Jorge Luiz Souto Maior
“Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína”
(Fora da Ordem – Caetano Veloso)
Em 1971, Chico Buarque de Holanda compôs uma de suas mais belas canções, Construção.
Em 1973, falando sobre a letra da música, em uma entrevista para uma Revista, Chico disse que “Não passava de experiência formal, jogo de tijolos. Não tinha nada a ver com o problema dos operários - evidente, aliás, sempre que você abre a janela”.
A entrevista de Chico é quase uma desconstrução da mensagem que se integrou ao imaginário de todos como sendo um hino contra o descaso com a questão social e um desagravo à conivência de todos com a situação dos trabalhadores.
Talvez Chico não quisesse se entregar em uma bandeja e, então, disfarçou. A considerar o engajamento político e social do autor, dificilmente terá sido mero jogo de palavras. E ainda que tivesse sido, a vontade do autor é desvinculada de sua obra. Esta vale pelo sentido que a ela for dado, no ato de interpretação e de integração ao conjunto do conhecimento humano. Assim, Construção sempre será um hino contra a alienação.
Mas por que tratar desse assunto no dia em que a Constituição da República Federativa do Brasil completa 30 anos? Para explicitar que se no campo artístico a dinâmica da comunicação humana pode até transformar uma obra de contestação em mero jogo de palavras, no que se refere às normas jurídicas, notadamente, aqueles que cuidam dos Direitos Humanos, a atividade de interpretar não pode ser utilizada para desfazer um direito, desconsiderando o dado histórico de sua consagração e transformando em mero jogo de palavras sem conteúdo obrigacional.
É exatamente por isso, aliás, que o último artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (como se pode verificar, também, em vários outros Documentos Internacionais ligados ao tema) proíbe, expressamente, que se chegue à ineficácia das normas por meio da interpretação. Diz o texto em questão:
“Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.” (art. 30)
No entanto, é exatamente essa atuação jurídica destrutiva a que tem prevalecido. Ao longo de 30 (trinta) anos de vigência (e com maior intensidade nos dois últimos), os dizeres da Constituição brasileira têm sido lidos como se fossem letra de música cujo propósito único fora o de colocar palavras sobrepostas, atendendo a uma pretensão de versificação, e, assim, gerar, no máximo, alguma emoção.
Mais recentemente, não foi apenas um desprezo pelo cumprimento dos compromissos assumidos no pacto de 1988 o que se verificou. O que se tem tentado implementar, de forma direta e ostensiva, pela ação irresponsável, ideológica e egoísta dos detentores esporádicos do poder e seus associados, é uma desconstrução de todos os resquícios do projeto de Estado Social Democrático de Direito (ou Estado Democrático de Direito Social) que se integraram à Constituição da República Federativa do Brasil.
O efeito disso, no entanto, não é apenas uma mudança métrica. O que se provoca é um encaminhamento decisivo e convicto ao caos social, ao desmantelamento econômico e ao desprezo dos compromissos civilizatórios, com estímulo à extração dos piores sentimentos a que os seres humanos podem chegar, notadamente, o egoísmo e o ódio.
De forma emergencial, o desafio que nos é imposto é o de reconstruir o caráter da Constituição Federal, para que sirva como efetivo instrumento de preservação dos Direitos Humanos, da imposição de limites ao poder econômico, da valorização social do trabalho e da livre iniciativa, do respeito aos direitos civis e políticos e, mais importante, da redução das desigualdades sociais.
Cumpre-nos, enfim, levar muito a sério o desafio de constituir, em concreto, os preceitos constitucionais fundamentais, para que uma versão piorada de Construção, que despreza rima, métrica e ritmo, não reflita, de forma trágica, a mais pura realidade do destino dado à Constituição e a milhões de pessoas:
Surgiu daquela vez como se fosse a última
Beijou sua edição como se fosse a última
E cada artigo seu como se fosse o único
E enfrentou as injustiças com seu passo tímido
Foi à população como se fosse máquina
Ergueu na ilusão quatro paredes sólidas
Capítulo por Capítulo num desenho mágico
Seus textos embotados de conquista e lágrima
Parou pra recompor como se fosse sábado
Recebeu celebrações como se fosse um príncipe
Sofreu e sobreviveu como se fosse um náufrago
Insistiu e regulou como se ouvisse música
“E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”
Surgiu daquela vez como se fosse a última
Beijou sua edição como se fosse a única
E cada artigo como se fosse o pródigo
E enfrentou as injustiças com seu passo bêbado
Foi à população como se fosse sólida
Ergueu na empolgação quatro paredes mágicas
Capítulo por Capítulo num desenho lógico
Seus textos embotados de conflito e tráfego
Parou pra recompor como se fosse um príncipe
Recebeu celebrações como se fosse o máximo
Sofreu e sobreviveu como se fosse máquina
Insistiu e recomendou como se fosse ao próximo
“E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público”
Surgiu daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua edição como se fosse lógico
Ergueu na animação quadro paredes flácidas
Parou pra recompor como se fosse um pássaro
“E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado”