O ano de 2020, certamente, ficará marcado na história como um dos anos mais difíceis e desafiadores para a humanidade, não só por conta dos desafios e sofrimentos impostos pela pandemia de COVID-19 provocada pelo novo coronavírus, mas também pela necessidade de se confrontarem alguns das ideias que se tornaram dominantes e quase inquestionáveis na era neoliberal: o individualismo; a desvalorização do trabalho; o rebaixamento do papel do Estado; o fortalecimento das grandes corporações; a busca incansável de status reforçada pela difusão generalizada do mundo da visibilidade virtual das redes sociais na internet etc.
Durante a pandemia e a imposição do isolamento social foram obrigatoriamente recuperados a importância da solidariedade e do gerenciamento social do Estado, além da essencialidade do trabalho e, consequentemente, do trabalhador e da trabalhadora.
Em balanço muito rápido é possível dizer que o Brasil não conseguiu aprender nada com as lições da pandemia e acabou multiplicando as consequências nefastas do vírus.
Em 20 de março de 2020, por meio do Decreto Legislativo n. 6, o governo reconheceu o estado de calamidade pública decorrente da pandemia de COVID-19, com efeitos até 31 de dezembro deste ano. Até aquele dia o Brasil acumulava 11 mortes pela doença.
Dias antes, em 18 de março, a CNI havia apresentado ao governo um documento requerendo 37 providências para o enfrentamento da pandemia. No plano trabalhista, os requerimentos foram no mesmo sentido de sempre, o da ampliação da precarização das condições de trabalho e redução dos custos de produção, dentre elas: redução de exigências para a adoção do teletrabalho; ampliação do tempo para compensação de banco de horas; permissão expressa para alteração de horários de trabalho; e ampliação do “lay off”, que permite a suspensão dos contratos de trabalho.
No dia 22 de março, o governo, então, editou a MP 927, que reproduziu praticamente a integralidade da demanda empresarial e foi além, de modo a lhe conceder, igualmente, uma suposta possibilidade jurídica de formalização de acordos individuais para a redução de todo e qualquer direito trabalhista (art. 2º da CLT).
No mesmo dia 22, contrapondo-se aos termos da MP 927, cerca de 5.000 entidades e personalidades ligadas ao mundo do trabalho firmaram o documento intitulado “37 propostas para enfrentarmos com responsabilidade o Coronavírus e suas consequências”, pelo qual se procurava demonstrar que para um eficaz enfrentamento dos problemas sociais e econômicos gerados pela pandemia nenhum direito trabalhista precisaria ser reduzido, aliás, muito pelo contrário. (https://www.change.org/p/governo-federal-37-propostas-para-enfrentarmos-com-responsabilidade-o-coronav%C3%ADrus-e-suas-consequ%C3%AAncias-769092a5-bdd0-4c46-bf36-116be41cea79?recruiter=1060888375&utm_source=share_petition&utm_medium=copylink&utm_campaign=share_petition&utm_term=share_petition)
O governo, no entanto, se manteve atento às reivindicações do setor empresarial e, no dia 1º de abril, editou a MP 936, instituindo a utilização do fundo público para custeio da redução de salários em até 70% e a suspensão de contratos de trabalho.
No dia 18 de abril de 2020, foi realizado o primeiro programa do Resenha Trabalhista com Valdete Souto Severo.
Em 27 de abril, trabalhadores e trabalhadoras foram flagrados ajoelhados em protestos de logistas pela reabertura do comércio no centro de Campina Grande-PB.
No dia 18 de maio, o mundo do trabalho de Campinas e região perdeu o Eliezer Mariano da Cunha, um de seus principais personagens.
No dia 2 de junho, morre, Recife-PE, Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, filho de Mirtes Renata Souza, empregada doméstica que teve que levar Miguel para o trabalho, pois a continuidade do seu trabalho foi exigida mesmo durante a pandemia com a creches fechadas.
No dia 1º de julho realizou-se um dos mais importantes movimentos sociais dos últimos anos, a greve dos entregadores.
Em 6 de julho, em Vitória-ES, foi homologado judicialmente o acordo em que o trabalhador/reclamante, condenado a pagar honorários advocatícios do patrono da parte contrária, não tendo como pagar a dívida, se comprometeu a prestar serviços gratuitamente, durante determinado período, em favor de instituições assistenciais indicadas pelo exequente.
Em 14 de julho, perdemos a querida Moema Baptista, advogada trabalhista no Rio de janeiro-RJ
Em 8 de agosto, com todos os desmandos e aprofundamento das formas precárias de trabalho, chegamos a 100 mil mortos.
No dia 17 de agosto tem início a greve dos empregados dos Correios.
Em 23 de agosto, o blog História Contemporânea do Trabalho completava 5 anos.
No dia 18 de novembro, perdemos Jorge Lima, advogado trabalhista em Salvador-BA.
Fato é que, em 2020, não fomos capazes de mudar nosso modo de ver o mundo, mesmo diante da gravidade da pandemia.
A fórmula básica para essa grande derrota foi a negação insistentemente da gravidade da situação, o que permitiu, inclusive, reproduzir fórmulas do período anterior, precarizantes do trabalho, que haviam demonstrado claramente o potencial devastador dos seus efeitos. Mas grande mídia, governo, setor empresarial e instituições judiciárias e jurídicas se aliaram no propósito da precarização do trabalho e essa aliança fortaleceu o governo na política abstencionista frente à COVID-19.
Aprofundamentos erros e aprimoramos o cinismo e a dissimulação.
Com isso, chegamos, em 26 de dezembro de 2020, a 191 mortos e a 4.000.000 a menos de trabalhadores com carteira assinada.
Mas não só. As políticas equivocadas reduziram a renda dos trabalhadores e a sua capacidade de consumo. Como o auxílio do governo serviu basicamente a grandes empresas, o que se verificou foi um enorme fechamento de pequenas empresas, sobretudo, bares e restaurantes.
E o pior de tudo é que chegamos ao final de 2020 sem qualquer plano efetivo para a promoção da vacinação horizontal e universal da população. Aliás, a vacina se tornou apenas uma questão de disputa pessoal entre personagens caricatos e desvinculados da realidade social.
No governo de São Paulo, a matriz continuou sendo conduzida pela cartilha neoliberal e uma das preocupações primordiais foi a privatização e o ataque aos servidores públicos.
A oportunidade de aprendizado perdida está associada, principalmente, á difusão midiática de que havia um futuro nos esperando no “pós-pandemia”, como se nada devesse ser obrigatoriamente mudado nas estruturas sociais e econômicas ou que tudo que fosse feito, mesmo equivocado, não surtiria qualquer efeito, pois, superada a pandemia, ou seja, no “pós-pandemia”, naturalmente tudo voltaria ao “normal”, sem avaliar que “normal” é esse, ou, no máximo, que neste futuro imaginado seriam necessárias apenas algumas mudanças pontuais relacionadas a hábitos cotidianos, para adaptação ao denominado “novo normal”.
Enquanto isso, sem enfrentarmos os problemas concretos, fugindo da realidade, distanciando da racionalidade e promovendo a fragilização das instituições e dos valores humanos, o ódio foi se espraiando e se naturalizando. O que se verifica no correr de 2020, igualmente, é o aumento da violência racial e do feminicídio.
É sobre isso e muito mais que vamos falar no Resenha Trabalhista deste domingo.
Então ficamos assim combinados.
Resenha Trabalhista XLVIII: Retrospectiva 2020
- Aldacy Rachid Coutinho (professora aposentada UFPR): Decretos governamentais;
- Grijalbo Fernandes Coutinho (juiz do trabalho): decisões do STF - medidas pandêmicas, correção monetária/juros de mora e outras;
- Hugo Cavalcanti Melo Filho (professor UFPE): normas trabalhistas de exceção na pandemia;
- Jorge Luiz Souto Maior: a cronologia dos fatos e o emprego;
- Mauro Menezes (advogado): as decisões STF;
- Patrícia Maeda (juíza do trabalho): as questões de raça e de gênero;
- Renata Dutra (professora UnB): julgamento da greve dos petroleiros de 2018;
- Rodrigo Carelli (professor UFRJ): o Judiciário, o trabalho em plataformas e a pandemia;
- Sayonara Grillo (professora UFRJ): greve, resistências sindicais e instituições em pandemia;
- Valdete Souto Severo (professora UFGRS): trabalho à distância ou audiências trabalhistas.
Domingo, 27.12.20 (hoje), às 19h
Transmissão pelos canais:
https://www.youtube.com/watch?v=I-qxAFWaGqI
https://www.facebook.com/JorgeLuisSoutoMaior/posts/222913876072060
Até lá!
Jorge Souto Maior