Não bastasse ter desconsiderado os urgentes e legítimos interesses de representatividade, na composição do STF, da base social, popular e classista, envolta em diversidade, responsável por sua eleição, o Presidente da República, agora, no contexto das críticas formuladas ao seu nomeado, fez uma afirmação que também precisa ser publicamente questionada.
Pois bem, na live “Conversa com o Presidente” desta semana, Lula preconizou:
E, logo na sequência, o Ministro da Justiça, para não deixar o Presidente falando sozinho, veio em seu socorro, para dizer que o voto secreto é um “debate válido” e chegou mesmo a preconizar como seria, explicando que “a decisão é comunicada de forma transparente, há apenas a primazia do colegiado sobre as vontades individuais. É um modelo possível. Eu não tenho elementos a essa altura para dizer que modelo é melhor que o outro. Em ambos há transparência. Em um se valoriza mais a posição transparente do colegiado, no outro se privilegia a ideia de cada um.”
Nas redes sociais, muitos dos apoiadores do Presidente, alguns, inclusive, postulantes de cargo a vagar, se adiantaram para trazer os argumentos de defesa, esclarecendo que o voto secreto é uma realidade nas Supremas Cortes dos EUA e da Alemanha. Assim, não seria nada demais a fala do Presidente e que estaria havendo um exagero – impulsionado por opositores – na repercussão do ocorrido.
Sinceramente, não sei se, de fato, nos EUA e na Alemanha existe o voto secreto nas respectivas cortes supremas e nem procurei saber, pois este não é o ponto necessário de análise. E, de todo modo, a comparação, feita para justificar a superação da nossa cultura jurídica, é plenamente impertinente, dado que são países com tradições e sistemas jurídicos bastante distintos do nosso.
O relevante e essencial é lembrar que a democracia brasileira, historicamente incompleta, vez que não foi capaz, até hoje, de atingir, de forma concreta, a maior parte da população brasileira, sobretudo pobres e pessoas “racializadas”, discriminadas e excluídas, acabou de passar por um intenso processo de fragilização, que culminou com os ataques de 8 de janeiro (cujos responsáveis e atores ainda não foram devidamente punidos), o que, inclusive, requereu uma coalizão das mais variadas forças sociais, políticas e ideológicas para a defesa do regime democrático, de modo a garantir a realização da eleição e a posse do candidato eleito.
Então, o erro mais grave que se pode cometer neste momento é o de naturalizar atos e falas que estimulem práticas autoritárias, sigilosas, não transparentes e, por conseguinte, antidemocráticas, ainda mais quando essas iniciativas partam daqueles cujo dever funcional é a defesa do Estado Democrático de Direito.
A garantia básica da cidadania, conferida pelo Estado de Direito, é a publicidade dos atos jurisdicionais e a fundamentação das decisões, para que ninguém sofra a coerção do Estado sem a instauração do “devido processo legal”, estabelecendo-se, inclusive, uma estruturação de responsabilidades na qual se integram, sobretudo, aqueles a quem a sociedade outorga poderes. Os poderes exercidos por magistrados, chefes do Executivo ou legisladores não são absolutos, até porque o absolutismo é precisamente o regime superado pela ordem democrática. No Estado de Direito esses profissionais exercem sua função em conformidade com os limites estabelecidos na ordem jurídica.
Então, saber como pensam e como e por quais fundamentos decidem os juízes constitui a pedra fundamental de um regime que se pretende garantidor da cidadania.
É bem verdade que o inciso LX do art. 5º da CF prevê a possibilidade da lei “restringir a publicidade dos atos processuais”, mas isto apenas “quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. E, de todo modo, não se está falando da intimidade do julgador ou do interesse dos agentes políticos. Além disso, não se há de confundir “ato processual” com provimento jurisdicional e menos ainda se pode atribuir ao dispositivo uma possibilidade de “anonimato” quanto ao prolator da decisão judicial.
Então, no sistema Constitucional pátrio, desde sempre, mesmo durante os regimes reconhecidamente autoritários, não se conferiu ao prolator de uma decisão judicial o poder de se omitir.
E ainda que se queira ver a proposta do Presidente da República como um debate possível, há de se ter em mente a total ausência de oportunidade, conveniência e, até mesmo, o ferimento de preceitos éticos e morais, no ato de trazer o tema à tona, vez que, insofismavelmente, está revestido do propósito do Presidente de não ver questionadas as decisões de seu(s) indicados(s), retroalimentando a personalização da questão, com desvio do interesse público.
Não custa recordar que os atos administrativos devem estar embasados nos princípios da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, conforme prevê, expressamente, o art. 37 da CF:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”
É necessário, pois, que todos(as) aqueles(as) que se posicionaram na defesa da ordem democrática e, notadamente, aqueles(as) que possuem o dever funcional de fazer valer os preceitos constitucionais, que rechacem publicamente a fala do Presidente, para que não seja, de modo algum, naturalizada e, assim, não produza frutos indesejados e que, na reincidência, podem ser incontroláveis.
O silêncio neste caso, por conveniência ou qualquer outro motivo, é, portanto, um grande erro histórico.
São Paulo, 05 de setembro de 2023.