Os marinheiros que atuam em navios de pesquisa da Universidade de São Paulo estão na iminência de perder o emprego, sob a alegação de que foram contratados de forma irregular, ou seja, sem a realização de concurso público. E a perda do emprego, inclusive, se daria sem qualquer pagamento a título de verbas rescisórias.
O curioso é que quem faz a alegação de irregularidade é, precisamente, a entidade que efetuou a contratação dos marinheiros, qual seja, a própria Universidade de São Paulo, ainda que o tenha feito por um intermediário, cujo nome, no entanto, sequer aparece nos documentos pertinentes às relações jurídicas de trabalho formadas.
Aliás, esta intermediação foi, à época, justificada pela especificidade dos serviços que seriam prestados nos navios e as dificuldades de se criarem os cargos respectivos e de se promoverem concursos públicos para o seu preenchimento.
Durante anos a Universidade conviveu com o fantasma da ilegalidade cometida, até que, subitamente, resolveu “solucionar” o problema.
Mas se há um ato ilícito cometido este, por certo, não foi obra dos marinheiros. Estes apenas aceitaram uma oferta de trabalho, destinada à realização de um serviço para o qual estavam integralmente habilitados. Uma oferta, vale frisar, feita por uma respeitada entidade pública.
Assim, por anos, realizaram seu trabalho, que não envolve nenhuma atividade ilícita.
E da execução do trabalho, nos termos previstos na Constituição Federal, decorrem direitos, os quais, inclusive, durante todos esses anos, foram integrados ao patrimônio jurídico e econômico desses trabalhadores.
A irregularidade administrativa, da ausência de concurso, foi promovida pelo ente público, que, agora, de inopino e por conveniência, tenta se colocar alheio ao fato, como se não tivesse nenhuma responsabilidade com o ocorrido.
E não só tenta fingir que não foi a real agente da irregularidade havida, como também busca criar uma situação em que tudo se desfaça de um modo que pareça nunca ter existido.
Ocorre que o trabalho prestado pelos marinheiros durante anos não tem como ser apagado da história e menos ainda é possível eliminar a própria existência dessas pessoas.
A ausência do concurso, praticada pela USP, não é o salvo-conduto para a USP tratar os marinheiros com o mesmo comportamento de alguém que troca seus sapatos velhos.
E o argumento da necessidade de rompimento da relação jurídica pela não realização de concurso perde todo sentido, diante da notícia, agora recebida, de que se pretende efetivar uma terceirização dos serviços, isto é, promover a contratação – que se daria, segundo se anuncia, sem licitação e com a suspeita da presença de elementos de fraude – de uma empresa privada, para que esta efetue o engajamento de trabalhadores para a realização dos mesmos serviços. Sequer se teria, então, um fundamento qualquer para a cessação dos vínculos, vez que se a terceirização não é um substituto da obrigatoriedade do concurso público, o recurso a ela representaria o cometimento, aí sim, de uma grave ilicitude.(*)
A USP deve, no mínimo, pagar a esses profissionais os seus direitos trabalhistas rescisórios, por serem verbas de natureza alimentar, de ordem pública e irrenunciáveis.
E não é só. A USP deve também se dignar de dialogar com essas pessoas, pedir desculpas pelo ocorrido e indenizá-las pelo prejuízo experimentado em razão da perda dos empregos, vez que autora da irregularidade que agora procura corrigir.
Fato é que no afã de corrigir irregularidades cometidas, não se pode engendrar pelo caminho da prática assumida de novas e ainda mais graves ilicitudes, desta feita afrontando, explicitamente, Direitos Humanos e Sociais.
São Paulo, 31 de outubro de 2023.
(*) Parágrafo acrescido às 15h35, do dia 31/10.