A “semana do estágio” que ocorre na Faculdade de Direito há alguns anos sempre me incomodou bastante, por diversos motivos de ordem jurídica, que a seguir enuncio. Mas, como minha posição a respeito sempre esteve longe de ter acolhida no meio jurídico trabalhista, me continha com a minha insatisfação pessoal.
Quando, no entanto, nesta segunda-feira, vi a montagem dos estandes da “feira” nas arcadas, mesmo após a explicitação de tantos casos graves envolvendo as condições de trabalho de estagiários e estagiárias, estudantes da Faculdade, chegando-se até mesmo a uma tentativa de suicídio, que chegou a gerar a abertura de uma sindicância para apuração do fato, confesso que um sentimento profundo de tristeza e indignação me invadiu. Na verdade, eu me senti pessoalmente agredido e envergonhado de ver o estabelecimento de uma “festa” para formalizar e naturalizar o sofrimento no trabalho.
É notório que não tem sido bem assim e não se pode mascarar a realidade, até porque o propósito de uma instituição de ensino é aprender com os fatos e não há processo de aprendizado quando, circunstancial e artificialmente, se reconstroem ou se desprezam os fatos.
Cumpre lembrar que o contrato de estágio foi inaugurado na ditadura militar, pela Lei n. 6.494, de 7 de dezembro de 1977, no contexto da política de redução do custo da produção por meio da fragilização dos direitos trabalhistas. Não está – e nunca esteve – ligado de fato à complementação do ensino, embora, por certo, ninguém há de negar que o estudante acresce seu conhecimento acerca do ofício quando o realiza. Só que, no estágio, o faz sem a contrapartida dos direitos, inserindo, por conseguinte, no mercado de trabalho como uma força de trabalho mais barata, com o efeito de obstar a empregabilidade de outros e, de modo reverso, no futuro próximo, dele próprio, pois o estagiário de hoje tende a ser o desempregado de amanhã.
E como, do ponto de vista da exploração do trabalho, as ditaduras e o neoliberalismo se equivalem, a lei de estágio, com alterações, mesmo depois da Carta de 1988, continuou, segundo versão dos juristas, em vigor, até ser reafirmada, também com limitações de direitos, em 2008 (Lei n. 11.788).
Ocorre que, independentemente das posições pessoais a respeito, apontando prós e contras do contrato de estágio, a Constituição Federal não faz qualquer referência a este tipo de contratação. O que a Constituição faz, de forma concreta, é garantir a todos os trabalhadores e trabalhadoras a completude de direitos, sendo indiferente se o trabalho alienado esteja ou não interligado a uma formação educacional.
Mesmo que o trabalho complemente o ensino, ainda assim é de trabalho que se trata e nenhum trabalho remunerado, prestado de forma habitual e inserido no contexto do interesse econômico alheio, pode ser desvinculado dos direitos trabalhistas constitucionalmente assegurados, sendo que um dos objetivos primordiais da legislação do trabalho é impedir condições que sobrecarreguem a condição humana de quem presta o serviço.
Uma Faculdade de Direito tem a obrigação de respeitar a ordem jurídica constitucional e, portando, no mínimo, não pode se furtar a fazer este debate, ainda mais diante das reiteradas notícias da submissão de seus alunos e alunos a condições adversas de trabalho.
E não se pode esquecer que a Faculdade é parte integrante da formalização desses contratos e, neste sentido, acaba se apresentando como uma espécie de agenciadora de mão de obra.
A "semana do estágio" em questão piora muito as cosias, vez que representa a edificação da mercantilização de estudantes. Simboliza uma “venda” explícita da força de trabalho estudantil – sem sequer a correspondência da integralidade os direitos trabalhistas – para grandes escritórios de advocacia, que se valem da feira também para efeitos publicitários.
Mas vai além, pois ao que se tem notícia os escritórios pagam um valor que não se restringe aos custos das montagens dos estandes. Haveria uma sobra que ficaria com a entidade estudantil organizadora do evento, outra parcela com o centro acadêmico e outra ainda que seria direcionada à moradia estudantil.
De todo modo, isto é apenas uma especulação, pois, concretamente, não há, na diretoria, a formalização da cessão do espaço, sob a alegação de ser uma atividade dos estudantes.
Fato é que se utiliza de um espaço público para a realização de uma atividade de evidente interesse privado, que tem como objeto principal a “comercialização” de mão de obra barata, gerando, possivelmente, um benefício econômico para algumas entidades, sem que sequer isto passe pelas estruturas administrativas da Universidade.
Tenta-se justificar a existência de um interesse público pelo fato de que muitos alunos e alunas não teriam como se manter economicamente na Faculdade sem o estágio.
Entretanto, ao se institucionalizar o mercado de mão de obra, abre-se mão da obrigação de se constituírem políticas efetivas de permanência, de modo a conferir aos(às) estudantes a possiblidade de se dedicarem aos estudos, podendo-se, de forma paralela, envolver atividades de pesquisa e de extensão, sempre no contexto da prestação de serviços à comunidade.
Fato é que a "semana do estágio" representa uma adesão à fragilização dos direitos trabalhistas constitucionalmente assegurados aos trabalhadores e trabalhadores, e, ao mesmo tempo, a legitimação da prática de desrespeito a estes direitos, assim como um ato de insensibilidade frente ao sofrimento reiteradamente relatado na execução do estágio, o que, por certo, não se anula com eventuais relatos de situações com menor potencial ofensivo.
Lanço, pois, aqui, ainda que como voz isolada, o meu repúdio à promoção deste evento que, a partir da retórica da necessidade do(a) trabalhador ou do proveito que se lhe concebe em troca, como se dá, precisamente nas hipóteses do trabalho em condições análogas à escravidão, enaltece a exploração sem limites do trabalho.
Nesta perspectiva, inclusive, ao se naturalizar a comercialização de uma mão barata no pátio da Faculdade, realizada com a intermediação da própria instituição e com suposto proveito econômico para algumas entidades estudantis, sob o argumento de ser necessária para que estudantes sem condições econômicas se mantenham no curso, consagra-se um tratamento preconceituoso e discriminatório destes(as) estudantes, atingindo, sobretudo, os que, por política afirmativa, foram admitidos na Faculdade por meio das cotas sociais e raciais. Trata-se, isto sim, de um modo de negar a estes(as) estudantes efetivas políticas de integração e de permanência.
São Paulo, 09 de maio de 2023.