"Toda a Nação está assustada: o serpentário abriu as comportas e nós caminhamos por dentro dele!"
(Florestan Fernandes: Perplexidade e imobilismo - 1984)
Não é comum no debate acadêmico brasileiro que opiniões se confrontem tão diretamente quanto este texto se propõe a fazer. Quando, porém, alguém se atreve a fazê-lo, a boa educação determina que se principie pedindo desculpas ao interlocutor de quem se irá discordar. No caso concreto, ao invés de “desculpa” a palavra mais acertada seria “obrigado”: obrigado, Jorge, por abrir este espaço de divergência, mas, sobretudo, obrigado por ensinar cotidianamente a seus alunos a respeitar a pluralidade de ideias e visões de mundo.
Em seu texto de 19 de fevereiro de 2021, intitulado de “Qual o limite da imposição de limites à liberdade de expressão?”, Souto Maior faz uma análise juridicamente irretocável sobre a prisão do Deputado Federal Daniel Silveira. Em apertada síntese, sem entrar no mérito da ação do ex-policial carioca, o autor questiona o paradoxal uso dos dispositivos autoritários da Lei de Segurança Nacional para proteger nossa democracia. O argumento tem como plano de fundo o ditado “pau que dá em Chico também dá em Francisco”, uma tradução popular da face mais superficial do Princípio da Igualdade.
A experiência histórica recente nos mostra que pau que dá em Luís Inácio não dá em Fernando Henrique (porque “melindra alguém cujo apoio é importante”); pedalada que derruba Dilma Vana não afeta Michel Miguel; teoria que condena Dirceu não sobe a Serra.
Para que o Direito possa salvar quem se elegeu quebrando a placa de Marielle Franco ele exige que fechemos nossos olhos para o conteúdo dos atos. Afinal de contas, há uma razão para que a deusa romana Iustitia esteja de olhos vendados: para que nosso “julgamento axiológico” e nossa “profunda contrariedade com a visão de mundo” representada pelo sujeito a ser julgado não interfiram na nossa “avaliação jurídica da questão”.
Olhemos, então, a situação pelo aspecto da política. Estamos em meio a maior pandemia global já enfrentada na história. O Brasil que, em 2010 vacinou contra a H1N1 80 milhões de pessoas em apenas 3 meses, hoje se vê como o segundo país com maior número de mortos por covid em todo o planeta. Encontra-se sob o comando do Ministério da Saúde, um militar da ativa cuja incompetência só não é maior do que sua ignorância. Falando em militares e incompetência, após descobrirmos que o governo federal gastou 15 milhões de reais em leite condensado, agora nos chega a informação que as Forças Armadas adquiriram 80 mil unidades de cerveja e 700 mil quilos de picanha.
É neste cenário que vemos o país naufragar política e economicamente. A burguesia financeira que se animou com a eleição de Bolsonaro começa a pular fora do barco. Diante do desgoverno, o poder está em disputa: segurando-se até quando não se sabe, o Presidente arma a população com fake news e pólvora proclamando ser apoiado pelo Exército; na vice-presidência, Hamilton Mourão ainda não sabe se consegue reunir os militares em torno de si para deixar de lado o ex-capitão; o Congresso Nacional e, principalmente, o Supremo Tribunal Federal sentem a pressão cada vez mais forte e, vez ou outra, ensaiam uma tímida resposta.
O ato do Deputado Federal Daniel Silveira foi uma provocação. Foi, inclusive, um chamado literal à derrubada da fachada de democracia institucional que nos resta. Desta vez o STF reagiu. E mais: a Câmara dos Deputados confirmou a decisão suprema. Neste pequeno intervalo entre a prisão do Deputado e a confirmação da decisão pelo Plenário da Câmara, deu tempo de o político brigar com um policial ao se recusar colocar a máscara, bem como de a Polícia Federal encontrar dois celulares na sala onde Silveira estava detido.
No frigir dos ovos, o que está em jogo é a definição de quem será responsável por gerir os interesses do poder econômico: de um lado, Supremo e Congresso prometem manter o verniz democrático-institucional; de outro, bolsonarismo e Forças Armadas prometem uma autocracia com forte apelo popular.
É curioso que em meio a esta briga de poderosos, gastemos tanto tempo nos atentando ao exercício que Francisco faz das liberdades que nunca foram materialmente garantidas a Chico.
São Paulo, 20 de fevereiro de 2021.