Jorge Luiz Souto Maior
A julgar pela comunicação, por email, enviada em 15 de julho de 2016, a direção da Universidade de São Paulo está feliz (e comemora) com a vitória judicial que obteve sobre seus adversários, os servidores da Universidade, no que tange ao corte de salários, conduzindo, maliciosamente, os interlocutores a entender que a situação é definitiva, enquanto se trata, em verdade, de mera avaliação liminar da questão.
O estranho de tudo isso é que a administração da Universidade não é um ente que se vale em si, tendo a obrigação de atender aos interesses de todos que integram a universidade e os servidores, por certo, são parte essencial da instituição. Assim, equivale a desvio de função tratar os servidores como inimigos, negando-lhes o direito fundamental de, pela via sindical e a ação coletiva, efetuarem a defesa de seus direitos trabalhistas.
O mais grave, no entanto, é que a USP militou não apenas contra os servidores mas contra a classe trabalhadora em geral, utilizando todos os seus esforços para provar que é um direito – e, mais, um dever – do empregador efetuar o desconto dos salários dos trabalhadores em greve. Vendo-se amparada pela força de seu nome, construído exatamente por seus quadros de professores, servidores e alunos (grevistas e não grevistas), e pelo apoio da grande mídia, quando não de parte da inteligência produzida internamente na própria instituição, conseguiu convencer a Justiça do Trabalho, a qual, assim, proferiu uma decisão que, sem a devida reflexão, “data venia”, feriu a ordem jurídica e até mesmo preceitos da lógica argumentativa.
De fato, em tempo algum no Brasil, desde quando o direito de greve, com todas as limitações, foi reconhecido, em 1946, se conferiu ao empregador o poder de efetuar o corte dos salários dos empregados em greve como meio de suprimir a greve.
Após a ditadura varguista, que considerava a greve um recurso antissocial nocivo ao trabalho e ao capital e incompatível com os superiores interesses da produção nacional (Constituição de 1937), o Decreto-lei nº 9.070, de 15 de março de 1946, que limitava excessivamente o direito de greve, estabeleceu que o pagamento ou não de salário durante a greve seria uma decisão dos Tribunais do Trabalho e não um ato unilateral do empregador:
“Art. 9º E’ facultado às partes que desempenham atividades acessórias, depois de ajuizado o dissídio, a cessação do trabalho ou o fechamento do estabelecimento. Neste caso, sujeitar-se-ão ao julgamento do Tribunal tanto para os efeitos da perda do salário, quanto para o respectivo pagamento durante o fechamento.”
Mesmo no período da ditadura militar, quando se vislumbrou impedir concretamente o exercício do direito de greve, a Lei n. 4.330, de 1º de junho de 1964, deixou claro que os salários seriam devidos se as reivindicações dos trabalhadores fossem atendidas, partindo, inclusive, do pressuposto de ter sido a greve instaurada para auferir melhores condições de trabalho:
“Art 20. A greve licita não rescinde o contrato de trabalho, nem extingue os direitos e obrigações dêle resultantes.
Parágrafo único. A. greve suspende o contrato de trabalho, assegurando aos grevistas o pagamento dos salários durante o período da sua duração e o cômputo do tempo de paralisação como de trabalho efetivo, se deferidas, pelo empregador ou pela justiça do Trabalho, as reivindicações formuladas pelos empregados, total ou parcialmente.” – grifou-se
Claramente avançando na proteção dos direitos dos trabalhadores, a Constituição de 1988 garantiu aos trabalhadores um direito de greve mais amplo (art. 9º), mas decorrente da avalanche neoliberal da década de 90, a Constituição foi desconsiderada, advindo, assim, em 1989, uma lei que desdisse a Constituição e que, ainda pior, foi interpretada de forma mais restrita do que constava de seus próprios termos.
No aspecto do pagamento do salário, a lei manteve a tradição histórica de não se permitir ao empregador o ato unilateral de cortar os salários como manifestação de poder para impor uma derrota aos trabalhadores.
Veja-se que a Lei n. 7.783/89 não trata dos efeitos salariais da greve, deixando a questão, expressamente, para o âmbito da negociação coletiva ou para eventual decisão da Justiça do Trabalho.
A referência legal à “suspensão do contrato de trabalho” está atrelada à preocupação primordial de proteger o direito de greve, para que o grevista não sofra represálias pelo exercício da greve, notadamente, com a perda do emprego. É fácil verificar isso com a simples leitura do artigo da lei, que trata do assunto:
“Art. 7º Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.
Parágrafo único. É vedada a rescisão de contrato de trabalho durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores substitutos, exceto na ocorrência das hipóteses previstas nos arts. 9º e 14.” – grifou-se
Não se inseriu o legislador no debate doutrinário acerca da diferença entre suspensão e interrupção do contrato de trabalho, que não possui nenhuma referência legal, vale lembrar. O que se pretendeu, desde sempre, foi preservar o emprego dos grevistas perante a greve.
Quanto aos efeitos obrigacionais durante a greve estes devem ser regidos “pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho”.
Não há, portanto, na lei qualquer autorização para o empregador por ato unilateral, cortar salários dos trabalhadores em greve.
Cumpre observar que a Lei 7.783/89 é fruto de uma Medida Provisória, a MP 59 de 26/05/1989, cujo artigo 5º previa:
“Art. 5º A participação em greve legal não rescinde o contrato de trabalho, nem extingue os direitos e obrigações dele resultantes.
Parágrafo único. A greve suspende o contrato de trabalho, assegurando aos grevistas o pagamento dos salários durante o período da sua duração e o cômputo do tempo de paralisação como de trabalho efetivo, se deferidas, pelo empregador ou pela Justiça do Trabalho, as reivindicações formuladas pelos empregados.” – grifou-se
Esse dispositivo, ademais, era uma transcrição do art. 20 da Lei 4.330/64, acima citado, que também negava ao empregador esse poder de impor sacrifício aos grevistas exatamente no momento em que visa estabelecer uma paridade de forças para se chegar a uma negociação que avance na proteção jurídica dos trabalhadores, para fins de atender ao projeto constitucional da melhoria da condição social da classe trabalhadora.
Essa, aliás, tem sido a conduta adotada pela Justiça do Trabalho, de forma majoritária, de somente negar o direito ao salário aos trabalhadores em greve na hipótese da greve ser considerada ilegal ou abusiva, sendo óbvio que não compete ao empregador fazer esse julgamento, pois tenderá sempre a dizer que a pretensão é ilegal ou abusiva.
Ou seja, a investigação histórica demonstra que está totalmente desautorizado conferir à Lei 7.783/89 um sentido mais restritivo do direito de greve do que aquele que já se tinha naquela que ficou conhecida como “lei antigreve” (n. 4.330/64), do período da ditadura militar.
Mas mesmo na linha restritiva tem-se entendido, atualmente, que não pode haver corte de ponto quando os trabalhadores realizam a greve movidos por uma ilegalidade cometida pelo empregador e isso, inclusive, foi admitido pela própria decisão que conferiu essa “vitória” à administração da USP.
Não se ateve, no entanto, ao caso específico dos servidores da USP, que foram empurrados para a greve, a partir de 12 de maio, por diversas ilegalidades cometidas pela administração da USP.
Levando adiante de forma radical seu projeto, declarado no início da gestão do atual Reitor, de eliminar o sindicalismo da universidade, a Reitoria, em 06 de abril, enviou um Ofício ao SINTUSP, conferindo-lhe o prazo de 30 (trinta) dias para que deixasse o cômodo que, de forma consentida por todas as administrações da Universidade, inclusive a atual, ocupa no campus desde a década de 60. Para tentar justificar o despejo a Reitoria partiu de uma suposta necessidade acadêmica, mas esta necessidade que seria, notoriamente, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), pois o imóvel se situa no âmbito de suas dependências, não foi reconhecida pela respectiva unidade. Bem ao contrário, a ECA, por intermédio de sua Congregação, em reunião realizada no dia 27/04/16, deixou claro, em nota, que “não solicitou à Reitoria da USP a desocupação da sede do SINTUSP para efeito de reorganização dos espaços acadêmicos da Escola”.
Além disso, a Reitoria tem promovido um autêntico desmonte da universidade, agravando as já péssimas condições de trabalho de alguns setores, como o Hospital Universitário (HU) e os restaurantes, sendo que a deterioração do atendimento no HU interfere de forma dramática na vida de servidores que atuam no HU e da população que procura atendimento de saúde no local, tratando-se, pois, de uma ilegalidade cujos efeitos atinge uma gama enorme de pessoas.
E não é só, pois após o primeiro PIDV, que gerou redução dos quadros de servidores, vários trabalhadores estão sendo submetidos a uma grave pressão assediante no ambiente de trabalho, situação que conduziu, agravando o sofrimento de muitos servidores, à redução da aceitação de novas matrículas nas creches da USP.
As ilegalidades cometidas pela direção da USP, portanto, foram inúmeras e a greve se apresentou, sem a menor dúvida de avaliação, como a única e legítima forma de tentar barrar o cometimento dessas ilegalidades.
Não bastasse isso, em 16 de maio, a direção da universidade, seguindo orientação do CRUESP, anunciou que daria apenas 3% de reajuste salarial, descumprindo, como já fizera em 2014, o direito constitucionalmente garantido aos servidores da recomposição anual dos salários (inciso X, do art. 37, da CF), pois o índice inflacionário do período (de maio de 2015 a maio de 2016) foi superior a 11%[1].
E não se pode ter qualquer dúvida de que não conferir a recomposição, descumprimento obrigação constitucional, configura um ato ilícito e o argumento da impossibilidade orçamentária pode até ser economicamente relevante mas não descaracteriza a ilicitude, que também não se elimina pela oferta de uma recomposição bem inferior àquela que seria devida, considerando o índice inflacionário anual.
Não fosse assim, qualquer pessoa, passando necessidade econômica, poderia entrar em um supermercado, pegar um produto e sair sem pagar e quando fosse abordada dizer que não tem o orçamento necessário para cumprir a obrigação referente à despesa e sair ilesa de qualquer responsabilização. Aliás, em se tratando de crime famélico, não haveria efeito jurídico concreto mesmo, mas não é esse o caso da USP, até porque quem foi deixado em estado de necessidade alimentar foram os servidores, a quem se negou a recomposição salarial e não a USP, sendo que, ainda, se negou aos servidores o recebimento do próprio salário.
E não se diminua o sofrimento de quem deixa de receber um reajuste, garantido constitucional, e quanto ao qual, portanto, tem legítima previsibilidade quanto ao recebimento, pois os compromissos obrigacionais dessas pessoas também sofrem igual, ou superior, reajuste, fazendo com que se estabeleça um enorme descompasso no orçamento familiar, quando não, necessidades extremas.
A ordem jurídica, como tradicionalmente aplicada, não garante aos trabalhadores a quem não se efetivou o pagamento do reajuste salarial (ferindo a regra básica da lógica capitalista, que é a previsibilidade a possibilidade de se verem livres das obrigações assumidas com Bancos, casas comerciais, contas de luz, água, telefone e supermercados por meio da utilização do argumento de défict orçamentário.
Então, o que se está assistindo é o espetáculo grotesco de se verem justificados os sofrimentos impostos aos servidores da USP (resvalando em toda a classe trabalhadora) por uma suposta aplicação da ordem jurídica, mas partindo de um pressuposto de que as normas desse mesmo ordenamento, das quais os servidores são titulares, podem ser desrespeitadas.
O inciso X do artigo 37 da Constituição Federal foi simplesmente negado como um direito, pois se tivesse sido atendido enquanto tal não se chegaria à conclusão judicial à que se chegou, afinal, a própria decisão reconhece que os salários são devidos quando o empregador comete uma ilegalidade.
No fundo, o que se acabou dizendo, certamente sem maiores reflexões, dada a urgência que se requer das decisões judiciais, impossível de ser atendida dado o volume de trabalho a que os juízes são submetidos, foi que a USP pode descumprir várias obrigações legais perante os servidores e estes não têm o direito de se insurgir, a não ser que estejam dispostos a sofrer nova violência do seu algoz, que, no caso, de forma totalmente desviada de lógica de finalidade, é aquele que deveria administrar os interesses coletivos da universidade e não atuar com base em um projeto privatizante não debatido democraticamente no seio da universidade.
De todo modo, ao contrário do que sugere o “malicioso” email enviado pela administração da universidade, a questão não está decidida de forma definitiva, mantendo-se, pois, a esperança de que o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, por intermédio da sua Seção de Dissídios Coletivos, que, sem favor algum, está entre as melhores do Brasil, no quesito compreensão dos legítimos interesses da classe trabalhadora, perceba a contradição contida na decisão liminar e reverta essa situação, que poderia consolidar um grave atentado à ordem jurídica constitucional trabalhista e aos Direitos Humanos.
Enquanto isso, o que compete a todos e todas que compreendem as aflições e sofrimentos que os administradores da USP impuseram aos trabalhadores e trabalhadoras que, com sacrifício pessoal, se dispuseram a lutar pelo respeito à Constituição, é expressar sua solidariedade concreta por meio da contribuição com o fundo de greve, cabendo deixar claro que tomarei essa medida assim que concluir esse texto.
São Paulo, 19 de julho de 2016.
- Fundo de Greve (SINTUSP): Banco do Brasil, Agência 7068-8, Conta Poupança 5.057-1 (variação 51).
[1]. http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/05/igp-m-avanca-de-abril-para-maio-e-sobe-11-em-12-meses.html, acesso em 19/07/16.