Igor Cardoso Garcia
Jorge Luiz Souto Maior
No dia 21 de setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal, por meio de seu plenário virtual, iniciou julgamento do mérito de tema com repercussão geral reconhecida em 2011 (RE 635.546).
A sessão, porém, foi suspensa, ficando pendente apenas o teor da tese de repercussão geral, uma vez que houve divergência entre os Ministros que votaram a favor do argumento prevalecente.
O que se discute no feito é a possibilidade de equiparação salarial entre empregado terceirizado e empregado contratado diretamente pela tomadora dos serviços, ambos exercentes de idêntica atividade, em prol de uma mesma empresa beneficiária.
Relator da ação no STF, o Ministro Marco Aurélio, que foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber (esta com ressalvas), votou pela manutenção da decisão do TST e com proposição de tese que viabilizaria a equiparação salarial entre empregados terceirizados e os contratados diretamente pela tomadora dos serviços[1], adotando como base o princípio da isonomia remuneratória.
Entretanto, a tese vencedora foi no sentido da impossibilidade da equiparação, restando, como dito, a definição quanto ao teor da tese.
Em voto que foi divulgado com destaque pelo site Conjur[2], ainda que, por ora, não seja o prevalecente, o Ministro Luís Roberto Barroso propôs a seguinte tese de repercussão geral:
“A equiparação de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratarem de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas.”
No voto, o Ministro adota os seguintes pressupostos para decidir:
(i) “(…) o entendimento firmado em seu voto [do Relator, Ministro Marco Aurélio, que reconhecia a validade da equiparação] conflita com a decisão proferida nos autos da ADPF 324, rel. Min. Luís Roberto Barroso. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da terceirização, tanto de atividade-fim quanto de atividade-meio”; e
(ii) “os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência asseguram ao agente econômico a decisão sobre terceirizar ou não parte das suas atividades e, ao fazê-lo, baixar custos ou agregar novas expertises (art. 170, caput e inc. IV, CF).”
Com relação ao primeiro fundamento, cabe dizer que, na verdade, o voto do Ministro Marco Aurélio não adota como pressuposto a ilicitude da terceirização de atividade-fim, mas apenas “o direito ao tratamento igualitário [entre trabalhadores terceirizados e diretamente contratados] tendo em conta o que versado no artigo 7º, incisos VI, VII e X, da Constituição Federal de 1988” (premissa relativa ao conhecimento da Repercussão Geral) e afirma expressamente o seguinte:
“No mais, atentem para os parâmetros do acórdão formalizado pelo Tribunal Superior do Trabalho. Nele consta a premissa fática segundo a qual a recorrida prestava serviços consideradas tarefas próprias a atividade fim da recorrente, ombreando com trabalhadores que integram o quadro funcional, estes mediante concurso público, e recebendo remuneração inferior. Está-se diante de situação concreta a envolver serviço prestado por empregado de empresa contratada ligado à atividade fim da tomadora. Em momento algum houve o reconhecimento de vínculo empregatício com esta última. Limitou-se a Justiça do Trabalho a declarar o direito à diferença remuneratória entre o que percebido pela recorrida e o que satisfeito, por idêntico serviço, aos empregados da Caixa. A óptica é harmônica com a Constituição Federal.”
Da leitura do voto vencido, verifica-se que a terceirização da atividade-fim e sua ilicitude não serviram de motivo para a equiparação salarial, mas apenas o fato de os trabalhadores exercerem as mesmas atividades, “ombreando”. O tema em discussão não era a licitude da prática, até porque, no âmbito do STF, superada pela decisão proferida na ADPF 324.
O segundo fundamento, de fato, não se relaciona com a questão em discussão, pois o tema em repercussão geral não trata da possibilidade da terceirização de atividade-fim, o que já foi reconhecido pelo STF na ADPF 324.
Constata-se, dessa forma, que o voto do Ministro Luís Roberto Barroso adota pressupostos equivocados na análise do caso e, sob fundamento de aplicação dos princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência, autoriza o pagamento de salários distintos a pessoas que realizam as mesmas atividades, em prol de uma mesma empresa (a tomadora dos serviços, beneficiária final da extração de mais valor decorrente da exploração da força de trabalho de seu empregado e do trabalhador terceirizado), apenas porque uma teve a “sorte” de ser contratada pela empresa principal e outra não a teve, sendo contratada por terceirizada com salário inferior.
E, considerando a forma ilimitada com que a terceirização foi admitida pelo Supremo, a ausência de equiparação salarial para trabalho de igual valor - que é como a questão se coloca em todos os instrumentos jurídicos internacionais, para que se evitem práticas de discriminação e de “dumping social” - poderá permitir que trabalhadores na mesma função, contratados por empresas de prestação de serviços diversas, recebam salários diferentes.
Fato é que na tese proposta pelo Ministro Barroso, em momento algum se abre a porta para o princípio da isonomia remuneratória, que deveria ser o fundamento da decisão, tampouco se aborda o disposto no artigo 7º da Constituição Federal, incisos V (piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho), XXXII (proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos), ou mesmo se faz referência ao primeiro fundamento da ordem econômica, que é a “valorização do trabalho humano”, ou, ainda, se evidencia a finalidade precípua da regulação constitucional, que é “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.
O que se vê, em verdade, é uma decisão que não analisa normas e princípios constitucionais-trabalhistas. Pior, recorta a Constituição Federal, não a considerando como um todo que deve possuir harmonia e unidade. Seleciona arbitrariamente dois princípios e os coloca como fundamentos da República, inclusive em detrimento do próprio artigo no qual estão inseridos.
E por trás desse tangenciado argumento jurídico transparece a verdadeira razão de decidir adotada, a justificativa econômica. Do voto em análise consta o seguinte:
“Exigir que os valores de remuneração sejam os mesmos entre empregados da tomadora de serviço e empregados da contratada significa, por via transversa, retirar do agente econômico a opção pela terceirização para fins de redução de custos (ou, ainda, incentivá-lo a não ter qualquer trabalhador permanente desempenhando a mesma atividade).”
A justificativa, que não serve como argumento jurídico, é a de que a equiparação salarial retira a possibilidade de redução de salários – e, por consequência, de direitos – realizada por intermédio da terceirização.
Ainda que o Ministro Luís Roberto Barroso seja um entusiasta da terceirização irrestrita, o que se constata mediante a leitura do acórdão da ADPF 324, com o uso bastante seletivo de dados do IPEA sobre o tema, razões econômicas não constituem justificativa para decisões judiciais, sobretudo diante de uma ordem jurídica cujo fundamento principal é, exatamente, o de impedir que a racionalidade e a lógica econômicas imponham o rebaixamento da condição humana e desatendam as políticas públicas voltadas à construção de uma sociedade mais justa, solidária e economicamente viável.
Até porque, se permitida fosse a utilização de dados econômicos para fundamentar decisões, dever-se-ia fazê-lo não só quando isso favorecesse um dos lados da relação capital X trabalho, e tais dados deveriam ser utilizados na sua integralidade, e não, parcial e instrumentalmente, apenas para justificar um tipo de decisão previamente concebida.
É bastante grave quando a mais alta corte judicial renuncia ao seu papel de guardiã da Constituição Federal, trocando a análise do direito pelo uso de justificativas econômicas bastante parciais para embasar suas decisões.
E ainda pior quando a decisão permite e estimula o uso da terceirização para a precarização de direitos fundamentais, desconsiderando toda a potencialidade de danos gerados por tal prática, tais como o rebaixamento de salários dos trabalhadores terceirizados[3]; o maior adoecimento no trabalho entre terceirizados[4]; a maior quantidade de acidentes do trabalho entre terceirizados[5]; a quebra da unidade da categoria profissional, a enfraquecer ainda mais o movimento sindical, entre outros.
Apesar de tudo isso, há um mérito inegável nos fundamentos apresentados pelo Ministro Barroso em sua proposta de tese, qual seja, o de reconhecer o que até então todos os defensores da terceirização recusavam admitir: que a terceirização só tem sentido para reduzir direitos e custos trabalhistas, a começar por salários.
O problema é que, se, por um lado, a admissão serve para desnudar a terceirização, por outro, acaba não só não coibindo a precarização, como também a estimula, expressamente.
A prática de terceirização, dentre outros argumentos falseados, costumava ser justificada em razão da necessidade de se contratar serviços especializados por aquele que não detém expertise em determinada área, sem reconhecimento expresso do objetivo de precarizar. Assim, havia sempre o argumento de invalidação ou de deslegitimação jurídica do procedimento quando nítida, na hipótese verificável, os efeitos da precarização, da discriminação e da segregação.
Ao se permitir e estimular a terceirização como instrumento para redução de salários e consequente rebaixamento de direitos, o STF se posiciona como legitimador e até incentivador da precarização e de práticas que violam o ordenamento jurídico.
A decisão engendra uma fórmula para se buscar no direito os antídotos contra a sua própria existência. É o avesso do direito legitimado pela Corte Constitucional. Aliás, cria-se, com essa decisão, um trunfo para violar quase todas as normas trabalhistas. Tudo o que historicamente e com muita luta se conquistou em termos trabalhistas pode ser desconsiderado com os artifícios antijurídicos e contrários aos direitos constitucionais sociais que vêm sendo gestados há algum tempo.
O fato é que com o aval do Supremo, a terceirização vira um salvo conduto para descumprir as leis trabalhistas: não se pode reduzir salários, mas por meio da terceirização isso é permitido; não se pode descumprir cláusulas dos instrumentos coletivos, mas por meio da terceirização isso é permitido; não se pode pagar salários distintos para pessoas que realizam trabalho de igual valor, mas por meio da terceirização isso é autorizado; não se pode pagar salários distintos em razão do gênero, mas por meio da terceirização isso também é permitido.
Como se vê, a seguir a trilha do STF, com a terceirização se pode tudo em matéria trabalhista, menos fazer cumprir a Constituição Federal, a CLT, os tratados e declarações internacionais pertinentes aos Direitos Humanos, as convenções da OIT e as leis internas destinadas à proteção da personalidade e da dignidade, afinal, a economia brasileira, segundo o parâmetro adotado, requer a possibilidade do uso da terceirização para reduzir custos e direitos trabalhistas, não importando como isso se faça.
E se não bastasse tanto sofrimento e tanto desrespeito ao pacto social inaugurado pela Constituição Federal de 1988, no qual se projetou a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, baseada na justiça social, a inversão de valores reafirmada pelo STF vai nos conduzir, em breve, ao passo seguinte em que as demais empresas (as chamadas tomadoras de serviços), com base em parâmetros econômicos, vão postular uma isonomia com relação às terceirizadas, e toda proteção jurídica trabalhista terá chegado ao fim, mas com este vazio, também a distopia, a desordem, a barbárie e a violência.
Este é o caminho que, há muito, vem sendo trilhado e a história está consignando os seus construtores e suas respectivas responsabilidades.
Brasil-Portugal, 03 de outubro de 2020.
[1] Proposta de tese: “Viável, sob o ângulo constitucional, é o reconhecimento do direito à isonomia remuneratória quando o prestador de serviços, embora contratado por terceiro, atua na atividade fim da tomadora, ombreando com trabalhadores do respectivo quadro funcional.”
[2] https://www.conjur.com.br/2020-set-22/impossivel-equipar-direitos-entre-terceirizado-empregado-publico
[3] http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8702/1/As%20Desigualdades.pdf
[4] AQUINO, C. et al. Terceirização e saúde do trabalhador: uma revisão da literatura nacional. Revista Psicologia: organizações e trabalho (http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-66572016000200003)
[5] DIEESE – DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Terceirização e morte no trabalho: um olhar sobre o setor elétrico brasileiro. São Paulo: Dieese, 2010 (https://www.dieese.org.br/estudosepesquisas/2010/estPesq50TercerizacaoEletrico.pdf)