Estamos passando por um difícil momento no qual o desprezo pelo conhecimento e pelo compromisso com a verdade atingem um patamar alarmante.
A disputa de narrativas históricas não é, por certo, uma novidade no curso da humanidade. Aliás, somente bem recentemente se está conseguindo conhecer a realidade dos esquecidos da história e isso é fundamental. Mas as interpretações não podem permitir que fatos sejam alterados, apagados ou recontados de forma deturpada.
O perigo de uma história mal contada, bem se sabe, é o de que se consigam arrumar argumentos para justificar práticas que já deveriam ter sido superadas no processo histórico evolutivo.
A propósito, para auxiliar nessa reflexão, convido o leitor que, podendo, assista ao filme O Concerto (lançado em 2009), do diretor judeu Radu Mihaileau.
O filme mostra a trágica história de vidas que foram interrompidas na União Soviética pela obsessão em torno de uma ideia que, de tão irrefletidamente reiterada, justificada apenas pela identificação dos desajustes de seu avesso, passou a substituir o real, a vida, as pessoas, os seus dilemas, os seus sonhos, as suas alegrias, os seus desejos, limitações, angústias e sofrimentos.
É a teoria tentando se impor ao concreto, sendo que se não for suficiente para isso, para não se revelar a dissonância entre ambos, a teoria apela ao sobrenatural e às figuras mitológicas.
Estimula-se, com isso, a criação de mitos, que se sustentam não mais em teorias racionais, mas em retóricas discursivas que não comportam objeções, já que o mito fala em nome de Deus, ou pelo povo, ou com a legitimação exclusiva da defesa da causa.
O fato é que os seres humanos não podem abandonar o desafio e o compromisso de buscarem continuamente a evolução de sua condição humana. As ideias e as teorias que lhes são consequentes são importantes para isso, mas devem estar sempre correlacionadas ao real, de modo, inclusive, a não servirem para criar efeitos diversos da proposição original. A liberdade, por exemplo, é um preceito fundamental e está baseada na noção, também fundamental, da igualdade. Já a liberdade contratual, em uma realidade entre pessoas economicamente desiguais, numa lógica em que os contratos servem à sobrevivência, escraviza. E a igualdade nunca se perfaz como preceito abstrato, exigindo, pois, a busca concreta, diária, de sua viabilização, ao menos em termos de oportunidades.
No filme mencionado, o autor tenta nos mostrar o quanto a convivência na terra pode ser representada por uma sinfonia, um concerto, no qual diversos elementos bastante diferentes se integram em sublime harmonia. Para isso é preciso aceitar as diferenças e, mais ainda, aprender com elas, o que, ademais, permite que se superem as diversas formas de opressão, de discriminação e de preconceito. O reconhecimento das diferenças nos integra a um mesmo plano de relevância, não sendo, pois, fundamento para a desigualdade.
As diferenças humanas servem à construção de um todo, de uma coletividade com potencialidades e valores superiores ao ser isolado, mas que, por ser uma soma, não anula o indivíduo.
Esse convívio é bastante complexo e sem a percepção da totalidade impulsionam-se lógicas de retrocesso e de esfacelamento. O maior erro que podemos cometer é o de não reconhecer essas dificuldades, de não perceber ou assumir as limitações e as inconsistências das proposições, e tentar justificar as deficiências de nossas soluções milagrosas por meio da insistente tentativa de identificar defeitos nas outras pessoas.
Em vez da elaboração de um concerto, os seres humanos que se pautam por uma suposta autoridade divina ou de supremacia humana e que, por essa visão, tentam “consertar” os outros, para que os fatos, as relações sociais, se adaptem à teoria, militam em favor do retrocesso da inteligência humana como um todo. Da mesma forma, claro, contribuem os que se impulsionam por mero capricho, egoísmo, orgulho, vaidade ou até por um interesse econômico particular e imediato.
Essas são, de forma bastante resumida, as motivações irracionais que deram origem a regimes ditatoriais, que podem ser melhor identificados como movimentos de eliminação de vidas humanas por seres humanos movidos pelo ódio, pela negação da liberdade, da diversidade e da pluralidade.
O que se quer dizer é que as ditaduras, todas elas, como também as que hoje tentam se consolidar por meio da violência virtual, devem ser rechaçadas e não comemoradas, vez que constituem a expressão nítida do estágio retrocedido do projeto de construção da condição humana.
Comemorar uma ditadura é uma demonstração de desprezo pela vida humana; é justificar e renovar a violência; é naturalizar o sofrimento; é desacreditar na inteligência e na capacidade dos seres humanos.
Não se podem “consertar” os fatos passados para justificar ou apagar os erros cometidos. O essencial é aprender com a experiência histórica, pois, do contrário, abre-se a porta para que os erros sejam repetidos.
Por isso é urgente expressar: ditaduras nunca mais!