No dia 08 de janeiro deste ano, movimento organizado por grupos golpistas, com mandantes e financiadores ainda sendo identificados, violentou fisicamente as instituições brasileiras, promovendo um autêntico atentado contra a democracia.
A sociedade civil se mobilizou, fortemente e de modo coeso, em defesa da ordem democrática e das instituições, sobretudo, do STF.
Mas o ataque físico às instituições não é a única forma de abalar a ordem democrática.
O desrespeito aos princípios e preceitos constitucionais, alinhados com a rede de proteção dos Direitos Humanos e Fundamentais em âmbito internacional, também atenta contra a democracia e malfere as próprias instituições.
E o mais grave é quando isto se dá exatamente por aqueles e aquelas cuja função pública é a de fazer valer estes princípios e preceitos.
Compete, pois, compreender por que, afinal, os direitos trabalhistas foram integrados à Constituição e qual é o papel que se reserva à Corte Constitucional na avaliação desses direitos.
Como dito em outro texto:
“...quando se deparam com direitos trabalhistas na Constituição Federal de 1988 há de se compreender que o fato está relacionado a compromissos histórica e internacionalmente firmados.
E vale reforçar que a integração desses direitos à Constituição está diretamente ligada ao objetivo de se conferir eficácia plena aos valores humanos que expressam, vez que o desprezo com o tema, como reconhecido nas Declarações e Tratados internacionais, pôs em risco a sobrevivência da humanidade.
Atendidos todos esses parâmetros, cumpre ao STF, como guardião da Constituição e atuando com competência residual, intervir na jurisdição trabalhista apenas da hipótese concreta de uma decisão judicial ou do advento de uma lei ordinária que afronte o projeto constitucional baseado na dignidade humana (art. 1º, III), no ‘primado do trabalho’ (art. 193), nos ‘ditames da justiça social’ (art. 170) e na melhoria da condição social dos trabalhadores (art. 7º).
Cabe ao STF garantir a eficácia dos compromissos constitucionais e a essencialidade dos direitos trabalhistas e não usar o seu poder para se transmudar em uma quarta instância trabalhista e, muito menos, por via da interpretação e até mesmo da amplitude jurisdicional conferida às ações e recursos de sua competência, reescrever a Constituição a partir de postulados valorativos inversos daqueles nela consagrados, promovendo, com isso, uma redução da proteção jurídica trabalhista.
Uma atuação neste sentido desconsidera a própria razão histórica pela qual os direitos trabalhistas foram alçados às constituições.” (SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Dispensa coletiva não é um direito. Campinas, Lacier Editora. 2021, p. 26)
No entanto, de forma concreta, o STF, na esfera trabalhista, tem recorrentemente atuado no sentido da destruição de direitos fundamentais constitucionais, sobretudo nas questões mais relevantes, sempre colocando em primeiro plano uma argumentação pretensamente econômica.
Citem-se, como exemplos, os posicionamentos a respeito de: prescrição do FGTS; proteção contra a dispensa arbitrária; dispensas coletivas; direito de greve, notadamente no serviço público; negociado sobre o legislado; juros e correção monetária de créditos trabalhistas; fontes de custeio sindical; validação da terceirização no serviço público e a não responsabilização dos entes públicos pelos créditos trabalhistas de trabalhadores(as) terceirizados(as); validação da privatização do serviço público por meio das OSs; terceirização sem limites etc.
E podem ser incluídas neste contexto as omissões, ou seja, os casos não apreciados, como o da tarifação do dano moral e o da denúncia da Convenção 158 da OIT (ADI 1.625, em curso desde 1997).
Destacam-se, também, as posições firmadas no sentido da criação de obstáculos ao acesso à justiça e que servem, também, para esvaziar a atuação da Justiça do Trabalho, como a condenação do reclamante ao pagamento de honorários advocatícios, mesmo quando beneficiário da justiça gratuita e a exigência de comum acordo para propositura de dissídio coletivo.
Todas essas decisões (dentre outras não citadas, no mesmo sentido) sedimentaram o caminho para se chegar ao ponto atual em que os objetivos reais estão sendo, definitivamente, alcançados: eliminar por completo a proteção jurídica trabalhista e extinguir a Justiça do Trabalho, mesmo que a Constituição Federal, como dito, preserve esses direitos como fundamentais e institua, expressamente, a Justiça do Trabalho, como órgão competente para julgar “as ações oriundas da relação de trabalho” (inciso I, art. 114).
Fazendo referência a supostos paradigmas – ADC 48, ADPF 324, RE 958.252 (Tema 725-RG), ADI 5835 MC e RE 688.223 (Tema 590-RG) –, a pá de cal veio nesta semana com a publicação da decisão monocrática proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes, na Reclamação n. 59.795, pela qual uma empresa ligada ao ramo de exploração do trabalho por aplicativos pretendia, liminarmente, que fossem suspensos os trâmites da reclamação trabalhista nº 0010140-79.2022.5.03.0110, obstando, inclusive, atos de execução, para que, ao final, no mérito, se visse cassada a decisão atacada, com a determinação “para que se profira nova decisão”.
No entanto, além de se basear, como dito, em falsos paradigmas e, assim, acolher a Reclamação com base no pressuposto da preservação da competência do STF e na garantia da autoridade de suas decisões, o julgamento monocrático proferido foi além da própria pretensão formulada na Reclamação e, de ofício, declarou a incompetência da Justiça do Trabalho, para apreciar o mérito da reclamação trabalhista, sendo que, para tanto, apoiou-se em precedente fixado não pelo STF e sim pelo STJ, no Conflito de Competência 164.544/MG.
São falsos paradigmas, porque, ainda que de modo juridicamente equivocado, o que se disse em tais decisões é que são constitucionais as leis que estabelecem formas de prestação de serviços não atreladas à relação de emprego e que autorizaram a terceirização de qualquer atividade da empresa, inclusive a atividade-fim.
Essas decisões não declararam a inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da CLT, que, portanto, continuam vigentes e definindo, a partir do princípio da primazia da realidade, quando há relação de emprego em determinada relação de trabalho.
Curiosamente, o próprio Ministro Alexandre de Moraes, ao acompanhar a maioria firmada no STF, para efeito do Tema 725 (RE 958.252), expressamente indicou que a chancela da terceirização de forma alguma poderia transfigurar a situação em “marchandage”, enunciando que a fraude não estaria legitimada “por meio de contrato de prestação serviços” e que nada impediria “a efetiva fiscalização e responsabilização, pois o Direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos”.
Cumpre perceber, ademais, que os artigos 2o e 3o da CLT qualificam juridicamente a prestação de serviços pessoais do trabalhador, realizada de forma habitual, subordinada e remunerada, enquanto que a Lei 11.442/07 não trata de relações pessoais de prestação de serviço. Refere-se, isto sim, a relações comerciais de transporte, que pode ser realizado também por um Transportador Autônomo de Cargas - TAC. O TAC não coloca o seu serviço pessoal à disposição do contratante e sim o veículo, mediante um valor certo.
Vide, a propósito, o que diz o § 1o do art. 4o da referida lei:
"Denomina-se TAC-agregado aquele que coloca veículo de sua propriedade ou de sua posse, a ser dirigido por ele próprio ou por preposto seu, a serviço do contratante, com exclusividade, mediante remuneração certa."
Verdade que a lei chega a mencionar relações pessoais de serviço, mas a hipótese, tratada no § 2o do mesmo artigo, diz respeito, exclusivamente, ao trabalho prestado de forma eventual, o que não colide com os artigos 2o e 3o da CLT:
"§ 2o Denomina-se TAC-independente aquele que presta os serviços de transporte de carga de que trata esta Lei em caráter eventual e sem exclusividade, mediante frete ajustado a cada viagem."
Como se vê, para aplicação da Lei n. 11.442/07, ou se está diante de um trabalho eventual ou se está falando de um autêntico contrato de locação de veículo de transporte, sem qualquer tipo de ingerência na forma de sua execução.
Além disso, na terceirização, também referida pela mais recente decisão proferida no âmbito do STF, não deixa de haver relação de emprego entre o trabalhador e a empresa que presta serviços a terceiros e, portanto, não se encaixa no tema em discussão, embora a uberização, muitas vezes, seja acompanhada de “terceirização”, porque, para certos segmentos empresariais, inclusive ligados à “Inteligência Artificial”, que querem criar uma realidade paralela, precarização nunca é o bastante. Não à toa o Brasil atingiu, em 2023, a marca de 1,05 milhão de pessoas em situação de escravidão contemporânea, conforme “estimativa do Índice de Escravidão Global 2023, divulgado nesta quarta (24), em Londres, pela Walk Free, uma organização internacional de direitos humanos especialista em produção de dados sobre esse crime” (https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2023/05/24/brasil-tem-1-milhao-de-escravizados-e-e-o-11-em-ranking-mundial-diz-ong.htm?cmpid=copiaecola).
E, em vez do STF mirar o combate à escravidão e buscar efetivar direitos fundamentais dos trabalhadores e das trabalhadoras, está, em todas essas decisões, de certo modo, legitimando fórmulas de exploração sem limites do trabalho, a partir de postulados econômicos e refratários à Constituição Federal.
Concretamente, a situação posta a exame não comportava uma atuação monocrática do STF, porque, afinal, aplicar os artigos 2º e 3º da CLT não desafia nenhuma decisão do STF, a não ser que o STF resolva dizer de vez que a relação de emprego, apesar de expressamente referida no inciso I, do art. 7º da CF, foi “expungida” da ordem jurídica.
Dizer, no caso concreto, se era cabível a aplicação dos artigos 2º e 3º da CLT ou os dispositivos da Lei n. 11.442/07 envolveria, pois, um exame fático e a isto, por evidente, não se presta a Corte Constitucional, que não é instância recursal na seara trabalhista.
O interessante é que na decisão em questão, o seu prolator chega a perceber a necessidade de adentrar a análise fática, para atrair a aplicação da Lei n. 11.442/07 e afastar a relação de emprego, mas sabendo da limitação, concluindo apenas dizendo que “a relação estabelecida entre o motorista de aplicativo e a plataforma reclamante mais se assemelha com a situação prevista na Lei 11.442/2007, do transportador autônomo, sendo aquele proprietário de vínculo próprio e que tem relação de natureza comercial” (grifou-se).
Então, sobrepõe um argumento de verossimilhança, extraído de uma percepção pessoal e não de máximas de experiência, a toda análise fática feita nos autos, realizada dentro dos parâmetros constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do duplo grau de jurisdição.
Atua, na verdade, como instância recursal e, não bastando, ainda vai além da pretensão formulada, para declarar a Justiça do Trabalho incompetente para apreciar a matéria, algo que nem mesmo a empresa-reclamante aventou, sobretudo por conta da nitidez expressa no art. 114, I, da CF.
E, para promover, em sede de Reclamação Constitucional, este deslocamento de ofício da competência, a decisão traz como precedente um entendimento do STJ, manifestado em Conflito de Competência (CC 164.544/MG). Ou seja, a Reclamação estaria sendo usada para garantir a autoridade de decisão do STJ e não do STF, sendo certo que a Corte Trabalhista, o TST, também Corte Superior, tem entendimento em sentido contrário.
Mas o mais grave e o que torna a situação ainda mais preocupante é que no referido julgamento, proferido no STJ, o reconhecimento do vínculo empregatício não era objeto da demanda. O que se buscava era uma reparação por danos materiais e morais, formulada por motorista de aplicativo, em razão de ter tido desligada a sua conta UBER, pretendendo, também, sua reativação para voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços. Como explícito no julgamento: "Os fundamentos de fato e de direito da causa não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista".
Além disso, na questão específica da competência, quando a matéria é o reconhecimento da relação de emprego, a posição fixada pelo STJ vai em sentido oposto.
Com efeito, em decisão proferida, no dia 24/04/23, no Conflito de Competência 194.079, envolvendo questão pertinente à Lei n. 11.442/17 - TAC, a Ministra Isabel Gallotti, considerando o teor da a causa de pedir e o pedido formulados, que visavam o reconhecimento da relação de emprego, definiu que a competência é da Justiça do Trabalho.
A decisão monocrátia proferida na RCL 59.795 (ora em comento), por conseguinte, não tinha base jurídica para se sustentar, já que a autoridade de nenhuma decisão do STF estava ameaçada, jogou por terra todas as garantias processuais constitucionalmente estabelecidas e não possuía precedentes a lhe guiar. O que se fez foi apenas tentar fazer prevalecer uma compreensão pessoal desvinculada dos fatos produzidos nos autos e apoiada em argumentos jurídicos desviados da questão objetivamente posta.
E não se pode deixar de considerar que a decisão foi prolatada no contexto político da discussão em torno da regulação do trabalho por plataformas e o quanto poderá ser utilizada neste processo para impor uma fórmula regulatória que despreza a relevância da relação de emprego e dos direitos trabalhistas.
Por fim, é importante consignar que se levados a efeito os pressupostos estabelecidos na decisão em questão, deixariam, concretamente, de existir relações de emprego e, por consequência, um órgão jurisdicional para deliberar a respeito, bastando, para tanto, que o “empregador” formule com o trabalhador um contrato com cláusula de negativa do vínculo empregatício.
Assim, toda a proteção jurídica constitucional e internacional do trabalho seria eliminada, ampliando-se consideravelmente a precarização, a pauperização, a insegurança e o sofrimento físico e mental da classe trabalhadora.
E é muito sério também que toda essa agressão aos princípios e preceitos constitucionalmente assegurados aos cidadãos e cidadãs (trabalhadores e trabalhadoras) esteja sendo concretizada com o apoio expresso ou o silêncio denunciador dos arautos da defesa da democracia, incluindo a grande imprensa (sempre a postos para defender os interesses empresariais mais imediatos) não se tendo em conta, no entanto, que a supressão das garantias constitucionais fixadas para impor limites e estabelecer propósitos aos agentes do poder público é o passo decisivo para atrair o autoritarismo e os regimes ditatoriais.
São Paulo, 24 de maio de 2023.