Jorge Luiz Souto Maior
Ao contrário do que se tenta difundir, a legislação trabalhista não parte do pressuposto de que o trabalhador é um coitado, tanto que uma das características que mais sobressai da legislação é a do seu caráter repressor, que atinge, precisamente, os trabalhadores.
A função da legislação do trabalho, primariamente, é proteger o modelo capitalista de produção. Assim, se pudesse ser acatado o argumento de que a proteção jurídica só tem sentido se o protegido for tomado como coitado, então se poderia dizer que o capitalismo é um coitadinho em face do poder da classe trabalhadora, já que depende da força coercitiva do Direito e do Estado para se manter.
E por que, primariamente, a legislação do trabalho protege o modelo capitalista de produção?
Nos países do capitalismo central, o advento de uma legislação do trabalho, buscando superar os preceitos jurídicos liberais, se deu como forma de tentar corrigir a intensa tensão social que advinha das péssimas condições de trabalho a que eram submetidos os trabalhadores e que provocava, inclusive, uma quantidade enorme de acidentes do trabalho.
A submissão a esse estado de coisas, que a nenhum historiador é permitido desconhecer, não se tratava de efeito de demência mental dos trabalhadores, mas de uma consequência lógica determinada pela luta por sobrevivência.
Ora, se todos os trabalhadores são "livres" para venderem a sua força de trabalho pelo preço que bem entendem, no estágio extremo da necessidade, haverá sempre quem aceite trabalhar mais, por menos, o que puxa todos para baixo.
Como os capitalistas, também eles, estão submetidos à lógica do capital, que lhes impõe concorrer com outros capitalistas igualmente na busca de sobrevivência, se verão impulsionados a contratar os que aceitem os menores salários.
O efeito desse capitalismo desorganizado, isto é, gerido pela lógica liberal sem limites, todos conhecem: duas guerras mundiais.
Não é à toa, pois, que na Parte XIII, do Tratado de Versalhes, 1919, documento que representa a formação de compromissos entre os Estados para a criação de uma nova ordem para o capitalismo, estão fixados os princípios básicos das relações de trabalho, notadamente o de que o trabalho humano não é mera mercadoria de comércio, de modo a afastar, por completo, o raciocínio simplista, matemático, dessa relação.
Assim, não se pode falar meramente em custo do trabalho, pois, primeiro, é de vidas que se está falando (e não exclusivamente das vidas dos trabalhadores, mas de todos) e, segundo, a organização jurídica do modelo busca preservar a paz mundial, como reconheceu, expressamente, a Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT-1919).
A aposta feita é: o capitalismo pode ser um modelo eficiente para assegurar a todas as pessoas uma existência digna.
Então, é ilegítimo considerar que o aumento do sofrimento alheio possa ser invocado como um mal necessário para salvar a competitividade das empresas, até porque, como visto, o efeito que se produz é a destruição de todas as empresas.
No Brasil, vale lembrar, a legislação trabalhista foi criada dentro do propósito de estimular a formação do capitalismo industrial, vez que a economia oligárquica, que ainda estava pautada pela exportação de matéria-prima produzida com trabalhadores em condições ainda típicas da escravidão, faliu, concretamente, em 1929.
Por meio da legislação, conferindo compensações pela venda da força de trabalho, procurou-se criar um mercado de trabalho, para favorecer a proliferação do parque industrial e isso se fez, inclusive, com o apoio dos industriais, os mesmo que, antes, eram arredios à lei trabalhista.
Regulando e favorecendo o modo de produção capitalista, a legislação só confere direitos ao trabalhador que efetue a venda da sua força de trabalho de forma duradora, favorecendo aos planejamentos necessários ao empreendimento capitalista: salário (depois de 30 dias de trabalho); DRS (trabalho em todos os dias da semana); 30 dias de férias (após 12 meses de duração do contrato de trabalho e desde que não tenha faltado mais de 05 dias ao trabalho no mesmo período); 13º salário (1/12 a cada mês trabalhado); verbas rescisórias integrais (desde que não tenha pedido demissão ou sido dispensado por justa causa)...
E a legislação estabelece um padrão regulatório, para evitar que os empregadores, concorrendo entre si, destruam o projeto que interessa ao capital.
E, no caso do Brasil, esse projeto sequer chegou a ser efetivado porque a classe dominante, embora tivesse apoiado o governo Vargas no ato da criação, em mais larga escala, dos direitos trabalhistas, nunca chegou a assumir a importância regulatória da legislação, demonstrando não querer abrir mão sequer de uma pequena parcela de seu poder sobre os trabalhadores.
Com isso, a legislação trabalhista no Brasil sempre foi abertamente desrespeitada pelos empregadores, que, em aparente contradição, nunca abriram mão do caráter repressivo da lei e das estruturas do Estado para abafar as lutas dos trabalhadores.
Decorre dessa situação, e não da complexidade da legislação, o enorme número de reclamações trabalhistas na Justiça do Trabalho, órgão instaurado em 1941. Lembre-se de que mais de 40% das reclamações têm como objeto verbas rescisórias não pagas, devidas de forma incontroversa[i].
Para se ter uma ideia do tamanho da ineficácia da legislação trabalhista no Brasil, a Convenção 81 da OIT, que prevê a criação de um serviço governamental de Inspeção do trabalho, somente foi ratificada pelo governo brasileiro, em 29 de maio de 1956, por meio do Decreto n. 24. Ocorre que, em 5 de abril de 1971, o governo militar efetuou a denúncia da referida Convenção, que somente voltou a vigorar no Brasil a partir de 11 de dezembro de 1987, por intermédio do Decreto n. 95.461.
Mas, em 14 de setembro de 1995, sob o fundamento de que competiria ao Ministério do Trabalho “promover a negociação coletiva como forma de consolidar a modernização das relações do trabalho”, a Portaria n. 865 do Ministério do Trabalho e Emprego, proibiu os auditores fiscais de impor multas por descumprimento de condições estabelecidas em convenções ou acordos coletivos de trabalho, atuando de forma incisiva apenas quando a condição de trabalho, imposta por Convenção ou Acordo Coletivo de Trabalho pudesse “acarretar grave e iminente risco para o trabalhador”.
De fato, o que se tem é um retumbante atraso no que se refere à imposição da aplicação da legislação trabalhista no Brasil, o que é ainda mais incisivo no meio rural.
A fiscalização do trabalho no meio rural somente foi prevista em 1994, com a edição da Instrução Normativa n. 24, e iniciada, de fato, em 1995, com a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho, com o objetivo de averiguar as denúncias de trabalho escravo, sendo que isso se deu apenas porque, em 1993, a OIT, divulgou um relatório que trazia dados relativos a 8.986 denúncias de trabalho escravo no Brasil.
A presença fiscalizatória do Estado no trabalho rural, inclusive, não foi muito bem recebida nas estruturais arcaicas do poder e isso motivou, em 28 de janeiro de 2004, o assassinato de três auditores fiscais e de um motorista, servidor do Ministério do Trabalho, em Unaí/MG, o que, por efeito inverso do pretendido, acabou impulsionando uma mudança de postura das instituições brasileiras frente à questão do trabalho rural, tendo sido, inclusive, fixada a data de 28 de janeiro como o "Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo".
Vale reparar, de todo modo, que se está falando de fato ocorrido em 2004, ou seja, há apenas 12 (doze) anos atrás, sendo que a abolição da escravatura se deu, legalmente, há 128 (cento e vinte e oito) anos.
E não se esqueça de que está na pauta do dia, que foi iniciada, aliás, na ADI 5209, com a decisão proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowisk em 23 de dezembro de 2014 (já revista,) a divulgação da lista do trabalho escravo elaborada pelo Ministério Público do Trabalho; o que tem sido evitado, com todas as forças, pelo governo federal[ii].
A atuação histórica da Justiça do Trabalho, colaborando com a ineficácia da legislação trabalhista também não pode ser ignorada, ainda mais quando se procura, de forma indevida, acusar a Justiça do Trabalho de prejudicar o desenvolvimento econômico das empresas por meio de uma suposta proteção indevida do trabalhador.
Ora, desde sua efetiva instalação, em 1941, a Justiça do Trabalho foi imbuída da lógica da conciliação e isso criou o vezo de considerar que a imposição da efetiva aplicação da lei não é um papel do Judiciário trabalhista. Os acordos judiciais promovidos, sobretudo com relação a empresas que descumprem reiteradamente a legislação, tornam a prática ilícita economicamente vantajosa, retirando, até mesmo o caráter de ilicitude da conduta.
É dentro desse contexto, aliás, que os empregadores chegam mesmo a considerar que possuem um direito de descumprir os direitos trabalhistas e que uma decisão de algum juiz do trabalho, que determina o cumprimento da lei, constitui um abuso de autoridade.
A lógica da ineficácia das leis, motivada por despreocupação institucional e pela política de enfrentamento adotada por empregadores, que desprezam, inclusive, a natureza de direito à legislação do trabalho, faz com que somente no Direito do Trabalho não incida o preceito da reincidência, que constitui, em todos os demais ramos do Direito, um agravamento da prática ilícita.
No Direito do Trabalho no Brasil, segundo prática adotada no âmbito da Justiça do Trabalho, a empresa que descumpre reiteradamente a legislação em vez de ser punida pela reincidência acaba criando vínculos e passa a ser tratada como “parceira” da Justiça.
Enfim, diante dos dados históricos concretos, é um equívoco completo dizer que os trabalhadores têm sido protegidos (ou tratado como "coitados", como se tem dito) pelo Direito e pela Justiça, ainda mais de forma exagerada.
O interessante é que se utiliza esse argumento de que se deve tratar o trabalhador como um sujeito maior e capaz, para que esteja livre para escolher a forma de como quer regular sua relação com o empregador, ainda mais quando estiver representado por seu sindicato, fazendo, pois, a defesa do tal “negociado sobre o legislado”, mas não se abre mão da intervenção dos aparelhos de Estado para manter sob controle a classe trabalhadora.
Concretamente, quando o assunto é o direito de greve os arautos da “modernidade” e da igualdade e da liberdade negocial logo dizem que os trabalhadores não podem fazer greve quando quiserem, pelos motivos que definirem e pela forma que elegerem. Diante de uma greve, os "libertários" recorrem à força do Estado para coibirem a mobilização política dos trabalhadores.
Para se ter um exemplo, quando os trabalhadores anunciaram que fariam um dia de paralisação, no último dia 15 de março, para defenderem os seus direitos trabalhistas e previdenciários ameaçados pelas "reformas", os empregadores, que requerem a reforma trabalhista em nome da modernização e contra o “paternalismo” do Estado, preconizando a "livre negociação", recorreram à Justiça (Cível e do Trabalho), para que esta impedisse a ação dos trabalhadores e, claro, obtiveram decisões favoráveis à sua pretensão, mesmo da Justiça do Trabalho, a qual determinou que os metroviários, em São Paulo, mantivessem 100% do seu efetivo em atividade nos horários de pico (das 6h às 9h e das 16h às 19h) e de 70% nos demais horários, sob pena de aplicação de multa diária ao Sindicato no valor de R$ 100 mil[iii].
E vale reparar que sempre foi assim.
Lembrem-se, dentre tantas medidas e decisões: do Ofício emitido ao Departamento de Polícia Social pelo Presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Manoel Caldeira Netto, em 12 de dezembro de 1952, para, a propósito do julgamento de uma greve, indagar ao Chefe de Polícia quais seriam as “convicções ideológicas e ação subversiva de todos os membros da Diretoria” dos sindicatos envolvidos no movimento paredista; do “massacre de Ipatinga”, em 1963; do que se passou nas greves de Contagem e Osasco, em 1968; das greves do ABC, em 1979; do “massacre de Volta Redonda”, em 1988; da greve dos petroleiros, em 1995; do massacre em Eldorado dos Carajás, em 1996; da opressão nas greves nas usinas de Jirau e Santo Antônio, no Estado de Rondônia, em 2011; do Pinheirinho (e de tantas outras operações policiais em reintegrações de posses); da greve dos professores do Rio de Janeiro, em 2013; dos atentados aos trabalhadores nas greves dos metroviários em São Paulo, e, 2014; da forte represália a 50 garis no Rio de Janeiro, em 2015 e do massacre a professores, em Curitiba, em 2015, para citar apenas alguns poucos exemplos.
Não se esqueça de que, segundo a linguagem do antigo Setor Trabalhista, integrado à Divisão de Polícia Política e Social (DPS), órgão do Departamento Federal de Segurança Pública, criado em 1944, os grevistas eram tratados como “agitadores” ou “comunistas”.
A Lei n. 38, de 4 de abril de 1935, declarava a greve um delito, quando realizada no funcionalismo público e nos serviços inadiáveis. A Constituição de 1937 definiu a greve como recurso antissocial nocivo ao trabalho e ao capital e incompatível com os superiores interesses da produção nacional. Na mesma linha, o Decreto-Lei n. 431, de 18 de maio de 1938, considerava crime tanto a promoção da greve quanto a simples participação no movimento grevista; e no Decreto-Lei n. 1.237, de 2 de maio de 1939, eram fixadas as sanções de suspensão, despedida e prisão para grevistas, o que foi reforçado no Código Penal de 1940.
Após um período de certa tolerância, na década de 1953 a 1963, a greve volta a ser objeto de repressão. Dois meses após o golpe de 64 adveio a Lei n. 4.330, de 1º. de junho de 1964, que limitou o direito de greve ao ponto de torná-la quase impossível de ser realizada, além de proibi-la expressamente no funcionalismo público.
Na “lei” de segurança nacional, instituída, em março de 1967, mediante decreto-lei, pelo então Presidente Castelo Branco, usando os poderes que lhe foram conferidos pelos Atos Institucionais nº 2, de 27 de outubro de 1965, e nº 4, de 7 de dezembro de 1966, considerou-se crime contra a segurança nacional, a ordem política e social, a promoção de greve que implicasse a paralisação de serviços públicos ou atividades essenciais e tivesse como propósito coagir qualquer dos Poderes da República, prevendo uma pena de reclusão, de 2 a 6 anos, para os incursos em tal prática.
Presentemente, embora o art. 9º da Constituição Federal tenha garantido o amplo direito de greve aos trabalhadores, a jurisprudência e a doutrina continuam negado o direito constitucional de greve, fazendo passar sobre a Constituição uma lei da era neoliberal, de 1989, cujo objetivo era exatamente esse de desdizer, no particular, a Constituição (Lei n. 7.783/89).
Os defensores da reforma trabalhista não projetam um ambiente de negociação em que a ameaça do desemprego não possa ser utilizada e, por isso, não requerem nenhuma pressa do Congresso para regular a proteção do emprego contra a dispensa arbitrária, conforme assegurado aos trabalhadores no inciso I, do art. 7º da CF/88.
Argumentam que a Constituição de 1988 reconheceu os acordos e as convenções coletivas de trabalho, como se isso não estivesse previsto nas diversas Constituições brasileiras desde 1934 e, propositalmente, se esquecem de dizer que se a Constituição estimulou a negociação isso se deu dentro do contexto das demais previsões constitucionais que garantiram aos trabalhadores a proteção contra a dispensa arbitrária (art. 7º, I) e a liberdade para o exercício da greve (art. 9º).
No fundo o que desejam é uma negociação na qual os empregadores, com a proteção dos aparelhos de Estado, coloquem a espada do desemprego sobre as cabeças dos trabalhadores, impedindo qualquer reação coletiva por parte destes. Ou seja, o que se quer, pelo argumento da liberdade, é alcançar uma legitimação para a retirada de direitos, dizendo que, afinal, foi consentida pelos próprios trabalhadores.
Se o argumento da liberdade negocial fosse sério, ele seria acompanhado da defesa da liberdade do exercício da greve e da liberdade sindical, impedidos que são pela intervenção do Judiciário, pelo uso da força policial e pela coerção econômica advinda da ameaça da eliminação de empregos, que constituem a base da preconizada "livre negociação".
Ou seja, só aludem à maioridade civil e à condição de cidadania plena dos trabalhadores quando se trata de conferir legitimidade aos trabalhadores para que possam, "livremente", abrir mão de direitos, não lhes reconhecendo o mesmo "status" jurídico quando o tema é a defesa e a luta por direitos.
[i]. http://www.conjur.com.br/2015-set-15/40-acoes-trabalhistas-tratam-verbas-rescisorias
[ii] BEZERRA JR, Carlos. Lista suja do trabalho escravo: a “delação” que não interessa. In: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/lista-suja-do-trabalho-escravo-a-delacao-que-nao-interessa
[iii]. http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,trt-determina-funcionamento-de-100-do-efetivo-do-metro-em-horario-de-pico,70001699391