Tentei ao máximo não tratar dessa questão, porque, confesso, fui invadido por uma dubiedade de sentimentos quando ouvi a manifestação do deputado Daniel Silveira e por, conta disso, não querer afrontar uma unanimidade que se expressou em favor da defesa da democracia, sem contar que o personagem, dado o seu histórico, não seria merecedor do esforço intelectual de uma defesa.
É importante, pois, deixar bem claro que não estou defendendo tanto os atos quanto a pessoa em si do deputado em questão. Mas meu julgamento axiológico e a minha profunda contrariedade com a visão de mundo por ele representada não podem interferir na minha avaliação jurídica da questão que, de fato, está ligada ao tema central de muitas das minhas manifestações, a defesa da liberdade de expressão.
Não quero, no entanto, desta feita, falar da relevância da defesa da liberdade de expressão mesmo que as ideias expostas nos agridam (o que não elimina as responsabilidades pelas falas, notadamente quando proferidas por mandatários públicos, que devem se guiar pelas atribuições e finalidades do cargo ocupado), até porque, contrariamente ao que tenho sustentado, a doutrina jurídica se firmou no sentido de que, como todo direito, também a liberdade de expressão encontra seu limite.
Isto é essencial, pois se é pela lógica jurídica que se procura inibir a fala – e é precisamente neste tópico a minha maior objeção à fixação de limites à liberdade de expressão – deve ser também pela mesma lógica que se analise o ato coercitivo resultante.
Quando injuriosas, difamatórias, caluniosas, ofensivas aos direitos de personalidade ou façam apologia ou incitem a uma prática criminosa, as falas podem repercutir na ordem jurídica, conferindo a quem viu um direito seu atingido por elas pleitear a devida reparação, cabendo, inclusive, a instauração de processo criminal quando for o caso. E há sempre de se tomar o cuidado para que o efeito jurídico que se pretenda atribuir à fala seja correspondente à lesão, não devendo, pois, ser impulsionado por vingança e ódio, já que estes seriam a reprodução da mesma conduta que gerou a ofensa jurídica.
Não há e não poderia mesmo haver, pensando-se em um Estado Democrático de Direito que tem em sua base a liberdade de expressão, o efeito de levar à prisão, em flagrante delito, quem, potencialmente, ofenda um interesse jurídico com suas falas, pois não é da avaliação do conteúdo em si da expressão que se trata e sim da avaliação dos efeitos que ela possa gerar na esfera jurídica alheia e também porque uma punição, com prisão, por conta do conteúdo da fala, ainda mais quando aplicada diretamente por aquele que se sente ofendido, geraria o aniquilamento da liberdade de expressão (e não a avaliação em torno do seu limite), submetendo-se a própria cidadania a fórmulas abertas e autoritárias de coerção.
Tenta-se argumentar que a Lei de Segurança Nacional dá respaldo à prisão pelo conteúdo de uma manifestação, mas há de se tomar muito cuidado ao reproduzir isso porque a Lei de Segurança Nacional foi o instrumento da ditadura civil-empresarial-militar para, justamente, aniquilar a liberdade de expressão e os direitos fundamentais. Referida lei (Lei n. 6.620) foi publicada em 17 de dezembro de 1978, para, dentre outros objetivos, preservar “regime representativo e democrático” e manter a “paz social”. E dizia, expressamente, o artigo 52 da referida lei: “O processo e julgamento dos crimes contra a Segurança Nacional são da competência exclusiva da Justiça Militar e reger-se-ão pelas disposições do Código de Processo Penal Militar, no que não colidirem com as disposições especiais desta Lei.”
A Lei n. 6.620/78 foi revogada, em 14 de dezembro de 1985, pela Lei n. 7.170, que, ainda no regime ditatorial, preconizou a necessidade de coibir os atos que representem “lesão real ou potencial” da “integridade territorial e a soberania nacional”, “o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito” e “a pessoa dos chefes dos Poderes da União”. Esta lei manteve a competência prevista na anterior, acrescentando as situações de competência originária do Supremo Tribunal Federal relativa aos casos previstos na Constituição de 1967 (e Emenda de 1969): “Art. 30 - Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes previstos nesta Lei, com observância das normas estabelecidas no Código de Processo Penal Militar, no que não colidirem com disposição desta Lei, ressalvada a competência originária do Supremo Tribunal Federal nos casos previstos na Constituição.”
Fato é que a Lei de Segurança Nacional foi um instrumento ditatorial para aniquilar a liberdade de expressão, dizendo que o fazia para garantir a liberdade.
Ou seja, a Lei de Segurança Nacional foi o instrumento da ditatura para, em nome da ordem democrática, impor o silêncio, o que se mostra, ou deveria se mostrar, totalmente incompatível com a ordem constitucional vigente.
O fato concreto é que todos aqueles que queiram punir o deputado por suas falas devem se moldar pelos limites jurídicos estabelecidos, sob pena da legitimação de um arbítrio punitivo, que atingirá a Chicos e a Franciscos (valendo a ressalva de que há séculos já vem atingindo a população negra e periférica e até por isso precisa ser eliminado e não reforçado).
Não se pode reproduzir a mesma lógica de imposição de uma prática ditatorial em nome da defesa da democracia. Não se combate arroubos ditatoriais com impulsos autoritários.
Vale lembrar que o STF já tem abertamente desconsiderado a Constituição com relação aos direitos sociais e não cabe aplaudir o seu ato de prisão do deputado, por mais que o resultado nos gere um certo gozo, porque, primeiro, isto legitima os atos do STF explicitamente contrários aos direitos sociais constitucionalmente consagrados, como se viu, recentemente, no julgamento das ADCs 58 e 59 (para citar apenas um exemplo), e, segundo, porque abre definitivamente as portas para que, pela mesma ordem de ideias, todas as liberdades individuais e a própria democracia sejam arbitrariamente delimitadas ou até totalmente suprimidas.
São Paulo, 19 de fevereiro de 2021.