Nunca uma folha em branco havia sido tão desafiadora para mim quanto nos vários momentos em que, após Valdete, semanas atrás, me enviar uma mensagem anunciando que eu havia sido o escolhido para prefaciar o seu novo livro, tentei expressar por escrito os sentimentos e os pensamentos que me ocorriam a este respeito.
Devo consignar que aceitar esta imensa honra foi extremante fácil e, por isso mesmo, o fiz de pronto e com imenso orgulho e incontida alegria.
Mas, mal sabia eu, naquele instante, as dificuldades que a elaboração do texto me traria. Isto porque, enquanto a escrita é lenta e necessariamente estruturada, os sentimentos e pensamentos são muito rápidos, ilimitados, repletos de incompletudes e, muitas vezes, um tanto quanto caóticos, ao menos no meu caso.
Foram sensações muito estranhas, pois tudo se apresentava, a princípio, como reflexões interessantes, mas todas meio desconexas, complexas e incompletas.
Conseguia pensar muitas coisas ao mesmo tempo, transpassando umas ideais sobre as outras. O processo mental estabelecido se materializava na imagem de uma espiral que girava também de modo reverso, mas que se direcionava para lugar nenhum: um fundo escuro ou mesmo um outro universo.
Certamente, a escrita não conseguia acompanhar esta inspiração frenética, fruto do êxtase de ter sido agraciado com o convite, e a cada nova tentativa a folha em branco, embora fosse arranhada com rabiscos e expressões belas na forma mas vazias no conteúdo, saia triunfante.
A sensação era a de que quanto mais eu pensava ou quanto mais ideias eu tinha, mais distante ficava da concretização da escrita do texto.
Tudo isto, por certo, tinha um motivo. É que eu me impus o obrigação de que não podia errar: o prefácio teria obrigatoriamente que conseguir expressar, com toda exatidão, a essencialidade da autora, enquanto ser humano, de seu inigualável contributo para o conhecimento jurídico trabalhista, e a grandiosidade da obra ora publicada.
Mas querendo não errar, cometi um enorme erro: coloquei a forma sobre a essência.
E não era apenas esse o problema. Também considerei que a essencialidade e a imprescindibilidade referidas teriam que ser ditas com outras e muitas mais palavras e por múltiplos argumentos.
Para buscar inspiração, fiquei lendo e relendo o texto do novo livro da Valdete, até que, enfim, a ficha caiu.
Ora, uma das principais lições trazidas por Valdete é a de que o procedimento não pode ser obstáculo para se atingir o objetivo final. No entanto, estava eu, me perdendo no procedimento, tornando-o um fim em si mesmo, complexo e mais “importante” que a própria finalidade da minha tarefa.
Como ensina a autora, o procedimento, bem ao contrário, é o instrumento para que o objetivo seja alcançado e tudo que se lhe integra de forma exógena e perturbador do conjunto de suas regras acaba contribuindo para criar obstáculos ao seu regular percurso. O procedimento deve ser simples, sendo sua função própria “garantir que a verdade poderá ser alcançada”, destaca ela.
Mas as pessoas, quando vislumbram o interesse profissional da reserva de mercado, principalmente no âmbito do direito, costumam levar às últimas consequências a crença de que, para ser importante ou para demonstrar a importância daqueles que falam a seu respeito falam com “autoridade”, o objeto de análise precisa ser complexo ou se apresentar como tal.
Ocorre que esta complexidade, notadamente quanto aos temas relativos ao processo do trabalho, gera um desvio de percurso e, de forma paradoxal, constitui, isto sim, uma prova da falta de domínio do desconhecimento jurídico-processual daqueles que a introduzem e a sustentam.
É a simplicidade, pois, que se apresenta, como o resultado do conhecimento e do exercício pleno da razão e não o hermetismo.
Só por isso, ou seja, por recuperar a essência do procedimento trabalhista, a leitura do novo livro da Valdete se apresentaria como essencial.
Mas Valdete vai muito além.
Buscando a formulação de uma efetiva teoria geral do processo do trabalho, a obra inicia o desafio demonstrando o quanto é equivocado o “atrelamento” que se promove, na cultura e na prática jurídicas, do processo do trabalho ao processo civil, o que, inclusive, induz a pensar o processo do trabalho a partir da padronização e dos pressupostos individualistas da regulação civilista.
O processo do trabalho, como adverte a autora, está vinculado ao direito do trabalho e, para cumprir sua função de conferir efetividade às normas jurídicas trabalhistas, deve refletir todos os princípios e técnicas do direito material que instrumentaliza.
Afinal, como exprime Valdete, “o processo do trabalho não se separa do Direito material que ele deve efetivar” e, para tanto, o procedimento trabalhista, partindo do reconhecimento da desigualdade das partes, reproduz, em concreto, o princípio da proteção, não para igualar ou equilibrar as partes, mas para impedir que a desigualdade reverbere durante o trâmite processual.
O processo trabalho, assim, também se move pela imperatividade da norma trabalhista, pelos princípios da indisponibilidade ou irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas, primazia da realidade e continuidade, assim como pelas “técnicas de aplicação dos princípios”, como o “in dubio pro operario”.
Sobre este aspecto basilar, conclui a autora que “simplicidade, informalidade, oralidade inquisitorialidade, celeridade são pressupostos para um procedimento que atenda à urgência do direito material de que é instrumento”.
Prosseguindo, a obra se direciona para uma abordagem plenamente inovadora e, ao mesmo tempo, simplesmente fundamental – que é, inclusive, demonstração suficiente do quanto as concepções teóricas no âmbito do processo do trabalho, produzidas até aqui, eram incompletas e, por isso mesmo, defeituosas.
Refiro-me à “perspectiva interseccional”, por meio da qual a autora faz o registro em torno da “necessidade de que o Direito reconheça e dê conta das questões que decorrem da racialização, do capacitismo, da distinção binária dos corpos e de outras opressões”.
Sem a identificação dos corpos e a revelação das relações sociais que historicamente consagraram desigualdades e opressões não é possível entender como as estruturas jurídicas funcionam para manter o “status quo” e o quanto os(as) denominados(as) “operadores(as) do direito” são sujeitos ativos dessa instrumentalização.
A obra, aliás, refere como o direito atua em prol da preservação das estruturas da sociedade capitalista, reforçadas pelas diversas formas de opressão culturalmente reforçadas e constantemente revitalizadas, mas também trata das possibilidades dadas, no próprio direito, para a criação de fissuras e a promoção de mudanças concretas na realidade social e nas vidas das pessoas, mais precisamente, da classe trabalhadora.
Daí porque Valdete não se contenta em “limpar” o procedimento trabalhista, expungindo todas as interferências que lhe foram indevidamente introduzidas. Também preconiza a necessidade de se vislumbrarem as possibilidades, juridicamente estabelecidas, de sobrepujar os limites previamente concebidos.
É neste sentido, inclusive, que Valdete fala, de modo original e extremamente pertinente, em transgressão.
Segundo sua lição, é preciso transgredir a concepção de que o direito tem seus efeitos limitados ao propósito de conservação das estruturas existentes e historicamente construídas, para extrair efeitos que possam contribuir para tensionar o próprio sistema e, de fato, melhorar a condição social e econômica da classe trabalhadora.
Transgredir é, pois, ir além.
Um passo importante neste sentido se expressa na passagem da obra em que a autora trata da relevância de se formular um “pensamento conjunto e contínuo, de reflexão crítica sobre esse instrumento de realização da justiça, que nem sempre foi assim compreendido e que no mais das vezes é conduzido sem sequer tangenciar as questões sociais que implicam as pessoas que serão diretamente atingidas pela decisão judicial. Alguns passos, portanto, na direção de uma teoria geral do processo do trabalho, que reconheça suas peculiaridades, sua razão de existência e sua funcionalidade no modelo de organização social em que vivemos.”
Além disso, adverte que é necessário olhar para trás e compreender “como a realidade brasileira foi construída” e, como, neste percurso, se naturalizaram as violências de que são vítimas, cotidiana e historicamente, os corpos negros, de mulheres e das pessoas com deficiência.
Como diz Valdete, “a forma como compreendemos a relação de trabalho e, por consequência, naturalizamos a violência do tempo do processo, suportado por quem busca a Justiça do Trabalho, tem íntima relação com a persistência dessa cultura transposta e imposta sobre um povo que não pôde manter suas origens, nem honrar suas formas próprias de resolução dos conflitos sociais.”
Extraem-se, enfim, da obra, várias compreensões que constituem elementos fundamentais para a (re)construção de uma autêntica teoria geral do processo do trabalho, como as seguir:
“A escravização de pessoas em países violentamente colonizados foi racionalizada, naturalizada e defendida por autores até hoje considerados fundamentais para a compreensão do direito e do processo.”
(….)
“Toda a racionalidade moderna fundada na noção de um Sujeito de direitos abstrato, universal, livre e igual porque nasce detentor da própria força de trabalho (SEVERO, 2016) está intrinsecamente relacionada à racialização dos corpos, como modo de justificar formas diferenciadas de espoliação nos países colonizados. Quando hoje lidamos com uma, por vezes incompreensível, dificuldade hermenêutica diante de alguns dispositivos legais, interpretados de modo a esvaziar direitos trabalhistas, ainda quando a literalidade não autoriza tal forma de aplicação, é disso que estamos tratando. A insistência em repetir que a lei veda a cumulação de adicionais de salário para condições insalubres e perigosas de trabalho; a oitiva de testemunhas quando o empregador não apresenta nos autos os registros de horário; a aplicação de pena de confissão ao reclamante por não comparecer à audiência, são alguns dos exemplos que serão trabalhados neste livro e que revelam um comprometimento quase atávico com essa racionalidade, que soma a naturalização da exploração do trabalho pelo capital à compreensão de que trabalhadoras e trabalhadores (“quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres”, como diz a música de Gilberto Gil) são cidadã(o)s de segunda categoria.”
Por fim, são apresentadas informações importantíssimas acerca de como e porque foi criada a Justiça do Trabalho e uma reflexão mais que urgente sobre quem são as pessoas que compõem o Judiciário trabalhista.
Sendo conduzido pelo texto, pude abandonar o peso da obrigação que me havia imposto. Não precisava mais expressar palavras de uma forma “que nunca foram ditas” ou com mensagens cifradas e indiretas.
Simplesmente, fazendo um breve e até superficial relato da obra prefaciada, me dei conta de que estava atingindo o objetivo de falar o quanto é fundamental e urgente a leitura do texto apresentado por Valdete. É que a grandiosidade da obra em questão se expressa em si mesma, não requerendo, pois, ingerências externas, como, ademais, se dá com o procedimento trabalhista.
Esta constatação, aliás, é o próprio efeito da simplicidade preconizada na obra.
Neste contexto, falar sobre a autora se tornou bem mais fácil, até porque Valdete é uma pessoa verdadeiramente simples e que gosta de ser tratada em pé de igualdade com todas as demais. Por trás de sua personalidade forte, de alguém de luta, que não verga, que não se cala e que está sempre disposta a enfrentar todos obstáculos de forma obstinada, sobretudo quando depara com situações que ferem justamente o preceito da igualdade, está uma pessoa amável, amigável, gentil, generosa, solidária e extremamente sensível, como, aliás, devem ser mesmo, idealmente, os seres humanos.
Todas as pessoas que efetivamente conhecem a Valdete, seja no convívio mais próximo, seja por meio do processo de aprendizado recorrente que seus textos e experiências de vida fornecem, nutrem por ela um sentimento tão profundo e bonito, mas que, singelamente, se expressa em uma palavra: amor.
Nós te amamos, Valdete!
Simples assim...