Mais um dia vem
Com ele uma mulher vai levantar
No rosto a água lava
O que não deu pra descansar
O dia tá chamando no portão
Quanto tempo faz
Que ela nem se olha devagar?
Barraco sem espaço
Prum espelho pendurar
Criança chora e haja colo pra ninar
No meio do dia sente esvaziar-se
Sabe que seu corpo quer sonhar
Mas ela está só, tem que segurar
A realidade vem gritar
E a noite é linda, escura como sua pele
E ela chora, como se fosse cantar!
(Ana Costa e Zélia Duncan)
Estou há semanas pensando em escrever sobre o oito de março(i). Por quê? Oras, porque é muito importante escrever no dia da mulher. O calendário na parede me convoca, me cobrando desde fevereiro que esse ano eu me organize para tal.
Todo ano, no entanto, exceto as vezes em que colaborei junto a outras mulheres com a escrita dos panfletos e textos de chamada dos atos de 8 de março na Baixada Santista, eu nunca consigo escrever. Há alguns motivos para isso, mas cansaço no sentido figurado, ou não, traduzem.
Esse ano, sendo muito franca, estou exausta. A pandemia não acabou (ontem, dia 07 de março de 2022, os números oficiais apontaram que tivemos 210 mortes por covid-19) e não paramos desde o início dela. Considerando que o trabalho de boa parte de nós foi aumentado muito nesse período de cuidados redobrados com a contaminação (nós que tivemos a possibilidade de exercer esse direito) temos hoje que aguentar discursos irrefletidos de muitos de que já tivemos tempo para nos adaptar. Como se adaptar ao aumento excessivo de trabalho se nosso dia continua a ter 24 horas. Isso eu não entendo. Bem, quem estiver lendo e me conhece dirá que eu estive sempre exausta nos últimos tempos e não mentirá.
Busco, apesar disso, ou melhor, justamente por isso, continuar militando como e quando dá, empurrada muitas vezes pela demanda imposta por tempos de massacres neoliberais. Estou muito cansada e desconfio que isso seja o normal de nós mulheres. Mas não falamos disso, assim como não falamos sobre o quanto a romantização da maternidade nos massacra e aprisiona.
Estamos todas cansadas? Creio que sim e buscando nos anestesiar como dá.
Aí vem o oito de março, há uma enxurrada de convites para textos, gente te chamando para atividades variadas de palestras, lives, rodas de conversa, para publicar e por aí vai. Corremos desesperadamente para dar conta da demanda, pois é preciso colocar em debate vários pontos invisibilizados ao longo do ano. Passadas as primeiras semanas de março, tudo volta ao que sempre é: e segue o baile. Atualmente, nos habituamos a dizer, ainda, concordando com esse flow insano neoliberal: seguimos! Não! Eu quero parar e refletir para que lugar estamos indo hoje!
Esse ano eu me deparei em duas organizações com debates que colocavam as questões que atingem diretamente mulheres trabalhadoras, negras, periféricas, indígenas e trans como não sendo pautas que unem todas as mulheres. Aí logo nasce o questionamento: e que pauta é essa? A construída em apartamentos espaçosos dos bairros finos das grandes capitais do país? Se é, vamos com calma, pois eu não quero seguir por aí.
Ele nasce da proposta de duas socialistas na Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas. No evento que aconteceu em Copenhague em 1910, Clara Zektin e Alexandra Kollontai propuseram a criação de um dia internacional das mulheres a ser comemorado todos os anos. O oito de março foi o pontapé para a maior revolução do século passado.
Em oito de março de 1917 mulheres russas saírm às ruas da cidade de Petrogrado. Essas mulheres – trabalhadoras, esposas, mães foram às portas do czar exigir pão - pois lhes faltavam bens essenciais para sobreviverem e os salários eram muito baixos - e paz, com a volta de seus filhos e maridos das trincheiras. Esse ato deu início à Revolução Russa. Não é retórica dizer que a revolução ou será feminista ou não será. A história demonstra isso e mais de uma vez, mas isso é assunto para outra conversa.
O Dia Internacional das Mulheres nasce como um dia de luta de mulheres trabalhadoras, pobres, de um país localizado no oriente do mundo!
Se o oito de março nasceu para reivindicar vida digna, pão e paz, como podemos dizer que pautas como a revogação da “reforma trabalhista”, que propiciou o aprofundamento da precarização que já enfrentavam as mulheres, em especial as mulheres negras, não é uma luta das mulheres e não é pauta que unifica as que lutam pela emancipação das mulheres? Se essa questão atinge a maioria das mulheres a quem interessa ampliar o abismo entre nós?
Como dizer que a luta das mulheres trans pelo direito à vida e a terem a opção de trabalhos que não os sexuais não são pautas desse dia, se isso está ligado à vida digna e essa luta se iniciou justamente para garantir vida digna a todas e aos nossos pares de classe, visto que as lutas das mulheres sempre pensaram no que atinge o coletivo?
Como temos a coragem de colocar para mulheres negras lutando contra o braço armado do Estado e da classe dominante que a Justiça pela qual elas clamam e o fim da guerra contra as drogas, que justifica a morte de tantos jovens negros diariamente, não são para ser mote central nesse dia? Se o oito de março nasce com mulheres pedindo paz, o que há de diferente agora?
Como, me digam, podemos achar que a fome e a falta de acesso à alimentação saudável não é central em nossa luta quando, no Brasil, voltamos a ser assolados pela falta de comida na mesa das casas mais pobres?
Como algo simples como pensar em trajetos que possibilitem quem tem mobilidade reduzida por diversos fatores (idade, ser pessoa com deficiência ou portadora de alguma doença como artrose, por exemplo), pode ser algo colocado como de pouca importância? Que feminismo é esse que defende que as pessoas que não se adaptam às possibilidades da maioria que fique no meio? Cadê o ninguém solta a mão de ninguém na prática?
Não estou dizendo com isso que a cultura do estupro, a violência doméstica, a alienação parental, as interrupções diárias que enfrentamos toda vez que falamos, os homens explicando nas universidades e reuniões para nós algo sobre o qual somos especialistas e eles não, ou mesmo a apropriação intelectual que as mulheres sofrem não sejam importantes. São e ninguém contesta isso.
O que me deixa realmente indignada é o fato de estarmos presas e obrigadas a só falarmos sobre isso porque existe quem determine como ou se exclui deliberadamente e sem pudor algumas manas negras, mais velhas, trans, trabalhadoras precárias, faveladas, mães e suas pautas urgentes. Ouu não estamos falando de questões ligadas ao feminismo?
Não sei quando foi que o pragmatismo masculino e a indignação narcísica branca voltou a se fazer, mas é preciso recobrar alguns valores e outros devem deixar de serem apenas discursos como a empatia, a sororidade e a solidariedade. O pragmatismo masculino entre nós me deixa cansada.
Como seguimos se não nos olharmos no espelho e não expulsarmos também, do meio de nós, toda essa reprodução de machismo, transfobia, elitismo, colonialismo, capacitismo? E não estou falando isso somente em relação aos setores liberais do feminismo, mas a toda uma ala progressista masculina que acredita que falar sobre mulheres e as pautas feministas, suas lutas, abrir espaço e organizar mesas com mulheres ao centro do debate se resumem ao mês de março (às primeiras semanas e já tá ótimo, na maior parte das vezes).
Nesse oito de março eu quero parar para refletir sobre essas questões e não as olhar e seguir inconformada.
Sei que avançar, modernizar, reformar, seguir são palavras que nos passam a ideia de evolução, que rumamos para algo melhor. Mas estamos marchando rumo ao quê? Para além desse dia de luta, precisamos de mais e contínuos debates e reflexão.
Esse é o maior motivo de eu não escrever em março, todos os anos: eu existo todos os dias do ano e os meus problemas e das minhas pares não se resumem aos dias 08 de março, 1º de maio, 25 de julho e 20 de novembro. Precisam ser pautados sempre, todos os sagrados dias, em cada conversa. Não há como ser feito um debate social sério se não for assim, pois nossos motes são muitos e todos muito urgentes. São problemas demais e eles se aprofundarão se não buscarmos a forma certa de resolvê-los coletivamente. A solução, suspeito, não virá de outra forma que não a do debate franco.
Santos, 8 de março de 2022.
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(*) Mestranda e Especialista em Direito do Trabalho na FDUSP. Pesquisadora do GPTC/USP (Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital) e do GPTC-Gênero. Especialista em Estudos afrolatinoamericanos e caribenhos pelo Clacso. Pesquisadora do Grupo de Estudos Intelectuais Negras Brasileiras.
(i)Agradeço aos incentivos das colegas acadêmicas Tainã Gois e Viviane Vidigal. Agradeço, ainda às Professora Renata Gonçalves, professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e a colega de mestrado Maria Paula Beba Pinheiro pela correção e revisão do texto.