Os dados são devastadores[1]: na somatória entre neoliberalismo, pandemia e governos negacionistas, os direitos das mulheres retrocederam, no último período, pelo menos 30 anos no Brasil. Em âmbito global, a Comissão da ONU sobre a situação das mulheres aponta para perda de 100 anos de conquistas.
Até o segundo semestre de 2020, 8,5 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho no Brasil, passando a compor, segundo IBGE, apenas 45.8% do mercado de trabalho, o menor incide desde 1990.
Maioria nos trabalhos de contratações precárias, foram as primeiras a perder seus empregos quando os setores de serviços, alojamento e alimentação e trabalhos domésticos foram encolhendo. Segundo dados extraídos do Caged, de abril a dezembro de 2020, no balanço geral, o saldo foi positivo para os homens, que ocuparam 168 mil novos postos de trabalho - enquanto isso, 94,9 mil colocações ocupadas por mulheres foram eliminadas.
E não foram só as desigualdades no mercado de trabalho pago que expulsaram as mulheres de seus empregos. As desigualdades e divisão desigual do trabalho dentro de casa contribuíram muito para esse quadro.
Enquanto isso, as mulheres negras, maior parte das profissionais dos chamados serviços essenciais, seguiram sendo as mais desvalorizadas. Segundo pesquisa da Gênero e Número, as mulheres negras da área da saúde sentiram mais medo do contágio, foram menos treinadas e sofreram mais assédio moral que seus pares mulheres brancas e homens. Além disso, as famílias negras foram as principais afetadas em seus rendimentos e pela precariedade de estrutura e saneamento básico em suas comunidades e moradias.
Não bastasse, estar mais em casa não tem sido apenas sinônimo de sobrecarga, mas também de violência. É nos lares que ocorrem cerca de 70% das violências decorrentes de gênero. Não por outra razão, passamos os últimos 12 meses denunciando e cobrando do poder público maior atenção às políticas de acolhimento e prevenção de violência doméstica, enquanto assistíamos à escalada das agressões e do feminicídio, que aumentou em 22%.
Na contramão do senso humano, Bolsonaro entregou às nossas mulheres o aprofundamento da barbárie, aumentando a liberdade para o porte de armas. Além disso, suas recorrentes falas preconceituosas, e sua postura baseada na mais clássica masculinidade tóxica, geram uma sensação de autorização para a violência contra a diversidade.
Para coroar, hoje, dia 8 de março, o Brasil não aderiu à declaração pelo direito das mulheres pronuncia pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, assinada por mais de 60 das principais democracias do mundo. Ao lado de governos de extrema direita como o da Hungria e da Polônia, nosso país deixou de apoiar a iniciativa, sob o argumento de que seria contra a expansão e garantia de “direitos sexuais e reprodutivos” para as mulheres.
De certo, não temos o que comemorar. Mas ainda temos oportunidade de tirar lições.
Se a caminhada tem sido dura nesse que parece ser um anoitecer na nossa época, a agudização da crise serve também para escancarar que a forma de ver o mundo a partir da ótica do feminismo, em muitos momentos, esteve correta.
Vivemos, certamente, uma crise do cuidado, ostentando números obscenos de mortalidade por Covid-19. Na chave do que apontam há décadas as feministas marxistas, o que estamos presenciando é o esgarçamento da contradição entre a desvalorização dos trabalhos doméstico e de cuidados frente aos trabalhos ditos “produtivos”, desequilíbrio que afeta a reprodução da vida e ameaça a vida de toda a sociedade.
Quando precisamos paralisar a produção simplesmente para preservar as nossas vidas, os trabalhos de reprodução social aparecem, finalmente, como evidentemente essenciais. Contudo, após décadas de desvalorização e de uma política deliberada de falta de investimento público em programas coletivos e equipamentos de saúde, cuidados e educação, somos pegos absolutamente desprotegidos na maior crise sanitária do século.
A relevância de sua força de trabalho e a desigual precarização da vida da população negra, pauta histórica do feminismo negro, também têm suas contradições expostas nessa crise. Angela Davis e Keeanga-Yamahtta Taylor ensinam: enquanto são categorias que concentram a maior parte das profissionais negras, que trabalharam e trabalham intensamente para sustentar as condições de vida da sociedade, as vidas negras seguem sendo as menos valorizadas, aprofundando o medo e a desproteção da maior parcela da população.
Sequer a pandemia, enquanto fenômeno sociobiológico, poderia ser tida como algo verdadeiramente inesperado, se tivéssemos ouvido nossas hermanas. As feministas comunitárias da Bolívia, por exemplo, nas palavras de Julieta Paredes, há muito vêm dizendo que a forma predatória com que o capitalismo e o colonialismo lidam com os recursos naturais está na iminência de gerar uma irreversível degradação e adoecimento do meio ambiente e, consequentemente, da humanidade.
Nada foi por falta de aviso. Em meados do século XX, Simone de Beauvoir já alertava: basta uma crise para que os direitos das mulheres sejam questionados. Nesse contexto, a grande novidade parece ser a crescente urgência de que o feminismo deixe de ser a “questão da mulher”, e passe a ser tratado como uma luta que implica a todos e todas enquanto coletividade.
Colocar no centro dos debates a condição dos trabalhos reprodutivos, da nossa relação com o cuidado, da precarização de corpos e de vidas marcados pelas opressões de gênero e de raça, é tarefa essencial para que tenhamos a chance de sonhar com outro mundo. Sejamos todos e todas feministas!
São Paulo, 08 de março de 2021.
[1] Um debate mais completo sobre a conjuntura das mulheres trabalhadoras pode ser encontrado no evento realizado pela EDITH no dia 7 de março de 2021, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AN2OYPpxx2s