Sobre o tema pertinente à utilização do fundo público na pandemia, para intervir na economia, o primeiro aspecto que se deve ter em mente é que os recursos estatais advêm do processo de produção e circulação de mercadorias e estas são concebidas pelo trabalho humano. Sendo assim, o Estado, na concepção de um Estado Social, é meramente um administrador da riqueza socialmente produzida, notadamente pela energia dispensada pelos trabalhadores e trabalhadoras.
Esse dado é extremamente importante para que não se caia na armadilha de considerar que os benefícios sociais são dadivas do Estado ou dos governantes. Estes, quando bem administram o fundo público e concebem benefícios sociais, nada mais fazem do que devolver à classe trabalhadora (composta daqueles que vivem da venda da força de trabalho, incluindo os que sequer conseguem fazê-lo, dadas as limitações de inserção no restrito mercado de trabalho) parte da riqueza por ela produzida.
Do ponto de vista estrutural, o ponto essencial é a definição do tamanho do Estado Social, o que se estabelece pelas parcelas extraídas do processo produtivo por meio de impostos e contribuições sociais. O segundo, mas não menos importante, é a definição da destinação desse fundo público, por meio de serviços sociais, benefícios sociais.
Desde que formulado na Constituição de 1988, o pacto de solidariedade, fundamental para a concepção do Estado Social, que atrelou a economia aos ditames da justiça social e que promoveu a consagração dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o que se viu, tanto no plano das ações do poder público quanto no âmbito das relações privadas, foi a disseminação de práticas disruptivas do pacto. De fato, a sociedade brasileira se moveu por uma espécie de “pacto antissocial”, do qual se alimentaram, inclusive, as diversas formas de corrupção, dentre elas, as principais, a sonegação fiscal e o desrespeito reiterado dos direitos sociais.
O apelo econômico por diminuição de impostos e redução de direitos sociais foi reiteradamente e de forma crescente atendido. E como essas medidas reduziram o fundo público e, consequentemente, a capacidade do Estado de intervir na economia por meio de políticas de distribuição da riqueza socialmente produzida. O resultado foi a sucessiva diminuição da parcela do PIB destinada à classe trabalhadora, a redução dos serviços públicos e, por consequência, o aumento da concentração da riqueza (sem falar no aumento do sofrimento e do sacrifício de vidas).
Diante da pandemia, quando a centralidade do trabalho como produtor de riqueza ficou evidenciada; quando a relevância dos trabalhadores e trabalhadoras restou inconteste, sendo chamados publicamente inclusive de heróis nacionais; quando a preocupação com a vida alheia, superando o patamar da solidariedade, pode ser vista como uma forma autêntica de alteridade, já que o risco à vida de uns interferem no risco à vida de todos; o que se pressupunha era que haveria uma tomada de consciência em torno do aumento do Estado Social, para que a riqueza coletivamente produzida (já sensivelmente reduzida pelas limitações produtivas) fosse utilizada em proveito do todo social e, sobretudo, em benefício das pessoas que, em razão das equivocadas políticas públicas historicamente adotadas, foram conduzidas aos planos da total exclusão ou inserção por meio da exploração predatória da condição humana.
No entanto, por meio das medidas inseridas na MP 936, transformada em lei (Lei n. 14.020/20), o que se viu foi a destinação de enorme parcela do fundo público em benefício de grandes empresas.
As medidas de redução de salários e suspensão do contrato de trabalho, acompanhadas do aporte estatal do seguro-desemprego, tentam se apoiar na retórica de serem benefícios concedidos às trabalhadoras e aos trabalhadores e de serem providências necessárias para a preservação de empregos.
No entanto, não exigem qualquer requisito de ordem econômica para a utilização de parte do fundo público nas relações de trabalho de forma generalizada. Assim, mesmo grandes empresas que acumularam enormes lucros nos últimos anos e até outras que mantiveram lucros durante a pandemia se valeram das medidas e, com isso, reduziram custos e aumentaram ou preservaram margens de lucros, enquanto que os seus trabalhadores e trabalhadoras tiveram uma redução de renda em até 70%.
Trata-se, por certo, de uma perversão da lógica do Estado Social, com a utilização de uma estratégia jurídica para extrair parcela do fundo público e devolvê-la às grandes empresas e tudo isso sem qualquer proveito social.
Cumpre reparar que o nível de emprego não se manteve. Pelo contrário, o desemprego aumentou consideravelmente.
Primeiro, porque nenhuma medida concreta de proibição de dispensa de trabalhadores e trabalhadoras foi adotada. Assim, mesmo as empresas que reduziram salários e suspenderam contratos, promoveram dispensas em massa trabalhadores.
Segundo, porque a redução de salários e a suspensão de contratos só têm efeito benéfico para grandes empresas que possuem capital acumulado e continuam produzindo em larga escala, ainda que de forma reduzida. Para as micro e pequenas empresas descapitalizadas, como bares e restaurantes, por exemplo, a suspensão das atividades elimina completamente a possibilidade produtiva ou de continuidade da prestação de serviço, interrompendo o faturamento de forma total. Assim, para essas empresas, que são as maiores empregadoras do país, reduzir salários e suspender contratos não representa nenhum benefício, restando, apenas, a “saída” do encerramento das atividades, com a consequente dispensa de trabalhadores e trabalhadoras.
Terceiro, porque a diminuição da renda da classe trabalhadora gera enorme impacto negativo no consumo e isso, com a consequente diminuição das vendas, anula as vantagens econômicas de empresas com pequenas margens de lucro, retroalimentando o desemprego.
Diante de todos esses pressupostos, o Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da Faculdade de Direito da USP se dedicou, nos últimos dois meses, a dar início a uma pesquisa pela qual se pretende identificar as diversas situações em que as medidas da Lei n. 14.020/20 serviram para beneficiar grandes empresas que: tiveram altos lucros em 2019; mantiveram lucros mesmo durante a pandemia; se valeram da redução dos salários dos trabalhadores para fazer doações e com isso se promoverem midiaticamente como benfeitoras sociais; ou que simplesmente aproveitaram a redução para promoverem reformas em suas estruturas físicas.
A pesquisa tomou por base relatório das empresas que se valeram das medidas, fornecido pelo Ministério da Economia por meio do Portal da Transparência e, principalmente, os balanços públicos das empresas de capital aberto, conforme relação contida na Bolsa de Valores de São Paulo.
Os dados são, ainda, iniciais e parciais, não contemplando a totalidade das empresas que se valeram das medidas, vez que foram mais 1.400.000 empresas.
O número total de trabalhadores empregados com carteira assinada saiu de 33.096.000, em março/20, para 30.154.000, no trimestre encerrado em junho/20.
E as medidas foram amplamente utilizadas pelos empregadores.
Ao todo, 1.453.735 empregadores que se valeram das possibilidades jurídicas criadas pela MP 936, e efetivaram 18.612.074 acordos. Vale lembrar que estamos falando de um universo de 3.554.000 empregadores com CNPJ.
Dos 30 milhões de trabalhadores com carteira assinada, 9.754.349 tiveram seus contratos suspensos ou seus salários reduzidos nas proporções de 25, 50 ou 70%, ou mesmo mais de um efeito de forma sucessiva.
Ou seja, praticamente 1/3 dos empregados no setor privado tiveram redução em seus rendimentos e 10% perderam o emprego.
Cumpre também consignar que o benefício oferecido pelo governo não preserva o valor integral do salário recebido pelo(a) trabalhador(a).
O valor do seguro-desemprego, que é adotado como parâmetro do benefício criado, é proporcional à média dos últimos três salários e sempre com redução. Para quem recebeu a média de até R$ 1.599,61, o benefício será de 80% desse valor, ou seja, o(a) trabalhador(a) sofrerá uma redução de 20% em sua renda, enquanto o empregador terá um auxílio de 100% do custo do trabalho.
Se a média salarial for de R$ 1.599,62 a R$ 2.666,29, a redução será ainda maior, pois o benefício será 50% da média, acrescido da importância de R$ 1.279,69.
Se a média for superior a R$ 2.666,29, o valor do benefício é de R$ 1.813,03.
E quando a redução salarial é inferior a 25%, o que também se apresentou como possível diante da abertura para a livre negociação individual, não há benefício estatal algum para o trabalhador (§ 2º, I, do art. 11).
E o impacto econômico do benefício pago pelo governo apenas se sentiu de forma mais direta e positiva nas grandes empresas. Para pequenos empregadores, que já experimentavam dificuldades, suspensão do contrato ou redução salarial não representam solução diante da drástica redução de consumo determinado pelo isolamento social. Diante de uma ajuda que não lhes atingia e sem o crédito bancário, que foi até vislumbrado pela MP 944 (com aporte de 40 bilhões) mas que acabou sendo obstruído pela sanha de lucro dos Bancos (https://theintercept.com/2020/05/18/bancos-emprestimos-crise-coronavirus/), a saída encontrada para 1,3 milhões de empresas foi a suspensão das atividades, sendo certo que um total de mais de 700 mil acabaram encerrando suas atividades definitivamente (https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-19/716000-empresas-fecharam-as-portas-desde-o-inicio-da-pandemia-no-brasil-segundo-o-ibge.html#:~:text=Desde%20que%20a%20pandemia%20do,feira%20(16%2F07).
Acrescente-se que com a redução do valor que as empresas pagam aos seus empregados há, proporcional e consequentemente, redução da arrecadação previdenciária e tributária, sendo que também os recolhimentos para o FGTS ficaram suspensos até junho de 2020, nos termos da MP 927.
Com tudo isso, suspeita-se que o governo tenha gastado R$ 22bilhões para beneficiar de forma mais direta a grandes empresas, sendo que muitas delas já vinham acumulando altos lucros nos últimos anos e outras tantas as reduções de custo proporcionadas pela MP 936 acabam se inserindo em um contexto de gerenciamento orçamentário que possibilitou manter ou até aumentar taxas de lucro, enquanto seus empregados experimentaram redução de renda e o mercado como um todo o rebaixamento do consumo.
Neste contexto, insere-se também o auxílio-emergencial.
Até 8 de setembro, R$ 254 bilhões, referentes ao auxílio emergencial de R$ 600 aprovado em março pelo Congresso Nacional, haviam sido pagos a mais de 65 milhões de pessoas. Esses valores, no entanto, são, obviamente, destinados ao consumo imediato, favorecendo diretamente o comércio9 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/auxilio-emergencial-infla-retomada-nos-estados-do-norte-e-do-nordeste.shtml), mas, sobretudo, a empresas que mantiveram a produção na pandemia, muitas delas, exatamente, as grandes empresas que mantiveram lucros, se valeram da MP 936 e até eliminaram postos de trabalho.
Novamente, o fundo público volta às mãos do capital e, desta feita, sem repercussão social, já que este processo de circulação está desvinculado de qualquer projeto de política pública de realização de serviços públicos e melhoria das condições materiais da população. Bem ao contrário, o que se vê, em paralelo, é o avanço de uma reforma administrativa voltada a reduzir os serviços públicos, incluindo escolas, universidades, hospitais etc. Serviços estes, cabe lembrar, que já haviam sido intensamente abalados pelo reconhecimento da constitucionalidade (ADI 1923) da contratação, inclusive sem licitação, de Organizações Sociais para a sua realização na forma de uma atividade privada.
Ao mesmo tempo, o benefício, apresentado como uma benesse de governantes, diante da disseminação e naturalização da precarização impulsionadas pelas reformas trabalhista e previdenciária, que rebaixam o próprio sentido da cidadania, aliadas à destruição das estruturas de Estado almejada pela reforma administrativa, fornece o alimento que faltava para a explicitação, sem rodeios, de argumentos em favor do autoritarismo, que se vale, inclusive, do escracho às instituições democráticas e midiáticas, que pouco podem dizer diante do compromisso que ainda assumem com a aparente lógica neoliberal de mercado em que essas iniciativas todas dizem se apegar.
Enquanto isso, sob responsabilidade de todas as mãos que contribuíram de um modo ou de outro para o aumento da precarização no país, promove-se um morticínio entre a população atingida pela informalidade e pelas baixas condições de vida. É onde a COVID-19 mata mais (http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/48894 /
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/trabalho-informal-eleva-risco-de-contagio-e-morte-por-covid-19.shtml)
É preciso, pois, avaliar com mais profundidade os efeitos econômicos e sociais decorrentes do direcionamento dado ao fundo público na pandemia.
Saber ao que serviu o dinheiro público investido é, pois, uma pesquisa importantíssima, cujos resultados serão, em parte, apresentados no Resenha Trabalhista deste sábado.
Por fim, cumpre esclarecer que os dados pesquisados são os dados oficiais do Ministério da Economia, obtidos junto ao portal da transparência; das publicações da Bolsa de Valores; e de informações públicas divulgadas na internet.
Trata-se, ademais, de um levantamento inicial, já que os dados totalizantes são referentes a mais de 1,4 milhões de empregadores, sendo que na lista do Ministério da Economia nem todas as empresas aparecem e algumas outras aparecem de forma duplicada (valendo esclarecer que as duplicidades foram desprezadas).
Então, ficamos assim combinados:
Resenha Trabalhista XXXIX - Pesquisa GPTC: “Destinação do fundo público pela utilização da MP 936”
Participação: Jorge Luiz Souto Maior
Expositores(as) – pesquisadores(as) do GPTC-USP:
- Helena Pontes dos Santos;
- Caio Silva Melo;
- Giovanna Maria Magalhães Souto Maior;
- Pedro Henrique Silva Rizzo;
- Ana Lucia Marchiori;
- Hafid Omar Abdel M. De Carvalho.
Domingo, 18/10/20 às 19h00
Transmissão pelos canais:
https://www.youtube.com/watch?v=j9mM-7513QQ
https://www.facebook.com/244677185666743/posts/1974504489350662/
Até lá!
Jorge Souto Maior