Quando o governo Lula assumiu o poder, em 2003, tinha-se a esperança de que fosse revogada a legislação trabalhista de ideário neoliberal implementada no governo FHC.
Qual o quê?!
O que se viu foi a integral manutenção da legislação em questão (banco de horas; contrato provisório; contrato a tempo parcial etc.) e, até mesmo a sua ampliação, inicialmente com a Lei n. 10.748/03 (a lei do “primeiro emprego”), e, na sequência, com a Lei n. 10.820/03 (que passou a permitir desconto no salário para obtenção de financiamento bancário), a Emenda Constitucional n. 41 (que aumentou o tempo para a aposentadoria, substituindo o requisito do tempo de serviço para tempo de contribuição e estabeleceu a taxação dos inativos – declarada constitucional pelo STF, em decisão de 18 de agosto de 2004, no julgamento das ADIs ns. 3105 e 3128, e a Lei n. 11.101/05, da recuperação judicial, que retirou do crédito trabalhista (superior a 150 salários mínimos) o caráter privilegiado com relação a outros créditos e buscou eliminar a sucessão trabalhista. Essa lei, aliás, tem sido utilizada até hoje como forma de institucionalização do calote trabalhista.
Do ponto de vista legislativo, com raras exceções, como a lei dos motoristas (Lei n. 12.619/12) e a Emenda Constitucional n. 72, que ampliou os direitos das trabalhadoras domésticas, as perdas trabalhistas constituíram a marca dos governos petistas até 2016, valendo lembrar que mesmo as normatizações mencionadas sofreram retrocessos, a primeira, pela Lei 13.103/15, e a segunda, pela Lei Complementar n. 150/15.
A mensagem enviada pelo PMDB por meio do programa “Ponte para o Futuro”, que prevê reforma trabalhista e reforma previdenciária, é captada pelo poder econômico e assim se engendra o golpe político que, em 2016, retira Dilma do poder e coloca em seu lugar Michel Temer, com a incumbência de realizar as ditas “reformas impopulares”.
O governo do Partido dos Trabalhadores é deposto por um golpe de Estado para que um retrocesso social (trabalhista e previdenciário) sem precedentes fosse implementado.
Assim, em 2017, em autêntica situação de ruptura democrática, o governo Temer (com todo apoio do Congresso Nacional e o silêncio eloquente do STF) entrega a “reforma” trabalhista, que, como se sabe, impôs enormes perdas de direitos à classe trabalhadora e legitimou o assédio e o sofrimento nas relações de trabalho.
E, como a reforma previdenciária não foi entregue, para que fosse alcançada, considerou-se relevante impedir o retorno do Partido dos Trabalhadores ao poder, sobretudo por conta das inúmeras manifestações dos congressistas petistas contra as ditas reformas. É neste contexto que se articulou a condenação e a prisão de Lula, constituindo um autêntico caso de lawfare!
Ao final de 2019, no governo Bolsonaro, alcança-se, então, a reforma previdenciária.
E mesmo no período da pandemia, quando o trabalho humano se demonstrou essencial para salvar vidas, a precarização continuou dando o tom das relações de trabalho no Brasil. A precarização não só se manteve, como se aprofundou, aliás.
Assim, depois de mais 700 mil mortes e de um sofrimento intenso entre 2018 e 2022, a eleição de Lula no final de 2022 trouxe a esperança de que uma drástica mudança de rumo se verificasse na realidade nacional, sobretudo no aspecto das relações de trabalho, até porque, vale lembrar, Dilma sofreu um golpe e Lula foi arbitrariamente preso para que as “reformas impopulares” fossem concluídas.
Qual o quê?!
O que se viu, ao menos nesse primeiro ano de governo, foi a integral manutenção de tudo que se produziu, do ponto de vista legislativo, de 2017 a 2022, ou seja, nos governos Temer e Bolsonaro.
A atuação do governo Lula (3), em matéria de legislação trabalhista, neste primeiro ano (2023), pode ser apresentada, de forma resumida, com uma sucessão de NÃOS:
- NÃO revogou a “reforma” trabalhista (o que o candidato Lula chegou a aventar durante a campanha);
- NÃO regulamentou o trabalho por aplicativos;
- NÃO nomeou ao menos um(a) jurista trabalhista para o STF – lembrando que uma das vagas abertas decorreu da aposentadoria da Ministra Rosa Weber, única especialista da área no Supremo e destacando também que os Ministros nomeados por Lula, Temer e Bolsonaro estão atuando com a mesma linha de pensamento neoliberal, para promoverem uma verdadeira avalanche na rede de proteção jurídica e social da classe trabalhadora, sobretudo, no aspecto da abertura para fórmulas fraudulentas de contratação de força de trabalho sem o reconhecimento da relação de emprego e até afastamento da competência da Justiça do Trabalho.
Além disso, também NÃO nomeou ao menos uma mulher negra para o STF, como era – e ainda é – urgente e necessário.
De todo modo, para registro histórico, deixemos consignadas os fatos:
- 30/10/2022: Lula vence as eleições.
- 1º/01/2023: Lula tome posse.
- 1º/05/2023: Decreto 11.515 cria, no Ministério do Trabalho, um Grupo de Trabalho para propor uma regulação do trabalho por plataformas, com 45 membros titulares: 15, do governo; 15, dos trabalhadores; 15, das empresas.
- 1º/05/23: Medida Provisória n. 1.172/23 fixa R$ 1.320,00 o valor do salário mínimo de 2023;
- 16/06/2023: O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) anunciou a realização de concurso público para preenchimento, no primeiro trimestre de 2024, de 900 vagas de auditores fiscais do trabalho.
- 23/08/23: A Câmara dos Deputados aprova texto da Medida Provisória 1.172/23, com as alterações propostas pelo Relator, deputado Merlong Solano (PT-PI), que estabeleceram uma política de valorização do salário mínimo, prevendo, além da correção monetária, um aumento real equivalente à variação positiva do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos anteriores ao de vigência do novo valor e ampliação da faixa de isenção da tabela do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 2.640,00.
- 24/08/23: O plenário do Senado aprova, em votação simbólica, a Medida Provisória 1.172/23
- 13/11/2023: Portaria 3.665 do Ministério do Trabalho e Emprego fixa a condição de autorização por convenção coletiva de trabalho para a realização de trabalho, no comércio, em domingos e feriados.
- 21/11/2023: Com apoio da base aliada do governo, a Câmara aprova o Projeto de Lei 5228/19, do Senado, que diminui o recolhimento do FGTS e da Previdência Social por parte do empregador na concessão de primeiro emprego a jovens de 18 a 29 anos e para pessoas com mais de 50 anos e sem vínculo formal de trabalho há mais de um ano.
O texto aprovado é um substitutivo da deputada Adriana Ventura (Novo-SP), que retoma as regras gerais da Carteira Verde e Amarela, objeto da Medida Provisória 905/19.
- A alíquota do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) devida pelo empregador passará de 8% para 2% no caso da microempresa; para 4% se empresa de pequeno porte, entidade sem fins lucrativos, entidade filantrópica, associação ou sindicato; e para 6% no caso das demais empresas.
- A indenização na demissão sem justa causa segue a legislação. Já a contribuição à Seguridade Social passa de 20% para 10% do salário.
- Os contratos são por tempo determinado de 06 meses, permitindo-se prorrogação até 24 meses.
- 23/11/2023: Portaria 3.708 estabelece que a vigência da Portaria 3.665 se dará somente a partir de 1º de março de 2024.
- 20/12/2023: O Congresso Nacional promulga a Emenda Constitucional 132, da reforma tributária, aclamada na Faria Lima.
- 27/12/2023: O governo oficializa o novo salário mínimo, no valor de R$1.421,00, válido a partir de 1º de janeiro de 2024, já fixado em conformidade com a política de valorização trazida no texto da MP 1.172/23 aprovado na Câmara e no Senado.
Como se vê, com exceção do aumento real do salário mínimo e da promessa da abertura de concurso para ampliação do número de auditores-fiscais do Ministério do Trabalho, o primeiro ano do governo Lula (3) representou uma continuidade de tudo que se promoveu em termos de derrocada trabalhista de 2017 em diante, isto para não falar de tudo que já havia se concretizado no mesmo sentido desde a década de 90, até hoje em vigor, passando por cima do pacto Constitucional, inclusive.
Alguns poderão dizer que teria sido apenas um ano de acomodação e que, por isso, não se teriam levado adiante propostas mais concretas, no sentido da reconstrução de direitos trabalhistas.
Os fatos, no entanto, abalam este otimismo, pois não foi apenas uma continuidade no sentido de manter as leis anteriores inalteradas, mas também de levar adiante alguns projetos inacabados, como a reforma tributária, tendo-se, até mesmo, feito o resgate da Carteira Verde e Amarela, que, em certo sentido, remete à Lei do Primeiro Emprego, do governo Lula (1).
O que se tem, concretamente, é um fortalecimento dos ideários neoliberais, tanto que se prenuncia a retomada da pauta da reforma administrativa, como prioritária para 2024 (https://esbrasil.com.br/reforma-administrativa-novamente-no-radar/).
E nem se diga que o governo se viu com mãos atadas, diante de um Congresso conservador, afinal, em números de iniciativas regulatórias, o Poder Executivo, sob o comando de Lula, se igualou ao do governo anterior (https://www.cnnbrasil.com.br/politica/em-primeiro-ano-de-governo-lula-se-iguala-a-bolsonaro-em-numero-de-mps-editadas/).
A questão é que as preocupações do governo Lula não foram, precisamente, ligadas à necessidade de reconstruir a rede de proteção jurídica trabalhista, mirando as relações de trabalho unicamente no aspecto específico da arrecadação, sendo que, para concluir este objetivo, nenhum argumento de dificuldade no Congresso constituiu fundamento para a inação (Governo publica MP com reoneração gradual da folha de pagamentos (uol.com.br).
Verdade que o ano termina com aumento do número de pessoas trabalhando com carteira assinada. Em setembro de 2023, segundo dados do IBGE, eram 37.361 mil. Mas, os empregos, em geral, continuam sendo os empregos precários, tanto que a taxa de rotatividade da mão de obra no Brasil, em torno de 56%, é uma das mais altas do mundo (se não a mais alta), cabendo o registro de que metade das cessações de vínculo tem se dado por pedido de demissão, o que reforça a convicção em torno do sofrimento gerado pela precarização do emprego (https://www.panrotas.com.br/100xbrasil/pesquisas-e-estatisticas/2023/08/brasil-lidera-indice-de-rotatividade-de-funcionarios-em-todo-o-mundo-56_199128.html).
Cabe o registro, também, de que a tendência do número de contratações já vinha se anunciando com o término da pandemia. Lembre-se que, conforme demonstram os registros do IBGE, em dezembro de 2021, eram 34.495 mil de trabalhadores(as) com carteira assinada e este número, em dezembro de 2022, já havia saltado para 36.858 mil.
Também é verdade que a massa salarial, considerando o trimestre encerrado em novembro de 2023, sofreu aumento de 4,8% (https://exame.com/brasil/massa-salarial-alcanca-patamar-anual-recorde-no-trimestre-ate-novembro-de-2023-diz-ibge/). Mas este dado não reflete apenas o trabalho assalariado. Além disso, em contrapartida, os lucros das empresas brasileiras cresceu bem mais, atingindo o percentual de 20%, no 2º trimestre de 2023 (https://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2023/08/22/lucro-das-empresas-brasileiras-cresce-quase-20percent-no-2o-trimestre-com-o-dolar-mais-barato-mas-vendas-caem.ghtml).
O fato concreto é que o jogo, como sempre, está sendo jogado e todas as ações e inações já estão sendo postas na mesa e serão decisivas para os novos lances.
Engana-se quem acredita que 2023 foi apenas um ensaio. Foram 12 (doze) meses reais e uma realidade muito sofrida para quem teve que suportar a vigência de leis que precarizam as relações de trabalho e desconsideram a condição humana de quem vive da venda da força de trabalho. Enquanto, as contas políticas são feitas, trabalhadores e trabalhadoras sofrem e morrem, nas mais variadas profissões e, mais ainda, naquelas em que as pessoas historicamente discriminadas, homens negros e, sobretudo, mulheres negras, atuam – terceirizados(as); entregadores; trabalhadores(as) rurais; domésticas etc.).
Caso se mantenha em 2024 as posturas relativas aos NÃOS acima enumerados, notadamente, a de NÃO revogar a “reforma” trabalhista e a de NÃO regular as relações de trabalho por aplicativos, com o reconhecimento da integralidade de direitos aos(às) trabalhadores(as), ou, pior, propor uma regulação meio-termo para este tipo de trabalho, ou seja, sem a efetiva garantia de todos os direitos trabalhistas, o que se terá como efeito, dada a tendência generalizante que uma medida desta natureza proporciona, é a realização, pelas mãos de um governo dito trabalhista, da destruição total do pacto de solidariedade, da ideia de Seguridade Social, do Estado Social e, por consequência, da própria democracia.
É preciso, igualmente, de forma urgente, responsabilizar e julgar todos os responsáveis pelos desmandos cometidos durante a pandemia e que geraram o sacrifício de milhares de vidas trabalhadoras em nosso país.
Enfim, desde 2003 já se deveria ter aprendido a lição de que o poder econômico não tem – e não tem como ter – um projeto social e que, enquanto um novo modo de vida efetivamente igualitário e socialista não se constrói, é preciso, e de forma cada vez mais urgente, fazer valer os limites sociais, ambientais e humanos fixados na Constituição Federal e nas Declarações e Tratados Internacionais, sob pena de todos e todas sucumbirmos com ele e sua ganância autodestrutiva.
Vale o registro de que as ações não dependem apenas do governo. Requer-se o agir – ou ao menos o “grito” – de cada um de nós e, principalmente, de todas as organizações representativas da classe trabalhadora.
Cada ano de inércia é um passo a mais na direção da barbárie!
São Paulo, 31 de dezembro de 2023.