Bruno Gilga Rocha(**)
(Foi interrompida a sessão do STF em que se decidia se há ou não responsabilidade do Estado com relação aos direitos não pagos aos trabalhadores pelas empresas terceirizadas contratadas por órgãos públicos. A votação no plenário empatou e os Ministros decidiram que o julgamento seria definido pelo novo Ministro a tomar posse, Alexandre de Moraes)
No momento em que – diante da aprovação do PL 4.302-E pela Câmara dos Deputados e das expectativas geradas em torno da sanção ou veto da lei, que possibilitaria a retomada das discussões sobre o PLC 30/15, que tramita no Senado – se intensifica a rejeição da classe trabalhadora e de parte considerável da opinião pública à terceirização, o STF resolve colocar em pauta, para a próxima quinta-feira, o julgamento sobre a responsabilidade da Administração pública na terceirização, conforme anunciado na epígrafe
Agora, mesmo essa proteção mitigada está ameaçada.
Para justificar o afastamento da responsabilidade do Estado, a Advocacia Geral da União utiliza como argumento, explícito na tribuna, o fato de que “nas demais instâncias judiciais tramitam mais de 108 mil ações sobre a questão” e se o Poder público for responsabilizado, “o prejuízo aos cofres públicos chegaria a R$ 870 milhões”. Como se vê, conforme se tem tido, a lógica instaurada pelo golpe institucional eliminou até mesmo a necessidade de fingir que se discutem direitos e sua aplicação; pode-se explicitar que se trata exclusivamente de uma necessidade de atender a interesses econômicos de setores específicos da sociedade. Nada mais importa, nem mesmo os limites constitucionalmente impostos ao capital.
A AGU explicita que as leis devem atender exclusivamente aos interesses do governo, mesmo quando isso signifique dizer, abertamente, que serão deixados 108 mil trabalhadores (ou conjuntos de trabalhadores em ações comuns) sem receber seus direitos, embora não tenha sido este, a bem da verdade, o argumento adotado pelos Ministros do STF, no julgamento em questão, que já se pronunciaram a favor da exclusão da responsabilidade do Estado.
Fato é que se chegou ao resultado de 05 (cinco) votos – Rosa Weber, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello – no sentido de que a Administração pública deve assumir os encargos trabalhistas caso a empresa de terceirização não o faça, e 05 (cinco) votos em sentido contrário – Luiz Fux, Marco Aurélio, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia –, isto é, com o conteúdo de que, feita a licitação, o ente público não pode ser responsabilizado por dívidas trabalhistas da empresa de terceirização.
Assim, será o mais novo Ministro do STF, Alexandre de Moraes, quem vai decidir essa questão que interessa a milhões de trabalhadores brasileiros, mas que diz respeito, também e diretamente, aos interesses mediatos e imediatos do governo.
E qual Moraes será?
O interessante é que se sua decisão, como muitos suspeitam, procurar atender as preocupações do governo, o Ministro Alexandre terá que contrariar o doutrinador Moraes.
Ora, o “status” de direitos fundamentais às normas trabalhistas constitucionais já foi expressamente admitido por Moraes[i]:
“Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º., IV, da Constituição Federal.”
O autor, aliás, foi além e preconizou[ii] que os “direitos sociais previstos constitucionalmente são normas de ordem pública, com a característica de imperativas, invioláveis, portanto, pela vontade das partes contraentes da relação trabalhista”, negando, pois, qualquer permissivo para se conferir validade ao propósito do governo de tornar efetivo o tal “negociado sobre o legislado”, ainda mais quando o “legislado” for o “constitucionalizado”.
Além disso, Moraes acolheu, expressamente, a doutrina de Canotilho e Vital Moreira, no sentido de que:
“A individualização de uma categoria de direitos e garantias dos trabalhadores, ao lado dos de caráter pessoal e político, reveste um particular significado constitucional, do ponto em que ela traduz o abandono de uma concepção tradicional dos direitos, liberdades e garantias com direitos do homem ou do cidadão genéricos e abstractos, fazendo intervir também o trabalhador (exactamente: o trabalhador subordinado) como titular de direitos de igual dignidade.” [iii]
No que se refere à responsabilidade objetiva do Estado perante terceiros, Moraes é bastante claro ao preconizar que essa responsabilidade, sendo objetiva, não depende da demonstração de culpa ou dolo da Administração, só se exclui “no caso de força maior, caso fortuito, ou, ainda, se comprovada a culpa exclusiva da vítima”, sendo certo que para a configuração da responsabilidade o autor exige “ocorrência do dano, nexo causal entre o eventus damni e a ação ou omissão do agente público ou do prestador de serviço público; oficialidade da conduta lesiva”[iv].
Mesmo sobre a questão que é necessariamente precedente à responsabilidade, que é a da autorização constitucional para que exista serviço terceirizado no âmbito do serviço público, Moraes deixa claro que a previsão de exceções à regra do concurso público é uma abertura “muito perigosa”, não podendo ser ampliada e tratada como uma espécie de “válvula de escape para fugir à obrigatoriedade dos concursos públicos, sob pena de flagrante inconstitucionalidade”[v], não fazendo o autor qualquer referência expressa à terceirização, até porque a Constituição Federal em nenhum de seus artigos abre essa exceção.
Permitam-nos, de todo modo, deixar consignadas algumas impressões a respeito dessas duas questões: invalidade da terceirização no setor público; e responsabilidade do ente público pela terceirização.
1. Terceirização na Administração Pública: uma prática inconstitucional
Os autores que defendem a terceirização no setor público falam de modernização do ente público.
No entanto, a terceirização não tem nada de moderno, vez que adotada desde os primórdios da Revolução Industrial, tendo sido, aliás, um dos principais alvos, no sentido proibitivo, da regulação trabalhista. Além disso, sua lógica, que é meramente a busca de maior lucro, a divisão dos trabalhadores e a flexibilização de seus direitos, não tem nada a ver com as exigências preconizadas para o serviço público, a não ser que se confesse ter no Estado um meio para a produção de riquezas a partir da exploração do trabalho alheio, sendo estes, os “alheios”, exatamente os membros da sociedade a que ele diz se destinar a organizar e proteger.
A eficiência administrativa não pode ser realizada com a precarização dos direitos dos que prestam serviços ao ente público.
Pode-se tentar dizer que pela terceirização pura e simples não se eliminam direitos, vez que apenas se possibilita a transferência da relação jurídica trabalhista à empresa interposta, que fica responsável pelo cumprimento dos direitos do trabalhador.
Mas, se tomada por base a realidade e não apenas o formalismo retórico dos textos escritos, é fácil verificar (e só não vê quem não quer ver) que a precarização é da própria essência da terceirização, pois, como explica Márcio Túlio Viana, as empresas prestadoras de serviço, para garantirem sua condição, porque não têm condições de automatizar sua produção, acabam sendo forçadas [e que este termo não dê a entender que em geral ofereçam resistência, mas sim que se trata de algo próprio da lógica objetiva desse processo] a precarizar as relações de trabalho, para que, com a diminuição do custo da obra, ofereçam seus serviços a um preço mais accessível, ganhando, assim, a concorrência perante outras empresas prestadoras de serviço[vi].
Com relação ao setor público, então, a essência de precarização é ainda mais nítida, pois a contratação da empresa de terceirização é precedida de procedimento licitatório do qual sai vencedor, em geral, a empresa que oferece o serviço pelo menor preço.
Importante constatar, ademais, que a terceirização é examinada, unicamente, sob os ângulos de visão do empresário ou, no caso dessa análise, do ente público. Mas, deixando de lado o aspecto econômico que o tema envolve, relevante parar para pensar o que a terceirização representa na vida dos empregados terceirizados.
Em concreto, nesta suposta “técnica moderna de produção” há o impedimento de uma vinculação social do empregado com o meio-ambiente de trabalho, onde o trabalhador passa a maior parte de seu dia. Os “terceirizados” são deslocados do convívio dos demais empregados, chamados, “efetivos”; usam elevadores específicos; almoçam em refeitório separado ou em horários diversos; não são alvo de qualquer tipo de subordinação, para, como se diz, “não gerar vínculo”; ou seja, são tratados como coisa ou “simplesmente” como seres invisíveis. Estão por ali, mas deve ser como se não estivessem.
Além disso, os terceirizados muitas vezes trabalham em várias tomadoras de serviços ao longo de sua vinculação jurídica com a empresa prestadora, gerando a plena impossibilidade de sua socialização pelo trabalho e tornando muito mais improvável sua obtenção, pela via judicial, dos direitos que lhe venham a ser suprimidos.
Essa prática, inclusive, foi condenada no Enunciado “1.10”, aprovado no XV Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – CONAMAT, realizado em Brasília/DF no período de 28 de abril a 01 de maio de 2010:
“DEFORMAÇÃO DO MODELO TERCEIRIZADO: ‘PERVERSÃO DA PERVERSIDADE’. Mesmo sob a ótica da Súmula 331 do TST, viola os princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho, e mesmo o da livre concorrência (que se baseia no princípio da lealdade), a prática de uma mesma empresa de prestação de serviços "coisificar" seus trabalhadores, emprestando-os simultânea ou, em curto espaço de tempo, sucessivamente a vários tomadores. Em tais hipóteses, os trabalhadores lesados têm direito a uma indenização por danos pessoais, sem prejuízo de eventual dano social que a situação revele”
Muitos terceirizados, ao contrário, ficam fixos na tomadora, passando, ao longo de anos, pelas “mãos” de diversas prestadoras, e quando essas mudanças ocorrem com menos de dois anos, os terceirizados chegam a ficar vários anos sem gozar férias, o que representa, igualmente, agressão a direitos fundamentais do trabalhador, dando ensejo a reparação por dano pessoal.
E, ao final da prestação de serviços, normalmente quando a prestadora perde o posto de serviço, para tentar encobrir todas as ofensas jurídicas que se efetivam durante o vínculo, muitas prestadoras de serviço se valem da estratégia de transferir o trabalhador terceirizado para outra cidade – sabendo, de antemão, que o terceirizado, que ganha pouco mais que um salário mínimo, não terá condições financeiras, sociais e familiares para o deslocamento, quase sempre sequer custeado pela prestadora – e, assim, diante das faltas ao trabalho, impor ao terceirizado uma justa causa ou coagi-lo a pedir demissão. Nesse contexto, premido pela necessidade decorrente do fato de sequer ter recebido verbas rescisórias, o terceirizado, quando da audiência na reclamação trabalhista que propõe para buscar seus direitos, se vê constrangido, muitas vezes também pela atuação do juiz, a fazer um acordo, pelo qual lhe são ofertados o levantamento do FGTS, o recebimento do seguro-desemprego e o pagamento de uma parte das verbas rescisórias, tudo regado à cláusula da “quitação ampla e irrestrita do extinto contrato de trabalho”.
A situação é ainda pior quando o feixe de fornecimento de mão-de-obra se amplia e o fenômeno da terceirização se transforma em quarteirização etc. Uma empresa contrata a outra para a execução do serviço e esta, por sua vez, contrata outra, acentuando, por óbvio, a lógica perversa da precarização. Fato que é corriqueiro na construção civil, podendo-se dizer, até, que o Brasil está sendo edificado, em obras privadas e públicas, por terceirizados, que, via de regra, não recebem integralmente, nem perto disso, seus direitos trabalhistas e ainda “oneram”, como se diz, a Previdência Social com “suas” doenças e acidentes do trabalho, e ainda assim quando têm a “sorte” de efetivar o exercício desse direito.
Sob o prisma da realidade judiciária, percebe-se, facilmente, o quanto a terceirização tem contribuído para dificultar, na prática, a identificação do real empregador daquele que procura a Justiça para resgatar um pouco da dignidade perdida ao perceber que prestou serviços e não sabe sequer de quem cobrar seus direitos.
Há, ainda, outro efeito pouco avaliado, mas intensamente perverso que é o da irresponsabilidade concreta quanto à proteção do meio-ambiente de trabalho. Os trabalhadores terceirizados, não se integrando a CIPAs e não tendo representação sindical no ambiente de trabalho, são submetidos ao trabalho em condições subumanas. O meio-ambiente do trabalho, desse modo, é relegado a um segundo plano, gerando aumento sensível de doenças profissionais.
Por fim, mas não menos importante, cumpre notar a postura do tomador de serviço perante o trabalhador quando se constata que a empresa prestadora dos serviços não está respeitando os direitos trabalhistas. Age como se nada tivesse com a história. Os terceirizados são, assim, alvo de uma atitude indiferente do tomador dos serviços, que diz, expressamente: “não temos nada com isto!” Ou, quando muito, em ato de compaixão, argumenta: “vamos ver o que podemos fazer...”
No setor público, então, a perversidade da terceirização é ainda mais nítida, pois como o orçamento é limitado acaba se verificando a redução da parcela destinada à mão-de-obra terceirizada, aumentando a precarização, sobretudo quando se exige que o serviço de 10 (dez) pessoas, por exemplo, sejam realizados por 5 (cinco) e assim por diante.
O problema é que como isso se faz sem qualquer limite e sem qualquer repressão dos Poderes constituídos, pois são os próprios Poderes os executores da prática, uma parcela cada vez maior de servidores está sendo atirada para fora da administração. Assim, os servidores “efetivos” de hoje tendem a ser os terceirizados de amanhã.
Lembre-se que a exigência do concurso público tem, precisamente, a finalidade de evitar que o administrador, raciocinando não como administrador, mas como político, cause danos ao interesse público com as constantes trocas de servidores após cada término de gestão. “A linguagem política do período imperial consagrou o termo derrubada para designar a remoção de funcionários, quando tal remoção era consequência da vitória eleitoral de uma nova facção – organizada em partido – das classes dominantes escravistas. Essa instabilidade estava, evidentemente, ligada à ausência de critérios de recrutamento segundo a competência individual, aferida de modo suficientemente formalizado.”[vii]
A terceirização no serviço público representa uma forma de derrubar o freio constitucional do concurso público, favorecendo à retomada da atuação do administrador com a mera lógica dos interesses político-partidários, além de possibilitar o advento de relações promíscuas entre o público e o privado. Recorde-se o caso de desvios indevidos de dinheiro público para o setor privado na Petrobrás, cuja atividade é quase toda desenvolvida por intermédio de terceirizações, além da prática mais geral da contratação pelo ente público de empresa terceirizada cujo proprietário, ou seus familiares, têm vínculo com o administrador público.
A prática da terceirização no setor público atende a interesses eleitorais, haja vista que um administrador passa a se relacionar com centenas (ou até milhares) de famílias que dependem de contratos com empresas prestadoras de serviços.
O mais grave de tudo isso é que a Constituição Federal de 1988 não permite, em nenhum de seus artigos, que esse procedimento seja adotado pelos administradores. O art. 37 e seus incisos I e II preconizam, expressamente, que: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”
Os requisitos para a execução de serviços públicos são, portanto, a impessoalidade; a publicidade; a moralidade; o acesso amplo; e o concurso público; tudo para evitar os defeitos por demais conhecidos do favorecimento, do nepotismo e da promiscuidade entre o público e as camadas privilegiadas do setor privado.
Resulta desses dispositivos que a execução de tarefas pertinentes ao ente público deve ser precedida, necessariamente, de concurso público. Nestes termos, a contratação de pessoas, para prestarem serviços à Administração, por meio de licitação fere o princípio do acesso público. Assim, se, por exemplo, algum município quiser contratar um servidor deverá fazê-lo mediante realização de concurso público de provas e títulos, que será acessível a todos os cidadãos, respeitados os requisitos pessoais exigidos em termos de qualificação profissional por acaso existentes e justificados em razão do próprio serviço a ser realizado. Ao se entender que o município possa realizar esse mesmo serviço por meio de uma empresa interposta estar-se-á, simplesmente, dando uma “rasteira” no requisito do concurso público e, mais que isso, permitindo-se o favorecimento de uma pessoa jurídica, que, no fundo, estaria recebendo dinheiro público sem uma justificativa para tanto.
Parece mesmo, e cada vez mais, que o único momento em que os Poderes do Estado se recordam de todos esses argumentos sobre a exigência do concurso público é quando querem apresentá-los como obstáculo contra a possibilidade de efetivação da relação de trabalho entre o órgão público e o trabalhador que lhe presta serviço por meio de uma empresa intermediária. É somente contra os trabalhadores em luta por uma igualdade de direitos e salários, cujo descumprimento, ilícito desde o primeiro momento, pôde durar décadas em nome somente dos lucros dos empresários e da divisão dos trabalhadores, que surge a exigência do concurso público. Perversa e subitamente, vem à memória esse aspecto da Constituição somente no momento em que alguém lute para reparar a violência a que foi submetida, geralmente por anos a fio, e, principalmente, aos trabalhadores que pelo próprio exercício do trabalho prestado, na prática, ao órgão público, provam sua aptidão para o cargo e função que exercem e no qual deveriam ser efetivados, como condição para garantir plena isonomia de direitos, nesse caso sim, sem a exigência do concurso público.
Claro, se poderá argumentar que há previsão, também na Constituição, no inciso XXI, do mesmo artigo 37, autorizando o ente público a contratar serviços mediante processo de licitação: “XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”
É tão óbvio que a expressão serviços contida no inciso XXI não pode contrariar a regra fixada nos incisos I e II, que chega mesmo a ser agressivo tentar fundamentar o contrário. Ora, como já dito, se um ente público pudesse contratar qualquer trabalhador para lhe prestar serviços por meio de uma empresa interposta se teria como efeito a ineficácia plena dos incisos I e II, pois que ficaria na conveniência do administrador a escolha entre abrir o concurso ou contratar uma empresa para tanto, a qual se incumbiria de escolher, livremente, a partir dos postulados jurídicos de direito privado, as pessoas que executariam tais serviços.
O inciso XXI, evidentemente, não pode ter tal significação. Tomando o artigo 37 em seu conjunto e mesmo no contexto do inciso XXI, em que se insere, o termo “serviços” só pode ser entendido como algo que ocorra fora da dinâmica permanente da administração e que se requeira, de forma esporádica, para atender exigência da própria administração. Para esses serviços, o ente público poderá contratar uma empresa especializada, valendo-se, necessariamente, de processo de licitação.
Não se pode entender, a partir da leitura do inciso XXI, que o ente público, para implementar uma atividade que lhe seja própria e permanente, possa contratar servidores por meio de empresa interposta, até porque, se pudesse, qual seria o limite para isto? Afinal, serviço é o que realizam todos os que trabalham no ente público. O que fazem os juízes, por exemplo, senão a prestação de serviços ao jurisdicionado?
Costuma-se dizer que a “execução de tarefas executivas”[viii], como, por exemplo, os serviços de limpeza, podem ser executados por empresa interposta, baseado no que prevê um decreto de 1967, número 200 e uma Lei de 1970, n. 5.645. Ora, em primeiro lugar, um decreto e uma lei ordinária não podem passar por cima da Constituição, ainda mais tendo sido editados há quase 40 anos atrás, ainda no regime ditatorial. Segundo, a Constituição não faz qualquer distinção quanto aos serviços para fins da necessidade de concurso público. Mesmo a contratação por tempo determinado, para atender necessidade temporária de excepcional interesse público, deve ser precedida de pelo menos um processo seletivo. E, terceiro, como justificar que os serviços de limpeza e de vigilância possam ser exercidos por uma empresa interposta e não o possam outros tipos de serviço realizados cotidianamente na dinâmica da administração, como todos os demais?
Se nos “serviços” a que se refere o inciso XXI pudessem ser incluídos os serviços que se realizam no âmbito da administração de forma permanente não haveria como fazer uma distinção entre os diversos serviços que se executam, naturalmente, na dinâmica da administração, senão partindo do critério não declarado da discriminação. Mas isso, como se sabe, ou se deveria saber, fere frontalmente os princípios constitucionais da não discriminação, da isonomia, da igualdade e da cidadania.
Interessante verificar que a própria Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, que regula o processo de licitação, deixa claro que “serviço” é “toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais” (inciso II, do art. 6o.), pressupondo, pois, o caráter temporário do serviço contratado, conforme, aliás, previsão contida no art. 8o.: “A execução das obras e dos serviços deve programar-se, sempre, em sua totalidade, previstos seus custos atual e final e considerados os prazos de sua execução.”
Verdade que na mesma lei se encontra o inciso II, do artigo 57, que, tratando da duração dos contratos firmados com a administração por meio de processo licitatório, faz menção, excepcionando a regra, “à prestação de serviços a serem executados de forma contínua” à administração. Mas, em primeiro lugar, referido dispositivo foi inserido na Lei em 1998, com o nítido propósito de legitimar algumas práticas de terceirização já existentes no setor público, só que, evidentemente, não há legitimação de uma situação fática que contraria a Constituição, até porque permaneceria aqui o problema em torno de qual tipo de serviço estaria excepcionado da regra do concurso público.
Como a Constituição determina que os serviços atinentes à dinâmica da administração sejam realizados por servidores concursados, não será uma lei ordinária, sem se apoiar em qualquer fundamento de distinção legal e moralmente válido, que poderá dizer o contrário.
Assim, adotando-se o princípio da interpretação em conformidade com a Constituição, o serviço contínuo, referido no inciso II, do art. 57, da Lei n. 8.6666/93, só pode ser entendido como um serviço que se preste à administração, para atender uma necessidade cuja satisfação exija alta qualificação de caráter técnico, requerendo, portanto, por meio de processo licitatório, a contratação de uma empresa especializada e que, embora permanente sua execução, se inclua na lógica do contexto de sua dinâmica organizacional apenas esporadicamente, como, por exemplo: a manutenção de elevadores; o transporte de valores em vultuosa quantia... Para além desse limite, ter-se-á uma flagrante inconstitucionalidade.
Verdade que o artigo 175, também da Constituição, fornece ao administrador a possibilidade de escolha no que se refere aos serviços públicos. Diz o referido texto constitucional: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”
No entanto, não se há confundir os “serviços” mencionados no inciso XXI, com serviço público. O serviço público, como explica Celso Antônio Bandeira de Mello, “é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados”[ix].
Os “serviços públicos”, mencionados no artigo 175, têm, portanto, natureza diversa dos “serviços” a que se referem o inciso XXI, do art. 37. Os serviços públicos são prestados aos administrados e não à própria administração. A execução desses serviços públicos pressupõe, por óbvio, a criação de uma estrutura que seja própria a consecução de seus fins e que requer, portanto, o exercício de alguma atividade de natureza empresarial, que o Estado pode realizar por si ou mediante outorga a um ente privado, mediante licitação. Não se concebe, pela regra do art. 175, que o Estado transfira para o particular um serviço atinente à sua própria organização interna ou mesmo um serviço que se destine à população, mas que não requeira nenhum tipo de organização de caráter empresarial, pois neste último caso, a interposição do ente privado se faria apenas para possibilitá-lo explorar, economicamente, a atividade pública, sem oferecer nada em troca. De todo modo, independentemente das controvérsias a respeito desta última questão, não pode haver dúvida de que o art. 175 não é fundamento para a mera terceirização de serviços no âmbito da administração pública.
Contra todos esses argumentos pode-se, ainda, tentar trazer à tona o disposto no artigo 247 da Constituição: “As leis previstas no inciso III do § 1º do art. 41 e no § 7º do art. 169 estabelecerão critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado.”
Mas o que se percebe desse dispositivo é, bem ao contrário, o reforço de tudo que foi dito, embora o que se extraía, em análise apressada do dispositivo, seja que, segundo a própria Constituição, haveria uma distinção entre as atividades desenvolvidas no âmbito da administração, sendo algumas consideradas “atividades exclusivas de Estado” e, outras, consequentemente, não.
No entanto, abstraindo a dificuldade de definir o que seria, propriamente, atividade exclusiva de Estado, o fato é que a diferenciação feita pela Constituição diz respeito, unicamente, aos critérios específicos para a “perda do cargo”, não tendo, portanto, nenhuma influência no aspecto do ingresso no serviço público, do que se trata a questão posta em discussão. Aliás, é o próprio artigo 247 que acaba reforçando a ideia de que o ingresso de todos os servidores da Administração, independente da tarefa que exerçam, se dê por intermédio de concurso público, pois, do contrário, não haveria sentido em trazer a distinção quantos aos critérios para a perda do cargo.
Conclusivamente, não há em nosso ordenamento constitucional a remota possibilidade de que as tarefas que façam parte da dinâmica administrativa do ente público serem executadas por trabalhadores contratados por uma empresa interposta. A chamada terceirização, que nada mais é que uma colocação da força de trabalho de algumas pessoas a serviço de outras, por intermédio de um terceiro, ou seja, uma subcontratação da mão-de-obra, na esfera da Administração Pública, trata-se, portanto, de uma prática inconstitucional.
2. A responsabilidade do Estado na terceirização
Ora, se a terceirização já representa uma prática inconstitucional, admiti-la e ainda recusar a responsabilidade do Estado é, em si, a representação nítida da existência de um golpe institucional que tem como vítimas diretas a classe trabalhadora e seus direitos.
Argumenta-se que a responsabilidade do ente público deve ser afastada em razão da regra contida no art. 71 da Lei n. 8.666/93. Mas, de fato, tenta-se, por meio da invocação de um único artigo de lei, destruir todo um aparato jurídico de proteção da dignidade humana do trabalhador, valendo lembrar que a República Federativa do Brasil tem, dentre os seus fundamentos, a proteção da dignidade humana e do valor social do trabalho (incisos III e IV, do art. 1º da CF), tendo os direitos trabalhistas sido alçados ao Capítulo dos Direitos Fundamentais (arts. 7º a 9º da CF).
Mas vejamos a completude dos argumentos jurídicos que negam a aplicação isolada e quase magnânima do art. 71 da Lei n. 8666/93.
Vale lembrar, a propósito, o disposto no artigo 455, da CLT, que assim dispõe:
"Art. 455 - Nos contratos de subempreiteira responderá o subempreiteiro pelas obrigações derivadas do contrato de trabalho que celebrar, cabendo, todavia, aos empregados, o direito de reclamação contra o empreiteiro principal pelo inadimplemento daquelas obrigações por parte do primeiro.
Parágrafo único. Ao empreiteiro principal fica ressalvada, nos termos da lei civil, ação regressiva contra o subempreiteiro e a retenção de importâncias a este devidas, para a garantia das obrigações previstas neste artigo."
Vê-se, portanto, que a lei trabalhista fixou a solidariedade nas relações de terceirização, na medida em que conferiu ao trabalhador o direito de ação em face do tomador dos serviços - empreiteiro - e sem benefício de ordem, pois o que se garantiu a este foi a ação regressiva contra o prestador - subempreiteiro.
Neste sentido, a seguinte Ementa:
“Destituída a intermediadora de mão-de-obra de idoneidade econômica e financeira, tem-se a empresa tomadora do serviço como responsável solidária pelos ônus do contrato de trabalho, pelo princípio da culpa in eligendo, o mesmo que informa e fundamenta a regra do art. 455, do estatuto obreiro. (TRT - 8ª R - Ac. nº 4947/95 - Rel. Juiz Itair Sá da Silva - DJPA 23.01.96 - pág. 05)”
Aliás, a solidariedade entre tomador e prestador de serviços está expressamente prevista em outros dispositivos legais, como, por exemplo, artigo 15, parágrafo 1º da Lei n. 8.036/90 e artigo 2º, inciso I, do Decreto n. 99.684/90, sobre FGTS.
Frise-se ainda que eventual cláusula do contrato firmado entre as empresas, que negue qualquer tipo de solidariedade, é nula de pleno direito, pois sua aplicabilidade pode impedir o adimplemento de obrigações trabalhistas (artigo 9º, da CLT). Neste sentido, aliás, merece destaque o disposto no artigo 187, do novo Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Ora, realizar negócios jurídicos cujo propósito é afastar-se de responsabilidade pelo adimplemento de direitos de terceiros, evidentemente, não pode ser considerado como ato lícito, nos termos da atual visão social do próprio direito civil.
Neste aspecto da responsabilidade civil por ato ilícito, merece relevo o artigo 934 do vigente Código Civil, que estabelece o direito de ressarcimento para aquele que indenizar o dano provocado por ato de outrem, conduzindo à ideia de que não há benefício de ordem possível no que tange à busca de indenização quando na prática do ato ilícito concorrerem mais de uma pessoa. Esta conclusão, aliás, é inevitável quando se verifica o teor do artigo 942, que assim dispõe:
“Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.
Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932.” (grifou-se).
Essas regras, obviamente, possuem pertinência total no fenômeno da terceirização. Assim, uma empresa que contrata outra para lhe prestar serviços, pondo trabalhadores à sua disposição, ainda que o faça dentro de um pretenso direito, terá responsabilidade solidária pelos danos causados aos trabalhadores pelo risco a que expôs os direitos destes, tratando-se, pois, de uma responsabilidade objetiva (parágrafo único do artigo 927).
Destaque-se que a Lei 9.472/97, ao permitir a existência de contratos entre a concessionária e terceiros, não exclui a responsabilidade de ambas pelos débitos trabalhistas, nem poderia fazê-lo, já que seria negar a essa relação toda a teoria geral de Direito, o que não se admite sequer por hipótese.
Não há incidência possível nesta situação da regra de que “a solidariedade não se presume, resultando de lei ou da vontade das partes” (artigo 265, atual Código Civil), porque a solidariedade em questão é fixada por declaração judicial de uma responsabilidade civil, decorrente da prática de ato ilícito, no seu conceito social atual.
Aliás, neste sentido, a regra do artigo 265 não precisa nem mesmo ser afastada, vez que a solidariedade declarada, com tais parâmetros, decorre da própria lei (artigo 942 e seu parágrafo).
Lembre-se, ademais, que já na Declaração dos Objetivos da Organização Internacional do Trabalho, de 1944, foi firmado o princípio, até hoje não superado no contexto jurídico internacional, de que o trabalho não é mercadoria. Ainda que esse seja exemplo do quanto o ordenamento jurídico nacional e internacional está repleto de princípios que nunca se supôs serem respeitados.
Tal sentido pode ser encontrado, também, na Declaração da OIT, relativa aos princípios fundamentais do trabalho, ao dispor que “a justiça social é essencial para assegurar uma paz universal e durável” e que “o crescimento econômico é essencial, mas não é suficiente para assegurar a equidade, o progresso social e a erradicação da pobreza, e que isto confirma a necessidade para a OIT de promover políticas sociais sólidas, a justiça e instituições democráticas”.
Esses preceitos foram, aliás, o fundamento para que a OIT, em 1949, adotasse a Convenção n. 96, estabelecendo que as agências de colocação de mão-de-obra, com finalidade lucrativa, deveriam ser suprimidas da realidade social dos países membros de forma progressiva e definitiva.
O artigo 71, da Lei n. 8.666/93, portanto, colide com os princípios da igualdade e da valorização social do trabalho (v. artigos 5º, 1º, IV e 170, ambos da Constituição Federal). Além disso, o próprio artigo 37, § 6º, da CF, consagra a responsabilidade objetiva do ente público.
Dentro dos limites de uma jurisprudência que ainda não se posicionou, como devia, contrária à terceirização no setor público, o mínimo seria manter a interpretação dada pelo C. TST quando estabeleceu a regra do inciso V, da Súmula n. 331:
“V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.”
É bem verdade que, posteriormente, o Supremo Tribunal Federal deixou os terceirizados literalmente na mão ao proferir a decisão da ADC n. 16, que foi, à época, considerada uma grande “vitória” dos entes públicos, como anunciou, em nota, a Procuradoria Geral do Distrito Federal:
"A Procuradoria-Geral do Distrito Federal obteve vitória hoje à tarde, em julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, referente à Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, referente ao artigo 71, da Lei nº 8.666/93. A decisão afasta em definitivo a responsabilidade do Poder Público em relação a qualquer débito trabalhista e fiscal das empresas contratadas. Importa destacar que esta decisão implica a economia de milhões de reais para os cofres distritais, já que existem mais de 4 mil ações judiciais em quais o Distrito Federal foi condenado a arcar com dívidas de empresas que prestaram serviços ao ente federativo. A importância do tema se revela na medida em que todos os estados-membros, a União e diversos municípios se uniram à iniciativa pioneira do DF em propor a ADC."1
Aliás, foi mesmo impressionante ver a quantidade de entes públicos que participaram daquele processo na condição de “amigos” do Distrito Federal: Departamento de Trânsito do Estado do Pará; Município de Belo Horizonte, Município de Jundiaí/SP, Município de Arcoverde, Município do Rio de Janeiro, Município de São Paulo, Município de Juiz de Fora, Município de Santo André, Município de Goiânia, Município de Boa Vista, Município do Recife, Município de Belém, União Federal, Estados do Amazonas, Alagoas, Bahia, Ceará, Goiás, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Rondônia, Sergipe, São Paulo e Tocantins.
Essa situação revela o quanto os administradores estão unidos contra os “terceirizados”, pois, afinal, segundo se quer acreditar, talvez seja a concessão de direitos aos terceirizados o que trava o desenvolvimento do país, embora, como dito pelo Ministro Peluso, na mesma Ação Direta de Constitucionalidade, a terceirização no serviço público sequer possui amparo constitucional.
De todo modo, a responsabilização da Administração não tem como ser evitada, chamando-se à aplicação os artigos 932, 933 e 942 e seu parágrafo único, todos do Código Civil, dentre outros dispositivos, quando o ente público efetuar pagamentos à prestadora sem a devida fiscalização acerca do correto pagamento, por parte desta, dos direitos trabalhistas dos terceirizados, sendo certo, ainda, que os eventuais danos pessoais por estes sofridos na execução de tarefas à Administração poderão ser ressarcidos em cobranças diretas a esta, como se dá, aliás, em várias outras situações.
Ora, se o Estado é objetivamente responsável por dano que seus prepostos geram aos cidadãos, como afastar essa responsabilidade quando milhões de trabalhadores terceirizados forem deixados sem receber salários e demais direitos alimentares por omissão do Administrador em não controlar a atuação da prestadora de serviços e mesmo a sua idoneidade econômica para arcar com as obrigações trabalhistas?
Chegar a esse resultado seria o mesmo que considerar que os terceirizados não são cidadãos brasileiros, negando-lhes a incidência da Constituição Federal.
Para se ter uma ideia do alcance da responsabilidade objetiva do Estado perante os cidadãos, recentemente o Estado do Maranhão foi condenado a pagar R$33 mil de indenização por danos morais a três pessoas de uma mesma família – pai e dois filhos – por agressão verbal e física que lhes fora desferida por policiais militares na saída de um clube na Vila Maranhão, fato que ocorreu em maio de 2004. A 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça manteve a condenação de primeira instância.
Já a 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve condenação contra o Estado, que deverá pagar indenização por danos morais e materiais à esposa e ao filho (R$60 mil para cada, além de um salário mínimo por mês – a viúva receberá a pensão até a data em que o esposo completaria 65 anos e o filho, até atingir 24 anos, quando possivelmente já terá concluído os estudos superiores e estará apto a trabalhar) de um detento assassinado na penitenciária. O homem cumpria pena no Complexo Penitenciário I de Hortolândia e foi morto por outro preso da mesma cela.
De acordo com o voto do relator, desembargador Oswaldo Luiz Palu, “a partir do momento em que o indivíduo é detido, este é posto sob a guarda e responsabilidade das autoridades policiais e (ou) penitenciárias, que se obrigam pelas medidas tendentes à preservação da integridade corporal daquele, protegendo-o de eventuais violências que possam ser contra ele praticadas, seja da parte de seus próprios agentes, seja por parte de outros detentos, seja por parte de terceiros” (Apelação nº 0201335-95.2008.8.26.0000).
A 20ª Câmara Cível do TJRJ, por sua vez, condenou o Estado do Rio de Janeiro a pagar R$30 mil de indenização, por danos morais, a uma pessoa que foi atingida por uma bala perdida em março de 2007, no bairro de Bonsucesso, nas imediações da Linha Amarela.
Segundo o relator do processo, Desembargador Marco Antonio Ibrahim:
"Nos dias de hoje parece despropositado o entendimento de que, numa cidade como o Rio de Janeiro, o Estado não deva ser responsabilizado pelos diários episódios de balas perdidas que têm levado à morte e à incapacidade física milhares de cidadãos inocentes. Não se pode olvidar que, sendo a segurança um dever imposto constitucionalmente ao Estado, não há qualquer poder discricionário do administrador quanto a isso”.
Oras, não há na realidade nacional situação em que se faça joça de direitos fundamentais de modo tão sistemático quanto no caso de presos – grande parte deles sem nunca passar por julgamento – e de vítimas da violência policial. Os exemplos acima mostram como, mesmo nesses casos, não há como evitar a responsabilidade do Estado em situações para as quais a administração concorre ativa ou passivamente, sendo que no caso da terceirização o Estado não só concorre de forma ativa com o dano experimentado pelo trabalhador terceirizado, quando não são atendidos os seus direitos trabalhistas considerados como direitos fundamentais, como o faz a partir de postulados jurídicos inconstitucionais.
Conferir à administração uma abstenção plena de responsabilidade na terceirização, que nem seria possível, segundo prevê a Constituição, representa entregar aos administradores uma espécie de “licença para matar” ou uma autorização para agir sem o devido respeito ao interesse público, para favorecer a apaziguados e para se relacionar em tom de ameaça com os servidores públicos, e tudo isso sem qualquer respaldo jurídico, o que demonstra também que está cabendo justamente ao STF o papel de avalizar violações à Constituição que se destinam a diminuir os já escassos direitos dos trabalhadores.
São Paulo, 29 de março de 2017.
(*) Professor da Faculdade de Direito da USP.
(**) Graduando da Faculdade de Direito da USP e representante dos trabalhadores da USP no Conselho Universitário.
[i]. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2009, p. 195.
[ii]. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2009, p. 196.
[iii]. Canotilho e Vital Moreira, apud MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2009, p. 195.
[iv]. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2005, pp. 335-336
[v]. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2005, p. 314.
[vi]. VIANA, Márcio Túlio. O novo contrato de trabalho: teoria, prática e crítica da lei n. 9.601/98, em co-autoria com Luiz Otávio Linhares Renault e Fernanda Melazo Dias. São Paulo, LTr, 1998, p. 27,
[vii]. Décio Saes, A Formação do Estado Burguês no Brasil – 1888-1891, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1985, p. 125.
[viii]. PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Parcerias na Administração Pública São Paulo: Atlas, 1999, p. 168.
[ix] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 634.