Há muito, no âmbito trabalhista, no Brasil, o discurso econômico se sobrepôs à racionalidade jurídica. A razão e a função históricas dos direitos trabalhistas, além do pacto de solidariedade firmado na Constituição de 1988, com vistas à construção de uma sociedade capitalista nos moldes do Estado Social, foram completamente abandonados sob o argumento do alto custo dos direitos sociais e do quanto isso inviabilizava negócios, impedia o desenvolvimento econômico do país e até promovia o desemprego, vez que, diante do valor elevado do trabalho, as empresas se recusavam a contratar mais empregados.
A solução, dentro dessa linha de pensamento, que se sempre se apresentou como óbvia era: reduzir os custos do trabalho e assim mais empregos seriam providos e maior dinâmica se daria à economia.
Em todas essas recorrentes alterações legislativas, promovidas, sempre, no mesmo sentido da redução de direitos, os efeitos preconizados de melhoria da economia e da diminuição do desemprego não se produziram. Bem ao contrário, o que se verificou foi o aumento da injustiça social, da concentração de renda, da miséria e do sofrimento. No entanto, mesmo assim se mantiveram inabalados os argumentos e as iniciativas legislativas daí decorrentes, que priorizam os interesses econômicos em detrimento da efetivação do projeto de Estado Social baseado na centralidade e valorização do trabalho, na dignidade humana e na maior e mais justa distribuição da riqueza coletivamente produzida.
Isso pode parecer uma incoerência, mas não é, pois, de fato, nunca se pretendeu enfrentar os problemas econômicos estruturais. O argumento, concretamente, servia, e ainda serve, para manter ou aumentar as taxas de lucro por meio da extração menos onerosa de valor do trabalho. Não é à toa que, enquanto, nesse período, os problemas econômicos e sociais do país se multiplicaram, os lucros das grandes empresas multinacionais só aumentaram.
As inconstitucionalidades, as inconvencionalidades e as inconsistências jurídicas dessas medidas de retração de direitos sociais e humanos já foram por demais denunciadas. A falácia dos argumentos econômicos que as justificaram também já foi escancaradamente posta a mostras para quem quiser ver.
É hora, pois, de se alastrar para outros campos do conhecimento, para tentar encontrar explicações para a disseminação e a adesão "voluntária" a esse fenômeno autodestrutivo, já que o rebaixamento de direitos constitui uma fórmula de destruição de toda a sociedade.
Fato é que não se pode conceber uma sociedade sem seres humanos conscientes e saudáveis. Seres humanos saudáveis projetam suas vidas em uma direção progressiva. São alimentados por sonhos, desejos e se realizam com conquistas efetivas. Quando reduzidos a instrumentos integrados a um processo produtivo, valendo o que valem as coisas que produz, menos conscientes e menos humanos são tais seres.
O rebaixamento ao estado de sobrevivência, como disse Mauro Mendes Dias, no Resenha XXXVII, retira dos trabalhadores e das trabalhadoras a própria condição humana, ainda mais quando são apenas confrontados com a possibilidade de piora da situação.
Nas últimas décadas, a classe trabalhadora brasileira, que compõe a grande parte da nossa população, se viu colocada somente diante da chantagem de aceitar alguma perda, para não correr o risco de perder ainda mais.
Coletivamente, foi retirada da classe trabalhadora a possibilidade de sonhar, de projetar, de evoluir.
E, no cotidiano do trabalho, além do medo constante do desemprego, ainda se intensificaram as formas de extração de valor do trabalho, metas abusivas, horas extras, supressão de intervalos, baixos salários, tudo acompanhado de formas opressivas e assediantes, como cobranças e ameaças...
Durante a pandemia, a continuidade do trabalho, para muitos, se deu com o acréscimo do medo do contágio, com redução de salários e com ritmo ainda mais intenso, potencializando, inclusive, o estado de submissão e dependência no emprego; para outros, se operou com a invasão do trabalho de uma vida privada já atordoada pelos acréscimos dos afazeres e responsabilidades domésticas durante a quarentena. O trabalho, com todos os seus custos, foi transferido para as casas de inúmeros(as) trabalhadores(as), no denominado teletrabalho ou trabalho virtual, também conhecido pela fugidia expressão, "home office".
Essa precarização recorrente, que rouba sonhos e torna o trabalho mais árduo, desumano e intenso, adicionada a essas novas formas de exploração à distância, que são ainda mais impessoais e que se fazem acompanhar da ausência de limitação da jornada de trabalho e da gravidade de cobranças de metas irrealizáveis, tudo para atender os postulados da produção, gera, certamente, efeitos na saúde física e mental de quem vive do trabalho.
E se pensarmos que quando falamos de pessoas que vivem da venda da força de trabalho, estamos nos referindo a 173 milhões de pessoas, dentro de um universo de 209 milhões, e como estão sendo postas em destaque as dificuldades, angústias e medos que atingem essas pessoas, marcadas pela precarização e a insegurança, demonstrando o quanto isso gera problemas de ordem mental, o que se está evidenciando, de fato, é o quanto estamos constituindo uma sociedade doente.
Não se trata, portanto, apenas de um problema relacionado às dificuldades econômicas de milhões de pessoas, muitas delas vivendo abaixo da linha da miséria. Trata-se da constituição de uma sociedade formada, em quase sua totalidade, por pessoas sofridas, sem sonhos, alienadas, reificadas e mentalmente debilitadas, o que, se por um lado, dificulta enormemente a tarefa da formação de um projeto social a partir dos postulados do Estado Social, por outro, facilita a tarefa de seitas religiosas e de iniciativas assistenciais personalizadas, que são, ao mesmo tempo, reprodutoras do modelo de exclusão e estímulos massificadores a serviço de arroubos autoritários e regimes fascistas.
Fato é que quando mais precarização, maior o sofrimento. Mas isso não significa maior consciência coletiva. Aliás, bem ao contrário. A precarização das condições de trabalho não representa apenas uma forma de mais extração do valor do trabalho. Constitui, sobretudo, um projeto de poder totalitário baseado na debilidade generalizada da condição humana, na falência das instituições democráticas, inaptas para lidar com a situação de miséria disseminada, e no interesse imediato de grandes corporações, na sua ânsia concorrencial e de dominação, não lhes importando muito os fins para tanto.
Falar sobre isso é essencial. Vamos, então, conversar com o professor e psicanalista Christian Dunker, cuja formação intelectual é nacionalmente reconhecida.
E contaremos, novamente, com os necessários ensinamentos da professora Aldacy Rachid Coutinho.
Então, ficamos assim combinados:
Resenha Trabalhista XXXVIII – “A precarização do trabalho como projeto político baseado no sofrimento”
Participação: Jorge Luiz Souto Maior
Um bate-papo com:
- Aldacy Rachid Coutinho: professora titular aposentada de Direito do Trabalho na UFPR, integrante da Renapedts e professora de pós-graduação da UNIVEL;
- Christian Ingo Lenz Dunker: psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da USP.
Sábado, hoje, 10/10/20 às 18h00
Transmissão pelos canais:
https://www.youtube.com/watch?v=O9vqXoNWdo4
https://www.facebook.com/244677185666743/posts/1966368563497588/
Até lá!
Jorge Souto Maior