compatibilidade de normas coletivas com as demais normas e institutos jurídicas porque essa amplitude representa um desrespeito à decisão plenária do STF, já que o único ponto questionado sobre o que já se havia decidido, ensejando o Tema 1046, é o da não exigência de “explicitação de vantagens compensatórias ao direito flexibilizado na negociação coletiva”.
Os demais contornos da avaliação jurídica das normas coletivas já estão dados nos julgamentos expressos no RE-RG 590.415 e RE-AgR 895.759, sendo certo que negar isso equivale a uma desconsideração, aí sim, da jurisprudência do STF.
Verdade que o Ministro Gilmar Mendes trouxe em seu despacho monocrático uma compreensão pessoal sobre o tema, mas que não encontra correspondência tanto com o acórdão proferido no ARE 1121633, quanto nos julgados proferidos no RE-RG 590.415 e no RE-AgR 895.759, afirmando que nessas decisões foi conferida “a possibilidade de redução de direitos por meio de negociação coletiva e a inaplicabilidade do princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas ao direito coletivo do trabalho”.
Essa motivação constante na decisão monocrática acabou refletindo em muitas outras decisões judiciais, em todos os graus de jurisdição, para o efeito da determinação de suspensão de todos os processos em que o conteúdo de uma norma coletiva estivesse em discussão, não importando os contornos jurídicos do exame.
Há de se verificar, também, que, embora o argumento utilizado no despacho do Min. Gilmar Menes esteja mencionado em algumas passagens do voto do Min. Barroso (RE-RG 590.415), assim como no julgamento do ARE 1121633, ainda assim não se chegou, em ambos, concretamente, à afirmação de uma renunciabilidade plena dos direitos trabalhistas mesmo na via da negociação coletiva, tendo sido fixadas condições de validade para o ajuste, condições estas, repita-se, que não foram negadas no Tema 1046, a não ser no aspecto, já mencionado, da exigência de “explicitação de vantagens compensatórias ao direito flexibilizado na negociação coletiva”
Assim, “data venia”, não é devido suspender o andamento de processos em que não esteja em discussão a validade de normas coletivas pela ausência de explicitação de contrapartida, sendo certo que a forma como foi redigido o enunciado do Tema 1046 – “Validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente” – sugere uma amplitude de análise que não foi tratada no acórdão proferido no ARE 1121633, cujo resultado foi, vale repetir, no sentido de:
a) reconhecer a constitucionalidade da discussão em torno da validade de normas de acordos e convenções coletivas de trabalho;
b) declarar a repercussão geral da matéria;
c) não reafirmar a jurisprudência anterior da Corte neste aspecto específico, ou seja, passar a reconhecer que se trata de um debate constitucional, com formulação de proposta concreta de revisão das teses firmadas pelo Plenário Virtual nos autos do AIRG 825.675, Min. Gilmar Mendes, DJe 25.3.2011 (tema 357), e do RE-RG 820.729, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 3.10.2014 (tema 762);
d) reafirmar a jurisprudência sobre o tema da análise do conteúdo das normas coletivas nos moldes fixados nos julgados do RE-RG 590.415 e do RE-AgR 895.759; e
e) propor debate e eventual alteração, unicamente, sobre a exigência de “explicitação de vantagens compensatórias ao direito flexibilizado na negociação coletiva”, conforme explicitado na tese expressamente suscitada no acórdão.
O que constou na redação do enunciado do Tema 1046, portanto, não reflete o que foi decidido no plenário do STF, no ARE 1121633.
É certo que toda jurisprudência pode ser alterada a qualquer momento – o que no que se refere ao STF nem é recomendável, para não gerar inseguranças jurídicas e instabilidade institucional. No entanto, é mais certo ainda que já existe um posicionamento definitivo do STF sobre a questão dos contornos da análise das normas fixadas em acordos e convenções coletivas de trabalho e este entendimento foi, inclusive, reafirmado no julgamento que deu ensejo ao Tema 1046, restando para avaliação posterior, e com efeito sobrestado, unicamente o debate em torno da necessidade de explicitação de contrapartida.
Não bastassem todas essas razões, impossível não admitir que a forma equivocada como restou redigido o enunciado do Tema 1046 ainda trouxe uma contradição insuperável. Ora, se para admitir a repercussão geral foi reconhecido que os direitos trabalhistas possuem sede constitucional, não há como chegar à proposição de se autorizar a flexibilização apenas de direito “não assegurado constitucionalmente”.
Efetivamente, o aspecto que teria justificado a repercussão geral anularia o seu próprio efeito. Ora, como os direitos trabalhistas são constitucionais, vindo daí a repercussão geral do tema, os direitos trabalhistas, então, estão assegurados constitucionalmente, não havendo espaço para limitação ou restrição, exceto nas hipóteses expressamente previstas na própria Constituição, mas quanto a isso nunca houve dissidência na jurisprudência do STF e dos Tribunais do Trabalho.
De forma mais objetiva, se o objeto de discussão do processo específico for a infringência de direito trabalhista assegurado constitucionalmente (e praticamente todos o são), não há qualquer contrariedade ao enunciado do Tema 1046 nas decisões que negam validade a uma norma coletiva por negar vigência e eficácia a algum direito trabalhista assegurado na Constituição, dentre eles o próprio da progressividade fixado no “caput” do art. 7º, não representando, pois, qualquer ofensa à determinação de suspensão, que foi expressa no sentido de suspender processos cujas decisões pudessem se contrapor ao Tema 1046.
Ou seja, para que a determinação de suspensão tenha efeito concreto é preciso que seja atrelada a um objeto específico, em conformidade, inclusive, com a decisão proferida no ARE 1121633.
Por fim, e, certamente, o mais importante.
Apresenta-se urgente superar a enorme limitação à plenitude da atuação da Justiça do Trabalho que essa compreensão juridicamente equivocada tem provocado. Um percentual muito grande de processos trabalhistas tem tido, indevidamente, sua tramitação suspensa há mais de um ano e sem qualquer previsão de retomada, interferindo, negativamente, na eficiência da prestação de serviços da Justiça do Trabalho à sociedade e, em especial, aos que dela mais necessitam.
No momento de crise pandêmica, em que trabalhadores e trabalhadoras estão sendo tratados como “heróis” e sendo nacionalmente reconhecidos pela essencialidade de seu trabalho para salvar vidas e conferir viabilidade concreta ao sistema econômico, é essencial permitir que a Justiça do Trabalho volte a funcionar plenamente, sendo este, aliás, o ato mínimo que se deve realizar como forma agradecimento efetivo a essas pessoas, o que passa, necessariamente, pelo reconhecimento, pelas instituições estatais, de sua condição humana e do respeito aos seus direitos.
São Paulo, 26 de maio de 2020.