No jornal Folha de S. Paulo, edição de hoje, aparece a notícia: “Ocupações adiam Enem de 191,5 mil estudantes” (p. B-6).
A manchete, no entanto, faz uma inversão indevida de valores, como ocorre, ademais, em várias outras situações do cotidiano, quando pessoas reagem perante a uma situação de injustiça.
Diz Paulo André: “Se posicionar no país em que vivemos e defender uma ideia é quase um pecado”.
Quem se manifesta e reage contra as injustiças é visto como um “pecador” e é perseguido. E por quê? Porque quem reage atrapalha a vida “normal”.
Só que no “normal” habitam várias anormalidades e para que consigam explicitar os problemas e chamar a atenção das demais pessoas para isso é preciso romper com o automatismo, que gera cumplicidade, da vida cotidiana.
A estratégia reacionária, então, passa a ser a de atacar os que se insurgem, dizendo que estão atrapalhando a vida de outras pessoas. E, assim, os visionários, que se dedicam a lutar por efetivas melhorias nas estruturais sociais, são transformados em algozes e só não são queimados vivos, como se dava na inquisição, porque pelos menos alguns outros lutadores ao longo da história da humanidade foram vitoriosos.
No caso específico do futebol brasileiro, não se consegue sair do mundo medieval porque o absolutismo de um Marco Polo que não viaja ainda tem força para derrotar o iluminismo do Bom Senso.
Essa inversão se verifica, igualmente, nas greves de trabalhadores, quando se tenta divulgar, midiaticamente, apenas os prejuízos que a greve gera para outras pessoas e não se fala em nenhum momento das razões que impulsionaram os trabalhadores à paralisação e da responsabilidade de quem criou o impasse. Quando um empregador, ente público ou privado, não concede o reajuste legal, não respeita direitos e os trabalhadores, após tentativas de haver o que lhes pertencem, cruzam os braços, o seu ato não foi um ato de violência, mas de defesa. Assim, a responsabilidade pelos eventuais transtornos da greve não pode ser atribuída aos grevistas, que nada mais fazem do que exigir, de forma legítima, vez que garantida em lei, o cumprimento da ordem jurídica, valendo lembrar que luta por melhores condições de vida e de salários é, igualmente, garantida constitucionalmente.
Vejamos, então, o caso das ocupações de escolas. O que os estudantes estão fazendo é demonstrar para a sociedade em geral que foi realizado um enorme atentado ao Estado Democrático de Direito pelo governo federal ao editar uma Medida Provisória (n. 749, de 22 de setembro/16), para reformular o Ensino, vez que a situação não se amolda à previsão do art. 62 da CF/88.
Pode-se dizer, inclusive, que o ato do governo contraria expressamente a referida norma, pois esta, além de exigir uma situação de urgência para que se expeça uma MP, ainda veda sua edição sobre matéria relativa à cidadania (§ 1º, art. 62), e nada pode ser mais ligado à cidadania que a educação.
Então, o que essas pessoas de 13 a 17 anos de idade estão fazendo é, simplesmente, um ato legítimo de defesa da ordem constitucional que, inclusive, lhes garante o direito social à educação (art. 6º), sendo dever do Estado efetivar uma educação “básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade” (art. 208, I, da CF); educação esta que deve seguir, dentre outros princípios, o do “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas” (art. 206, V, da CF), fazendo com que, inclusive, a ordem constitucional se veja ameaçada ela PEC 241 e pelo projeto da Escola Sem Partido (PLS 193/2016), contra o que também lutam os estudantes.
Podendo ocupar seu tempo com muitos outros afazeres, essas pessoas, que nos fazem, inclusive, acreditar que o Brasil tem jeito, como explanado em outro texto[2], foram constrangidas a reagir. Não estão lá por farra ou por baderna, mas por ato de consciência e de cidadania.
A ação dos secundaristas é, isto sim, uma reação aos atos de afronta à ordem constitucional promovidos pelas instituições a quem cumpriria fazer valer a Constituição e, portanto, se alguém quiser fazer uma manchete, para noticiar que essa situação gerou o adiamento das provas do Enem, a forma mais correta de fazê-lo é:
“Temer adia Enem de 191,5 mil estudantes”
São Paulo, 02 de novembro de 2016.
[1]. http://blogdopraetzel.blogosfera.uol.com.br/2016/11/01/paulo-andre-esclarece-fim-do-bom-senso-e-ve-modelo-brasileiro-esgotado/
[2]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “A aula dos secundas”. Disponível em: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/jorge-luiz-souto-maior-os-secundas-estao-nos-dando-uma-aula-de-que-o-brasil-tem-jeito.html