Para difundir a ideia de que a “reforma” trabalhista seria uma modernização das relações de trabalho, sem retirar direitos, os seus defensores fizeram enormes elogios ao trabalho intermitente, dizendo que a modalidade tiraria milhões de trabalhadores do desemprego e que não era verdadeiro o argumento dos opositores de que o trabalhador intermitente seria submetido a condições precárias e perversas de trabalho e que poderia receber menos que o salário mínimo por mês.
O problema para os arautos do trabalho intermitente é que a MP 808, que é uma espécie de alterego da Lei nº 13.467/17, acabou revelando o que se tentou omitir nos termos da lei da “reforma”.
Extrai-se dessa confissão, aliás, um fundamento a mais em favor da ilegitimidade da lei, baseado em vício de conhecimento, expresso por congressistas no processo legislativo, já que a aprovação da lei se deu a partir do argumento de que os trabalhadores intermitentes não receberiam menos que um salário mínimo (ainda que, no fundo, soubessem que isso não era verdade). Fato é que a insinceridade da motivação da votação anula o processo legislativo ou, ao menos, reforça a sua legitimidade.
Cumpre reparar que essa possibilidade, embora fosse previsível do ponto de vista da prática social, não estava expressamente autorizada pela Lei nº 13.467/17 (art. 452-A) e, então, a MP 808 ou revela o que estava subentendido ou vai além, piorando o que já estava ruim.
A regra trazida na MP, ademais, deixa claro o que o próprio governo antevê como efeito da aplicação da Lei nº 13.467/17, qual seja, uma avalanche de pessoas trabalhando em troca do recebimento de um valor inferior ao salário mínimo, mesmo fora do âmbito dos contratos intermitentes.
Essa situação não possui nenhuma base constitucional, vez que a Carta Magna do país, conforme o pacto firmado em 1988, garante a todos os empregados, independente de sua condição pessoal, o recebimento do salário mínimo mensal, mesmo para aqueles que auferem remuneração variável, não se tendo aberto qualquer exceção a essa regra (inciso VII do art. 7º)[ii]. E, como gostam de dizer os defensores da “reforma”, as disposições legais estão aí para ser aplicadas e não interpretadas, ainda mais na direção da redução de direitos, porque, como estabelece o caput do art. 7º da CF, os direitos trabalhistas se destinam à melhoraria da condição social dos trabalhadores.
A grande questão é que, no fundo, o próprio governo não crê que trabalho intermitente seja emprego, embora precise afirmar isso para manter a retórica da “reforma” em torno da criação de empregos. O governo, certamente, se valerá do número de pessoas “contratadas” por meio dessa modalidade para alimentar seus dados estatísticos sobre geração de empregos, mas reconhece que o trabalho intermitente de emprego não se trata.
Ora, o art. 452-E e seu § 1º, criados pela MP 808, reduzem pela metade o valor das verbas rescisórias, incluindo a própria multa de 40% do FGTS, cujo saldo, já diminuído em razão do baixo valor de sua base de cálculo, não poderá ser levantado na totalidade pelo trabalhador (80%), e tudo isso sem qualquer explicação plausível, a não ser, é claro, a que se extrai da convicção do governo de que trabalho intermitente não é uma autêntica relação de emprego[iii], sendo que, por isso mesmo, o governo teme o caos na arrecadação[iv].
E se alguém poderia levantar alguma dúvida a respeito disso, o § 2º do mesmo artigo a dissipou completamente quando negou aos trabalhadores intermitentes o direito ao recebimento do seguro-desemprego[v].
Trata-se de dispositivo flagrantemente inconstitucional, que fere o inciso II, do art. 7º da CF, mas que, de todo modo, serve para demonstrar a forma pouco séria e repleta de disfarces, para dizer o mínimo, pela qual o governo tenta empurrar para a sociedade uma reforma trabalhista completamente irresponsável.
Perceba-se que nos termos do art. 11, inciso I, da Lei nº 8.213/91, o empregado é segurado obrigatório da Previdência Social, mas a MP 808, nos § § 1º e 2º do art. 911-A[vi], afasta essa condição do trabalhador intermitente, negando-lhe, pois, a qualidade jurídica de empregado.
O desespero do governo em retirar o trabalhador intermitente da condição de segurado obrigatório advém do reconhecimento de que esses trabalhadores, que, se levada a efeito a “reforma”, se multiplicarão aos milhões, receberão menos do que um salário mínimo por mês, mas, sendo empregados e, consequentemente, segurados obrigatórios da Previdência, terão direito a receber benefícios previdenciários com valor (quando o benefício for destinado a substituir o salário-de-contribuição ou o rendimento do trabalho) nunca inferior ao do salário mínimo (§ 2º do art. 201, da CF)[vii].
Essa disparidade de milhões de pessoas recebendo menos que o salário mínimo e tendo o direito de auferir benefícios previdenciários com valor equivalente ao salário mínimo representa um desequilíbrio pleno da base atuarial da Previdência Social, mesmo integrada ao conceito mais amplo de Seguridade Social, isto é, mesmo se valendo de outros recursos. A proliferação da precarização, aberta pela Lei nº 13.467/17, como reconhece a MP 808, gerará uma total falência financeira do sistema previdenciário.
Para evitar o desequilíbrio a solução encontrada pelo governo, no entanto, foi a de penalizar ainda mais o trabalhador intermitente.
Com isso, além de negar a esses trabalhadores, como já dito, o seguro-desemprego, a MP ainda lhes excluiu da condição de segurados obrigatórios do Regime Geral da Previdência, fazendo-o, claro, de modo disfarçado.
Nos termos dos § § 1º e 2º do art. 911-A da CLT, trazidos pela MP 808, o trabalhador intermitente terá a “faculdade” de efetuar a complementação de sua cota-parte da contribuição da diferença entre o que recebe mensalmente e o valor do salário mínimo, mas se não cumprir essa “faculdade” não terá direito a receber os benefícios e ainda perderá os períodos de carência. E vale perceber que o empregador não terá que pagar a sua cota-parte sobre essa complementação, o que mantém o desequilíbrio atuarial, com novo benefício ao empregador.
A medida só prova o quanto o tratamento jurídico dado ao denominado trabalho intermitente é inconstitucional, sobretudo no aspecto do permissivo para o recebimento de valor mensal inferior ao mínimo, dadas as previsões expressas do inciso VII do art. 7º da CF e do § 2º do art. 201, já referidos. Ora, se o benefício que substitui o salário-de-contribuição é, ao menos, igual ao salário mínimo, resta claro que o salário-de-contribuição não pode, ele próprio, ser inferior ao salário mínimo, ainda mais considerando o disposto no inciso VII do art. 7º da CF.
Fato é que se estabeleceu na Constituição Federal uma base mínima sobre a qual o pacto de solidariedade, essencial ao Estado Social Democrático de Direito, deve se apoiar; e a Lei nº 13.467/17 tenta jogar tudo isso por terra e a MP 808 é uma confissão explícita desse movimento destrutivo.
A previsão da MP, inclusive, é carregada de intensa maldade, pois se na sua lógica o trabalhador já recebe menos que o salário mínimo não terá este trabalhador a menor condição financeira de ainda dispor de parte de seu ganho para contribuir com a Previdência.
Assim, o trabalhador intermitente teria, segundo a previsão da “reforma”, um emprego, mas perderia parte da sua condição de cidadão por não se lhe ter assegurado o recebimento do salário mínimo e por ter sido excluído da proteção previdenciária, sendo, inclusive, induzido a acreditar que a culpa disso é sua porque não conseguiu o número de contratações necessárias para atingir o salário mínimo e porque não quis completar a contribuição previdenciária.
A MP, além disso, realiza um estelionato institucional contra os trabalhadores intermitentes, que se tipifica, também, como uma apropriação indébita, pois a parte da contribuição já efetuada por estes se tem por desconsiderada e é, assim, apropriada pelo regime sem qualquer contrapartida.
Em nome de superávit e da tal recuperação econômica, seria mais direto se o governo mandasse logo matar milhões de pessoas. Não o faz porque precisa permitir que se extraia delas o trabalho necessário para reproduzir o capital internacional. No fundo, trata milhões de brasileiros não como pessoas e cidadãos e sim como máquinas que expelem uma mercadoria muito especial, a força de trabalho, sendo que, ao estabelecer o permissivo de que se desenvolva uma exploração sem limites do trabalho, acaba proferindo uma sentença de morte dos trabalhadores, que é, ao mesmo tempo, destrutiva de tudo e de todos.
E alguém ainda chama isso de “modernização”?
[i]. “§ 1º Os segurados enquadrados como empregados que, no somatório de remunerações auferidas de um ou mais empregadores no período de um mês, independentemente do tipo de contrato de trabalho, receberem remuneração inferior ao salário mínimo mensal, poderão recolher ao Regime Geral de Previdência Social a diferença entre a remuneração recebida e o valor do salário mínimo mensal, em que incidirá a mesma alíquota aplicada à contribuição do trabalhador retida pelo empregador.”
[ii]. “garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável;”
[iii]. “Ressalvadas as hipóteses a que se referem os art. 482 e art. 483, na hipótese de extinção do contrato de trabalho intermitente serão devidas as seguintes verbas rescisórias: I - pela metade: a) o aviso prévio indenizado, calculado conforme o art. 452- F; e b) a indenização sobre o saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS, prevista no § 1º do art. 18 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990; e II - na integralidade, as demais verbas trabalhistas”.
“§ 1º. A extinção de contrato de trabalho intermitente permite a movimentação da conta vinculada do trabalhador no FGTS na forma do inciso I-A do art. 20 da Lei nº 8.036, de 1990, limitada a até oitenta por cento do valor dos depósitos”.
[iv]. E, curiosamente, a MP foi editada um dia depois do anúncio de que a arrecadação sobre a folha de salário estava crescendo, o que demonstrava, inclusive, uma recuperação da economia (“Sinais da retomada chegam à arrecadação”, in Folha de S. Paulo, 13/11/17, p. A-19).
[v]. “A extinção do contrato de trabalho intermitente a que se refere este artigo não autoriza o ingresso no Programa de Seguro-Desemprego”.
[vi] "Art. 911-A. O empregador efetuará o recolhimento das contribuições previdenciárias próprias e do trabalhador e o depósito do FGTS com base nos valores pagos no período mensal e fornecerá ao empregado comprovante do cumprimento dessas obrigações.
§ 1º Os segurados enquadrados como empregados que, no somatório de remunerações auferidas de um ou mais empregadores no período de um mês, independentemente do tipo de contrato de trabalho, receberem remuneração inferior ao salário mínimo mensal, poderão recolher ao Regime Geral de Previdência Social a diferença entre a remuneração recebida e o valor do salário mínimo mensal, em que incidirá a mesma alíquota aplicada à contribuição do trabalhador retida pelo empregador.
§ 2º Na hipótese de não ser feito o recolhimento complementar previsto no § 1º, o mês em que a remuneração total recebida pelo segurado de um ou mais empregadores for menor que o salário mínimo mensal não será considerado para fins de aquisição e manutenção de qualidade de segurado do Regime Geral de Previdência Social nem para cumprimento dos períodos de carência para concessão dos benefícios previdenciários."
[vii]. “§ 2º Nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo.”