As últimas duas decisões proferidas no STF sobre questões que envolvem a “reforma” trabalhista foram bastante importantes, no direcionamento de preservação dos direitos constitucionais trabalhistas, explicitando que a Lei n. 13.467/17 não está acima da Constituição, dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ou mesmo dos princípios jurídicos ligados aos Direitos Fundamentais e Sociais, o que a todos que lidam com o Direito sempre foi óbvio, mas que a muitos, comprometidos com interesses econômicos e políticos particulares ligados à “reforma”, parecia mero discurso de rebeldia.
Lembra o Ministro que:
“A previsão de determinar o afastamento automático da mulher gestante do ambiente insalubre, enquanto durar a gestação, somente no caso de insalubridade em grau máximo, em princípio, contraria a jurisprudência da CORTE que tutela os direitos da empregada gestante e lactante, do nascituro e do recém-nascido lactente, em quaisquer situações de risco ou gravame à sua saúde e bem-estar.”
E traz muito bom argumento sobre a essencialidade dos Direitos Fundamentais, cuja eficácia não pode ser comprometida até mesmo por ato de seu titular, o que, em certa medida, reforça o princípio da irrenunciabilidade, que é base do Direito do Trabalho.
Como dito por Alexandre de Moraes:
“A proteção a maternidade e a integral proteção à criança são direitos irrenunciáveis e não podem ser afastados pelo desconhecimento, impossibilidade ou a própria negligência da gestante ou lactante em juntar um atestado médico, sob pena de prejudicá-la e prejudicar o recém-nascido.”
Na segunda decisão, proferida em 03/05/19, no âmbito da ARE 1121633, foi negada, por 6 votos a 5, que, por via de votação virtual, fosse conferida uma nova roupagem ao conteúdo do Tema 1046 de repercussão geral, que trata dos limites da negociação coletiva, que haviam sido fixados no julgamento do RE 590.415.
Segundo a interpretação proposta pelo relator, Ministro Gilmar Mendes, a validade do conteúdo de uma negociação coletiva não deveria estar submetida ao crivo da existência de uma contrapartida, tendo sido acompanhado pelos Ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Ricardo Lewandowisk e Alexandre de Moraes).
De fato, quando, em 30 de abril de 2015, no RE 590.415, o STF, nos termos do voto do relator, Ministro Roberto Barroso, cuidava-se da validade à quitação ampla fixada em cláusula de adesão ao PDV estabelecida em convenção coletiva, valorizando a “autonomia privada coletiva”, deixou-se claro que a razão fundamental para a existência do Direito do Trabalho, que é o reconhecimento da desigualdade entre o trabalhador e o empregador, mantinha-se vigente, justificando, inclusive, a intervenção do Estado, para impor uma “rigorosa limitação da autonomia da vontade” como “tônica no direito individual do trabalho”.
A decisão em questão preservou, expressamente, os princípios da proteção e da norma mais favorável.
Como dito no voto:
“II. LIMITAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE DO EMPREGADO EM RAZÃO DA ASSIMETRIA DE PODER ENTRE OS SUJEITOS DA RELAÇÃO INDIVIDUAL DE TRABALHO
8. O direito individual do trabalho tem na relação de trabalho, estabelecida entre o empregador e a pessoa física do empregado, o elemento básico a partir do qual constrói os institutos e regras de interpretação. Justamente porque se reconhece, no âmbito das relações individuais, a desigualdade econômica e de poder entre as partes, as normas que regem tais relações são voltadas à tutela do trabalhador. Entende-se que a situação de inferioridade do empregado compromete o livre exercício da autonomia individual da vontade e que, nesse contexto, regras de origem heterônoma – produzidas pelo Estado – desempenham um papel primordial de defesa da parte hipossuficiente. Também por isso a aplicação do direito rege-se pelo princípio da proteção, optando-se pela norma mais favorável ao trabalhador na interpretação e na solução de antinomias.
9. Essa lógica protetiva está presente na Constituição, que consagrou um grande número de dispositivos à garantia de direitos trabalhistas no âmbito das relações individuais.
Essa mesma lógica encontra-se presente no art. 477, §2º, da CLT e na Súmula 330 do TST, quando se determina que a quitação tem eficácia liberatória exclusivamente quanto às parcelas consignadas no recibo, independentemente de ter sido concedida em termos mais amplos.
10. Não se espera que o empregado, no momento da rescisão de seu contrato, tenha condições de avaliar se as parcelas e valores indicados no termo de rescisão correspondem efetivamente a todas as verbas a que faria jus. Considera-se que a condição de subordinação, a desinformação ou a necessidade podem levá-lo a agir em prejuízo próprio. Por isso, a quitação, no âmbito das relações individuais, produz efeitos limitados. Entretanto, tal assimetria entre empregador e empregados não se coloca – ao menos não com a mesma força – nas relações coletivas.” – grifou-se
Mesmo partindo de pressuposto histórico equivocado, o voto fixou que o fortalecimento conferido à negociação coletiva não representa uma carta branca para que os empregadores, utilizando seu poder econômico, submetam os sindicatos a uma submissão, ou mesmo que o faça o Estado mediante intervenções na atuação sindical, que não serão mais admitidas no atual estágio democrático.
O voto chega mesmo a preconizar a liberdade da atuação sindical, incluindo o legítimo exercício do direito de greve, tida como meio para a negociação, conforme preconizado na Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil:
“O novo modelo justrabalhista proposto pela Constituição acompanha a tendência mundial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva, retratada na Convenção n. 98/194910 e na Convenção n. 154/198111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), às quais o Brasil aderiu, e que preveem:
Convenção n. 98/1949: 'Art. 4º — Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o objetivo de regular, por meio de convenções, os termos e condições de emprego'.”
Assim, se por um lado, valorizou a negociação coletiva, por outro, reconheceu a necessidade de conferir meios adequados para que a democracia funcione também nas relações de trabalho, mediante os institutos da proteção contra a dispensa arbitrária, a estabilidade decenal, a função social da empresa, e o exercício do direito de greve sem intervenção estatal, tudo para garantir que estejam presentes os elementos fundamentais de validade dos negócios jurídicos, boa-fé e não abusividade.
Em um país acostumado com negociações coletivas fundadas em abuso do poder econômico, mediante ameaças de desemprego, refutando-se, pois, o pressuposto da boa-fé, também porque não se apresentam aos trabalhadores as devidas informações sobre a situação econômica da empresa ou do segmento econômico específico, os pressupostos estabelecidos no voto não deixaram de ser um avanço na seara negocial trabalhista.
A atuação coletiva dos trabalhadores é considerada, inclusive, como participação política, não comportando, pois, limitações procedimentais que impeçam o seu regular exercício.
Diz o voto:
“A Constituição de 1988 restabeleceu o Estado Democrático de Direito, afirmou como seus fundamentos a cidadania, a dignidade humana, o pluralismo político e reconheceu uma série de direitos sociais que se prestam a assegurar condições materiais para a participação do cidadão no debate público.”
A greve, especificamente, é apontada como forma de expressão do poder dos trabalhadores, que, ao ser exercida, proporciona a necessária simetria para que a negociação coletiva se perfaça regularmente:
“O empregador, ente coletivo provido de poder econômico, contrapõe-se à categoria dos empregados, ente também coletivo, representado pelo respectivo sindicato e munido de considerável poder de barganha, assegurado, exemplificativamente, pelas prerrogativas de atuação sindical, pelo direito de mobilização, pelo poder social de pressão e de greve.”
Adotou-se, inclusive, o posicionamento do Ministro do TST Maurício Godinho Delgado, no sentido de que:
“O segundo aspecto essencial a fundamentar o presente princípio [da equivalência dos contratantes coletivos] é a circunstância de contarem os dois seres contrapostos (até mesmo o ser coletivo obreiro) com instrumentos eficazes de atuação e pressão (e, portanto, negociação). Os instrumentos colocados à disposição do sujeito coletivo dos trabalhadores (garantias de emprego, prerrogativas de atuação sindical, possibilidade de mobilização e pressão sobre a sociedade civil e Estado, greve, etc.) reduziriam, no plano juscoletivo, a disparidade lancinante que separa o trabalhador, como indivíduo, do empresário. Isso possibilitaria ao Direito Coletivo conferir tratamento jurídico mais equilibrado às partes nele envolvidas. Nessa linha, perderia sentido no Direito Coletivo do Trabalho a acentuada diretriz protecionista e intervencionista que tanto caracteriza o Direito Individual do Trabalho”.[1] – grifou-se
Essas seriam, segundo o STF, portanto, as condições jurídicas e políticas necessárias para se conferir, concretamente, uma “maioridade cívica do trabalhador” e, assim, serem “tratados como cidadãos livres e iguais”.
Quanto ao conteúdo mesmo do instrumento normativo, que pode, ao ver do voto, prevalecer sobre dispositivo legal, inclusive para reduzir a garantia específica, não se chegou ao ponto de simplesmente legitimar a redução de direitos como resultado de uma correlação de forças, como a grande mídia, apressadamente quis fazer crer.
A validade dos pactos negociais será reconhecida “desde que não transacionem setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade absoluta”.
Embora o critério definidor de quais sejam as parcelas de indisponibilidade absoluta seja vago, afirmou-se que estão protegidos contra a negociação in pejus os direitos que correspondam a um “patamar civilizatório mínimo”, como a anotação da CTPS, o pagamento do salário mínimo, o repouso semanal remunerado, as normas de saúde e segurança do trabalho, dispositivos antidiscriminatórios, a liberdade de trabalho etc.”
A decisão do Supremo deixou claro que não se criou uma norma aberta, de prevalência do negociado sobre o legislado, como forma de instrumentalização de renúncia a direitos, conforme, aliás, equivocadamente, entendeu o Ministro Teori no RE 895.759 (1159), pois a validade da cláusula de quitação somente foi declarada na situação posta em julgamento porque se reconheceu estarem preenchidas certas condições, a saber:
a) “a reclamante não abriu mão de parcelas indisponíveis, que constituíssem “patamar civilizatório mínimo” do trabalhador;
b) “não se sujeitou a condições aviltantes de trabalho (ao contrário, encerrou a relação de trabalho)”;
c) “não atentou contra a saúde ou a segurança no trabalho”;
d) “não abriu mão de ter a sua CNTP assinada”;
e) “apenas transacionou eventuais direitos de caráter patrimonial ainda pendentes, que justamente por serem “eventuais” eram incertos, configurando res dubia, e optou por receber, em seu lugar, de forma certa e imediata, a importância correspondente a 78 (setenta e oito) vezes o valor da maior remuneração que percebeu no Banco”.
f) “Teve garantida, ainda, a manutenção do plano de saúde pelo prazo de 1 (um) ano, a contar do seu desligamento”.
E a decisão foi além, pois, em certa medida, legitimou a atuação coletiva dos trabalhadores, desde que atendidos os pressupostos democráticos, para além da estrutura sindical, corroborando, inclusive, prática recente integrada ao mundo do trabalho, da “greve por fora”:
“É importante notar, contudo, que, no caso em exame, a participação direta dos trabalhadores no processo de negociação do PDI e do acordo coletivo que o aprovou demonstra a efetiva mobilização de toda a categoria em torno do assunto. Lembre-se de que, diante das resistências do sindicato em convocar assembleia para deliberar sobre o assunto, os trabalhadores convocaram assembleia própria, pela qual decidiram aprová-lo. Na sequência, pressionaram o sindicato, foram às ruas, manifestaram-se às portas do TRT, até que a assembleia sindical fosse convocada. Uma vez convocada, compareceram a ela e convalidaram a aprovação já deliberada pelos trabalhadores.
Não há como afirmar, portanto, que a aprovação do acordo coletivo, nos seus exatos termos, não era a verdadeira vontade da categoria. Ao contrário, tal aprovação se deu a despeito da resistência do próprio sindicato. Assim, mesmo que o regramento acerca da liberdade sindical demande aperfeiçoamento em tese, não me parece que esse fato comprometa a validade do acordo coletivo que aprovou o PDI no presente caso.”
Em suma, quando preconizou a necessidade do “amadurecimento da classe trabalhadora” para efeito de reconhecer a validade da negociação coletiva, o STF (no RE 590.415) acabou tratando, por efeito inexorável, do imperativo do “amadurecimento da classe empresarial” para a mesma finalidade.
Assim, a classe empresarial não poderá mais contar com decisões judiciais que lhe disponibilizam força policial para coibir greves, como se tem verificado, por exemplo, nos interditos proibitórios ou nas determinações para a retomada do trabalho, sob o falso argumento de se estar garantindo o direito de ir e vir de quem quer trabalhar ou os direitos dos consumidores.
Mesmo partindo de dado histórico equivocado, o voto proferido nesses autos afirmou que o Estado não pode realizar intervenções no sindicato, porque são incompatíveis com o atual estágio democrático, e defendeu a liberdade da atuação sindical, incluindo o exercício do direito de greve, tida como meio legítimo para conferir aos trabalhadores um “poder social de pressão”.
Com base no princípio da boa-fé nos negócios jurídicos, valorado no voto, é possível dizer que os empregadores não mais poderão se valer de abuso econômico e de ameaças de desemprego como “argumento” para negociar, assim como não poderão se negar a abrir aos trabalhadores os seus balanços econômicos (incluindo eventual “caixa 2”), caso aleguem estar passando por dificuldade econômica, demonstrando, inclusive, que esta dificuldade não tenha sido induzida por má administração ou desvio ilegal de patrimônio para outras empresas, sócios ou contas no exterior.
Ou seja, passam a ser condições de validade das negociações coletivas as mesmas condições impostas a todos os negócios jurídicos, conforme previsão dos artigos 113[2], 114[3], 156[4], 157[5] e 166, VI[6], do Código Civil, que estão traduzidos, de forma mais direta, no artigo 9º da CLT: “Art. 9º - Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.”
Quando valorizou o negociado, o STF (no mesmo processo: RE 590.415), por conseguinte, firmou posição no sentido de que a simples manutenção do emprego não é suficiente para justificar uma condição de trabalho diferente daquela prevista em lei, impondo-se a concessão de vantagens compensatórias específicas e deixou fora de qualquer possibilidade negocial os direitos “indisponíveis”, que constituíssem “patamar civilizatório mínimo” do trabalhador, além de definir que não se consideram como legítimas quaisquer cláusulas que gerem “condições aviltantes de trabalho”, atentem “contra a saúde ou a segurança no trabalho”, ou promovam fraude ao reconhecimento da relação de emprego.
Nos termos do entendimento do STF, portanto, não se pode acolher como válida norma coletiva que meramente reduza direitos trabalhistas ou que piore as condições de trabalho, sem qualquer tipo de compensação, até porque o “caput” do art. 7º da Constituição Federal deixa claro que os direitos e institutos trabalhistas, dentre eles a negociação coletiva, são instrumentos de “melhoria da condição social dos trabalhadores”.
Este é o entendimento que, por via de votação virtual, se pretendia alterar, mas cuja iniciativa foi rejeitada.
Verdade que se reconheceu o interesse da repercussão geral do tema e o debate a respeito será conduzido a plenário.
De todo modo, considerando a posição assumida em torno do pressuposto de se negar validade a atos jurídicos que representam renúncia a direitos fundamentais, a possibilidade de, em sessão plenária, alterar a tese fixada no Tema 1046 não é muito provável, até porque a necessidade de preservação dos preceitos constitucionais talvez não tenha se apresentado a tantos, com tanta evidência, como agora.
São Paulo, 05 de maio de 2019.
[1]. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 10ª ed. São Paulo: LTr, 2011, pp. 1250-1251.
[2]. “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” Por este artigo a boa-fé foi elevada a técnica de interpretação, no que tange às regras fixadas em um negócio jurídico, impedindo, assim, que a situação de desequilíbrio das partes possa significar a formação de negócios jurídicos que atendam apenas ao interesse de uma das partes, o que, evidentemente, contraria o princípio da boa fé.”
[3]. “Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.”
[4]. “Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias.”
[5]. “Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.”
[6]. “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (....)VI- tiver por objetivo fraudar lei imperativa;”