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BLOG

Quantas mãos “empurraram” Miguel?

5/6/2020

5 Comments

 
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Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press
               
                                                                                                                              Patrícia Maeda
                                                                                                                 Jorge Luiz Souto Maior
 

​Miguel Otávio Santana da Silva tinha cinco anos. Sua mãe, Mirtes Renata Souza, é empregada doméstica e teve que levar Miguel para o trabalho, pois a continuidade do seu trabalho foi exigida mesmo durante a pandemia e nesse período as creches estão fechadas. No trabalho, saiu para levar o cachorro dos patrões, Sari Corte Real e Sérgio Hacker (prefeito de Tamandaré/PE pelo PSB), para passear. Miguel ficou aos cuidados da patroa, no apartamento do quinto andar de um prédio de luxo no Recife/PE, integrado ao conjunto conhecido como “Torres Gêmeas”. E enquanto a mãe cuidava das necessidades fisiológicas do cachorro, Miguel caiu do nono andar do edifício e morreu.
 
Não nos cabe, no âmbito desse texto, descer às minúcias dos fatos, examinar condutas, avaliar a culpabilidade e fixar penas. Não que isso não seja importante, muito pelo contrário. É preciso que isso seja feito, para a devida punição de todos os culpados, pois mortes como a de Miguel não podem, nunca mais, ficar impunes. Vidas negras importam! E a impunidade nos crimes cometidos contra a integridade dos cidadãos negros e das cidadãs negras, inclusive pelo próprio Estado, constitui fator decisivo para a negação desse reconhecimento essencial e obrigatório.
 
Nosso propósito é ir além e propor reflexões sobre o ocorrido de modo a visualizar as várias determinantes que se apresentam no fato e as inúmeras responsabilidades históricas, de personagens múltiplos, pelo ocorrido. A necessidade de se chegar à imputação da culpa e a punição dos culpados diretos não pode servir para gerar uma falsa sensação de justiça ampliada apagando e, com isso, preservando todas as condicionantes sociais, culturais, econômicas, políticas e jurídicas que estão refletidos na situação e mantendo impunes tantos outros “culpados”.
Comecemos, pois, falando sobre a igualdade de direitos para as empregadas domésticas.
 
Até hoje, 2020, não fomos capazes de dizer, com todas as letras e com consequência prática, que as empregadas domésticas (que são, de fato, na sua totalidade, mulheres e, na grande maioria, mulheres negras) possuem direitos iguais aos de todos os demais empregados e empregadas. Não fizeram isso os constituintes de 1987 e, desde sempre, os congressistas, os governantes, os juristas e os magistrados, que, na questão, se posicionam como autênticos empregadores de empregadas domésticas para a defesa de seus interesses diretos, negando subjetividade jurídica plena a quem lhes presta um serviço, serviço este, aliás, que só, agora, de forma um tanto quanto cínica, se lhes apresenta como essencial.
 
Os argumentos são múltiplos e fugidios e acabaram sendo reforçados quando, na esteira da edição da Convenção 189 da OIT, de 15/11/11, a questão da elevação dos direitos das empregadas domésticas foi posta em pauta. A resistência organizada de grande parte da sociedade se fez presente e foi intensamente reproduzida na grande mídia, que insistia em mostrar o sofrimento que os empregadores e as empregadoras domésticas passariam a ter para garantir todos aqueles direitos, os quais, ademais, como sempre se disse, eram injustificados, vez que naquele tipo de relação não se formava uma relação de trabalho, e sim uma relação familiar. “A empregada doméstica é membro da família”, argumentavam.
 
Mesmo assim, em 2/4/13, foi editada a Emenda Constitucional n. 72, que estabeleceu, ainda que meramente formal, essa igualdade. Os argumentos contrários à elevação de direitos (cabendo lembrar que mesmo os parcos direitos existentes nunca foram efetivamente cumpridos) se apresentaram de modo ainda mais forte e articulado e o resultado foi que, prevalecendo a lógica escravagista, em 2015, uma Lei Complementar (n. 150), publicada em 2 de junho (exatamente no dia da morte de Miguel), veio para se sobrepor à Emenda Constitucional e à Convenção 189 da OIT, negando essa igualdade e isso se fez diante de uma aceitação jurídica, social e política generalizada.
 
A precariedade jurídica da relação de emprego doméstico, a negação da organização sindical da categoria das empregadas domésticas (com possibilidade negocial concreta), o afastamento dos órgãos de fiscalização do Estado quanto ao cumprimento dos direitos trabalhistas dessas profissionais e a consequente consagração (e até o aumento) da formação de uma relação de poder e submissão constituíram as conformações sociais e jurídicas que, postas em prática, impediram Mirtes de se recusar a ir trabalhar em tempo de pandemia e ainda ter que levar seu filho Miguel para o trabalho.
 
Essas são algumas das realidades jurídicas refletidas no caso e que, portanto, atraem, no mínimo, a responsabilidade de todos aqueles que, historicamente, “lutaram”, em ação consciente e organizada (não tendo sido, pois, “mera omissão”), para negar às empregadas domésticas uma condição mínima de cidadania nas relações de trabalho.
 
Essa imobilidade social e até mesmo a intensificação da exploração do trabalho operada nos últimos anos repercutem decisivamente na vida de tantas crianças como Miguel. A precariedade da vida também é marca da infância das crianças negras, vedando-lhe qualquer expectativa de futuro. E, para além das condições materiais que se apresentam nas estatísticas (acesso à saúde e à educação, moradia, saneamento básico), fato é que a criança e os(as) adolescentes negros(as) não têm as suas necessidades e os seus interesses assegurados pela sociedade e pelo Estado brasileiro, mesmo que, formalmente, a Constituição Federal, que também condena toda forma de preconceito e discriminação (art. 3º, IV), tenha prometido garantir a todos e todas, indistintamente, “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
 
A Constituição Federal, no plano da assistência social, também promete proteger a família (art. 203, CF), dada a relevância social que se lhe atribui. Mas quando se trata dos excluído, de modo concreto, até mesmo a entidade familiar lhes é negada.
 
Desenvolvemos uma naturalizada discriminação da criança e do adolescente negros quando, por exemplo, a despeito do direito à proteção integral, lhes são “permitidos” a título gratuito pequenos trabalhos, sob a escusa de se estar promovendo uma ajuda e ancorado no argumento de que “é melhor estar trabalhando do que roubando”.
 
E assim, ponto a ponto, dia após dia, durante anos e décadas, foram sendo eliminadas as possibilidades integração, de preparação, de lazer e de estudos a milhões de crianças iguais a Miguel, que, quando não integradas a uma situação circunstancial de visibilidade social, carregam o peso de estereótipos (“trombadinha”, “rebelde”, “incapaz”) e, por isso, não são vistos como pessoas em desenvolvimento, que merecem prioridade e proteção, como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
 
Por não se ter feito valer a Constituição Federal na sua plenitude e não se terem aplicado todas as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente muitas mãos deixaram suas marcas na morte de Miguel (assim como nas de Ágatha Félix, João Pedro Matos Pinto e de tantas outras crianças e adolescentes negros e negras).
 
E todas essas responsabilidades precisam ser apuradas, para que possamos impedir que tragédias como essas continuem frequentando o cotidiano da subvida de milhões de pessoas no Brasil, submetidas ao persistente racismo estrutural, mesmo que a Constituição declare caracterizar crime inafiançável e imprescritível a prática do racismo, sujeitando o infrator à pena de reclusão (art. 5º, XLII), e isso, sobretudo, pela tática jurídica de remeter o fato da agressão de natureza individual ao tipo penal de injúria racial (art. 140, § 3º, do Código Penal), que possui penas que as previstas ao racismo, conforme disposto na Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989.
 
Pensemos, na sequência, sobre os demais aspectos culturais (que não deixam de ser também jurídicos, políticos, econômicos e sociais) presentes no caso.
 
Neste aspecto, o primeiro impulso é o de se perguntar “quem deixaria uma criança de cinco anos sozinha no interior de um elevador?”
 
Se pensarmos, como estamos propondo, que a questão não se trata apenas de falta de humanidade dessa "patroa" especificamente, precisamos ampliar o horizonte de análise da tragédia, vista, inclusive, como retrato de uma tragédia mais ampla e mais renitente.
 
 
Contexto da tragédia
 
O Estado de Pernambuco tem um dos maiores números de casos de infecção e de óbitos pela COVID-19 e teve instituída quarentena (“lockdown”) entre 16 e 31 de maio, que foi relativizada para que empregadas domésticas e cuidadoras continuassem trabalhando em residências cujos empregadores exercessem atividades essenciais ou integrassem grupo de risco. 
 
A principal medida preconizada pela Organização Mundial da Saúde para a contenção da pandemia da COVID-19 é o isolamento social. Isolamento social é, portanto, uma medida de saúde pública e não deveria ser luxo de classe, mas, na prática, só é viável se houver a possibilidade de trabalho remoto improvisado ou a garantia de renda para os trabalhadores ficarem em casa. Ironicamente, na sociedade que proclama a Revolução 4.0, as grandes medidas de contenção da pandemia são ficar em casa e lavar as mãos. Nada muito tecnológico, mas nem por isso de fácil concretização. E é no cotidiano que as desigualdades sociais saltam aos olhos. Grande parte da população é desprovida de empregos formais, vivendo de trabalhos precários e intermitentes, sem os quais o grande risco passa a ser o de morrer de fome. Como fazer o isolamento social sem garantia de renda? O déficit de moradia torna o isolamento social impossível para outra (ou a mesma) parcela da população, que também não tem acesso a água e saneamento básico. Como lavar as mãos sem água limpa corrente?
 
É bem verdade que a pandemia evidencia a centralidade da reprodução social para a manutenção da vida, sobretudo porque, obrigados a (ou privilegiados por) ficar em casa, uma parcela da sociedade começa a enxergar que não é possível viver sem a preparação dos alimentos, a limpeza da casa, a lavagem das roupas e o cuidado de crianças, idosos e enfermos. Se o trabalho reprodutivo é essencial, não havendo a possibilidade de manter a vida sem a sua execução, fato é que, em geral, ele pode ser assumido pelos residentes da casa para se proporcionar o direito ao isolamento social às trabalhadoras domésticas[i], que também têm suas necessidades pautadas pela situação atual (creches e escolas fechadas, suspensão repentina da rede de apoio pelo isolamento etc.). 

​A morte de Miguel se deu no dia em que se “comemoraria” os cinco anos da Lei Complementar n. 150/2015, que regula o trabalho doméstico, mas mantém a desigualdade jurídica. Desde a promulgação da CLT, em 1943, as trabalhadoras domésticas lutam para superar a invisibilidade social de seu trabalho, marcado pela interseccionalidade de opressões de classe, gênero e raça, buscando o reconhecimento da nunca alcançada igualdade de direitos com outras categorias profissionais. 

Em meio à grave crise sanitária, o trabalho doméstico e de cuidado remunerado saíram da condição de invisíveis para serem classificados como atividade essencial em alguns Estados, como Pernambuco e Pará, para garantir a continuidade da prestação de serviços pelas trabalhadoras, em sua maioria mulheres negras, apesar da quarentena instituída em municípios com curvas de contágio alarmantes como Recife e Belém. Este falacioso reconhecimento da essencialidade do trabalho doméstico remunerado nada mais é do que uma expressão da colonialidade do poder e do ser, no sentido de espelhar uma sociedade classista, machista e racista de raízes coloniais escravocratas.

Conhecemos a sobrecarga das mulheres em razão da sobreposição das cargas física, mental e psicológica no contexto da pandemia e do confinamento. Entendemos que é uma oportunidade para se repensar a reprodução social e a divisão sexual do trabalho. Ao mesmo tempo, não podemos ignorar que a situação pandêmica coloca em risco a própria vida. E, se o coronavírus não é seletivo, atingindo indistintamente quem se colocar em seu caminho, não podemos dizer o mesmo sobre os efeitos da pandemia, que atingem mais impiedosamente a população mais vulnerável, observando os marcadores sociais de classe, gênero, raça, idade, condição de saúde etc.
 
A despeito disso tudo, a matéria no G1 relata que Miguel, Mirtes e sua mãe (e avó de Miguel) estiveram em contato com o patrão infectado pela COVID-19 e efetivamente contraíram a doença, felizmente com sintomas leves. A morte de Miguel, porém, vai além da questão da saúde pública e da invisibilidade do trabalho reprodutivo.
 
Vida passível de luto e necropolítica
 
A partir do luto, a filósofa Judith Butler enxerga uma hierarquização da vida: a humanidade do Outro está na sua capacidade de ser enlutado, o que conforma as questões da precariedade e da vulnerabilidade humana. Segundo ela, “vidas são apoiadas e mantidas diferentemente, e existem formas radicalmente diferentes nas quais a vulnerabilidade física humana é distribuída ao redor do mundo. Certas vidas serão altamente protegidas e a anulação de suas reivindicações à inviolabilidade será suficiente para mobilizar as forças de guerra. Outras vidas não encontrarão um suporte tão rápido e feroz e nem sequer se qualificarão como “passíveis de ser enlutadas””[ii]. Assim, as mortes de jovens negros nas periferias, se invocadas como tais, sem rostos nem nomes, não passam pelo luto. A ausência de luto é o final de uma vida precária.
 
De certa forma, parece que é dessa diferença que Mirtes, a mãe de Miguel, quer falar, imaginando como seria se a filha da patroa fosse vítima de sua omissão no dever de cuidado: "Se fosse eu, meu rosto estaria estampado, como já vi vários casos na televisão. Meu nome estaria estampado e meu rosto estaria em todas as mídias. Mas o dela não pode estar na mídia, não pode ser divulgado".
 
A hierarquização das vidas e das pessoas, a partir de uma lógica de gênero e raça, ainda organiza a sociedade e o Estado brasileiros. É a persistência da colonialidade do poder, que permeia as desigualdades historicamente estabelecidas, contra a quais o enfrentamento se inicia ao revelá-las, desnaturalizando-as. É admitir que a subjetividade jurídica de toda pessoa natural ou a dignidade da pessoa humana, fundamento expresso da nossa República, não se realiza em sua plenitude no dia a dia, pois a sociedade está dividida entre humanos e não humanos. 
 
O filósofo camaronês Achille Mbembe desenvolveu o termo necropolítica para resgatar a ideia de biopoder de Michel Foucault, segundo o qual a soberania dos Estados nacionais se expressa no poder de decidir “fazer viver ou deixar morrer”. A necropolítica vai além para dizer quem pode viver e quem deve morrer, em um exercício de violência e poder de morte[iii]. No neoliberalismo, o Estado decide sobre corpos e vidas de “massas supérfluas”, subjugando a vida ao poder de morte, como forma de gestão da sociedade. Vidas “dignas” são preservadas e protegidas. Vidas precárias são descartáveis. Ou nas palavras de Rubens Casara: “No Estado Pós-Democrático, o que importa é assegurar os interesses do mercado e da livre circulação do capital e das mercadorias, com o controle ou mesmo a exclusão dos indivíduos disfuncionais, despidos de valor de uso ou inimigos políticos.”[iv] Nesse contexto, a população pobre e majoritariamente negra é encarada como “inimigo interno” pelo Estado necropolítico.
 
Somente a partir de um lugar de privilégio social, de segurança sanitária e de pleno acesso a recursos de saúde é possível pensar em relaxar regras de isolamento, retomar a atividade comercial e negar o risco de morte a que a maior parte da população está exposta. Mais do que isso, é observando a lógica de descartabilidade de determinadas vidas em prol do mercado (mais do que um dado natural, como se este fosse um sujeito) que opera o Estado. O desgoverno a frente de uma grave crise sanitária, com seus mandos e desmandos, não se trata de uma ignorância, mas de uma forma deliberada de gestão dos indesejáveis.
 
Do negacionismo estatal à relação de trabalho
 
A distopia brasileira, marcada pelo darwinismo social disfarçado de negacionismo, não é obra de uma mente malévola. Não podemos cair no erro de personalizar o mal desta sociedade racista e machista; esta só se viabiliza porque está em conformidade com uma elite que não abre mão de seus privilégios e finge não enxergar o Outro.
 
A elite, assim como os cargos de poder nas instituições, tem um rosto: é um homem branco, adulto, heteronormativo e autoproclamado religioso, o que marca sua visão de mundo e seus interesses. A branquitude e a masculinidade são construções históricas e sociais hegemônicas nos lugares de poder e de decisão e informam a ideologia neoliberal. Esta perspectiva do alto da pirâmide social avoca para si uma falaciosa neutralidade, assumindo seu ponto de vista como sendo universal, objetivo, racional e civilizado (como o colonizador eurocêntrico), e inferioriza o Outro como sendo parcial, subjetivo, irracional e não-civilizado. Além disso, a estereotipação faz rotular o Outro como preguiçoso, ignorante, violento, resistente e perigoso. Com esta edificação de sua subjetividade, a elite consegue olhar para a classe trabalhadora e não enxergá-la; olhar para a trabalhadora doméstica e enxergá-la como mero equipamento da família; olhar para o filho da empregada e enxergá-lo como um estorvo.
Quem se identifica com a ideologia neoliberal assiste sem nenhuma inquietação a um desmanche das leis trabalhistas em pleno estado de calamidade, quando a prioridade da vida humana deveria exigir o reforço dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal e não a sua “flexibilização” (eufemismo para redução), e adere facilmente ao discurso autoritário. Vê com naturalidade a inclusão da empregada doméstica na folha de pagamento da prefeitura administrada pelo patrão.

Nessa racionalidade, de um lado, parte da classe privilegiada (autodefinida como meritocrata) protesta contra o isolamento social como um cerceamento de sua liberdade de ir e vir e um obstáculo para a liberdade econômica; de outro, é visto como natural o trabalhador sendo acionado por meio de aplicativo para fazer entregas a domicílio por uma remuneração ínfima e sem a devida proteção e a trabalhadora cuidando do cachorro dos patrões enquanto ninguém cuida de seu filho.
 
Como se vê, para enfrentarmos com a dignidade devida o sofrimento da família de Miguel, precisamos ir além da punição dos culpados diretos e nos colocarmos em julgamento com a autocondenação de, no mínimo, nos comprometermos em promover as mudanças necessárias para que as vidas negras no Brasil efetivamente importem!
 
Como adverte Ana Cristina Santos:
 
“Superar o racismo só será possível se tivermos condições de reconhecer privilégios, de rever atitudes costumazes, mas principalmente, depende da nossa capacidade de pensar conjuntamente questões como economia e raça, entendendo que classe tem cor e que essa é uma relação estrutural impossível de ser analisada a partir da fragmentação.
 
A história de Mirtes, para além da tragédia e do horror que pontuou sua Blackout Tuesday, continuará naturalizada e anônima enquanto insistirmos em olhar esse fato como a história de uma mulher e não de milhares de mulheres, como uma notícia extraordinária de jornal, enquanto pensarmos que punir uma pessoa, atendendo nosso justo e sazonal desejo de justiça, resolverá essa dor lancinante que cala no peito do povo negro dia após dia, através dos séculos.”[v]
 
Diante do quadro concreto, a indagação que deveríamos nos propor é: não fosse a morte prematura, quais sofrimentos ainda estariam reservados para Miguel na realidade social brasileira?
 
Ao nos colocarmos perante essa questão, somos obrigados a perceber que muito ainda será preciso realizar para mudar essa trágica realidade. Precisamos, no mínimo, reconhecer que as promessas vazias de uma vida melhor para todos e todas já foram feitas nas leis e na Constituição Federal. Cumpre-nos, agora, de uma vez por todas, exigir e fazer a nossa parte para que tais promessas saiam do papel. E essa é a hora!
 
Jundiaí, 05 de junho de 2020.
 
 


[i] Sobre a necessidade de garantir o isolamento social para as trabalhadoras domésticas e do cuidado, v. https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/na-pandemia-por-que-servico-domestico-e-classificado-como-essencial/
[ii] BUTLER, Judith. Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
[iii]  MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. 3. ed. São Paulo: n-1edições, 2018.
[iv] CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio: Civilização Brasileira, 2017. p. 133.
[v]. SANTOS, Ana Cristina. A morte de Miguel e a invisibilidade das tantas Mirtes do Brasil. Viomundo. 2/6/2020. Disponível em:
https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/o-protesto-diante-das-torres-gemeas-do-recife-e-a-invisibilidade-de-mirtes.html?utm_medium=popup&utm_source=notification&utm_campaign=site. Acesso em: 05 jun 2020.
5 Comments
mari angela pelegrini
5/6/2020 07:55:02 pm

Sem palavras. O artigo é um tapa na nossa cara.Desperta-nos da inércia e nos dá a sensação de que podemos fazer algo. Parabéns por toda a sua trajetória, principalmente na luta de tirar a venda de nossos olhos.

Reply
Klebson
6/6/2020 09:36:49 am

Simplesmente maravilhoso

Reply
Rômulo
6/6/2020 12:45:05 pm

Senhoras e Senhores!

O Professor Coronavírus está desmascarando muita gente no Brasil e no mundo. O que estava ou está escondido, toda a sujeira que colocam para debaixo do tapete, aos poucos, está sendo revelada. Não estamos falando somente de pessoas, mas também das atitudes tomadas por essas pessoas. São vários os problemas que poderíamos citar aqui, além desse que trata esse artigo. Como foi dito no artigo anterior, a pressão tem que ser feita todos os dias, seja nas ruas ou na Internet, é claro, sem exageros, afinal, vivemos em uma Democracia. Temos uma pergunta para Vossas Excelências do Judiciário. A pergunta pode parecer irônica, mas mesmo assim, vamos perguntar. Por que é tão difícil cumprir a Constituição no Brasil? Muitos fogem dessa pergunta, se esquivam e acabam não respondendo. Esse tipo de atitude, sempre causou e ainda causa muita indignação e revolta ao povo brasileiro. Certa vez, ouvimos de um determinado grupo furioso, que a Constituição do Brasil só serve para limpar a b@#$%¨&*! Ela não serve para nada, de que não adianta ter um texto tão bem escrito, objetivo e não colocá-lo em "prática". Realmente é contraditório. E quando é cumprida, pegam leve. Resumindo: a lei, na maioria das vezes, quando é aplicada, é branda. Então, com todo respeito a todos, qual o sentido de ser ministro do STF, procurador, promotor, desembargador, juiz, advogado, delegado, bacharel em Direito, etc., se a lei não é "cumprida"? Existe até uma brincadeira nos cursinhos do Brasil, quem é concurseiro ou foi aprovado em concurso público, sabe disso, muitos falam que prestam concurso público, pela estabilidade do emprego, que se "trabalha pouco" e que no final da vida, podem usufruir de uma doce e gorda aposentadoria. Será mesmo? Olhem para a situação atual do Brasil. Hoje, vale a pena lutar por um emprego público? Os servidores públicos estão em situação privilegiada em relação aos trabalhadores da iniciativa privada? Esse maldito vírus, Coronavírus, "destruiu" a carreira de muita gente! Todos estão preparados para o novo normal? E o futuro? A situação é preocupante! Quem já conseguiu ingressar no serviço público está rindo e "despreocupado", afinal, não "perdem" mais os seus empregos. E os(as) demais trabalhadores(as)? Quem vai levantar o Brasil? É bom pararmos para pensar! Em relação aos problemas sociais, eles sempre existiram, basta observar a história do Brasil. Para os religiosos, Deus é a solução, para o Judiciário, os seus integrantes são a "solução", para o Congresso Nacional, os seus integrantes são a "solução", para o presidente da República, ele é a "solução", e para o povo, povão, quem resolverá os seus problemas? NÃO PAREMOS DE LUTAR, SEJA NAS RUAS OU NA INTERNET! A PRESSÃO DEVE CONTINUAR! BRASIL! ORDEM E PROGRESSO!

Reply
José Flávio Malaquias Rangel
7/6/2020 11:02:04 am

A Constituição de 88, de clara tendência social democrata, não garantiu todos os direitos prometidos. Ela sempre foi um estorvo para o modelo neo, ultraliberal. Infelizmente, o momento não é favorável a ela. Quando, no início da pandemia, se cogitou um possível enfraquecimento do ideário liberal, parece que a resposta, ao menos no Brasil, será um aprofundamento das reformas liberais. Temos de reconhecer que a Constituição é apenas um pedaço de papel. Relembrando Ferdinand Lassale, a Constituição são os fatores reais de poder. Hoje, mais que nunca, o poder é do capital.

Reply
Aparecida S Borges(Ci Borges)
7/6/2020 11:07:53 pm

Parabéns, uma aula! De direito, sensibilidade e solidariedade humana. Abraços

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Editado por João Pedro M. Souto Maior