Sem ter visto Pelé jogar, embora tivesse assistido, sem muita capacidade de atenção e de retenção, a Copa de 70, fui apresentado à bola aos 6 anos de idade – ao menos até onde a memória me permite lembrar.
De lá para cá, mais de 50 anos se passaram e eu nunca parei de jogar futebol, sendo que, em alguns anos, até o fiz profissionalmente. Também nunca deixei de assistir partidas de futebol nos estádios e, sobretudo, pela TV. Sendo fascinado pelo esporte e tendo me mudado muito de cidade, acabei, inclusive, arranjando um jeito de ter um time para torcer no local onde residia. Assim, fui (e ainda sou) Cruzeiro, pelo tempo que morei em BH; Flamengo, na época do Rio de Janeiro; e Corinthians, no período paulistano – que vem desde 1989 até hoje.
Durante todos esses anos, vi milhares de jogos e jogadores de diversos tipos, tamanhos, cores, nacionalidades e habilidades e todos, evidentemente, queriam ser os melhores. Para aprimorar a performance era (e sempre será) comum mirar-se nos ídolos e de um modo tão intenso que chegava até a apropriação de seus nomes: “lá vai o Zico, dizia eu, pretensiosamente”!
O que quero dizer é que nunca vi alguém se arvorar em querer ser ou mesmo se comparar de algum modo ao Pelé. Ninguém dizia “lá vai o Pelé”, narrando a própria jogada, ainda que, de vez em quando, em situações raras, quando alguém errava o lance e a emenda saía bem melhor que o soneto, se ouvia ao fundo, “nossa, que jogada de Pelé”! Esta glória, de todo modo, costumava não durar muito, pois logo na sequência os “deuses” do futebol tratavam de colocar as coisas no seu devido lugar ao final da jogada; e o veredicto que quase sempre resultava era: “puxa, começou como Pelé e terminou como mané!” (sem qualquer referência ao Mané Garrincha, obviamente)
Fato é que sempre me pareceu que entre aqueles que jogam futebol, seja por farra, seja por prazer ou como profissão, Pelé nunca foi um alvo a ser perseguido, isto porque os seus feitos sequer podiam ser imitados. Muitos até conseguiram repetir algumas de suas potencialidades: Zico e Marcelinho carioca, nas faltas; Reinaldo e Ronaldinho, na habilidade; Ronaldo Fenômeno e Careca, nas arrancadas; Baltazar e Leivinha, nas cabeçadas; Sócrates, na visão periférica e rapidez de pensamento; Falcão, na armação de jogadas; Romário, no oportunismo; Rivelino, Nelinho e Éder, na potência dos chutes; Rondinelli, na “raça”; Adriano imperador e Hulk, na força física…
Pois é: seria preciso unir muitos craques de muitas épocas para se fazer um Pelé!
É certo que, no fundo, todos tentavam reproduzir o Pelé em ao menos uma de suas qualidades, mas imitar o Pelé mesmo, na sua inteireza, não era mesmo um desafio muito inteligente a se propor, pois, inevitavelmente, restaria sempre a plena frustração – que não faz bem ao esportista, como se sabe.
É importante que se reconheça que alguns (bem poucos) até conseguiram se aproximar e até a se igualar com Pelé em algumas dessas potencialidades, como se viu com a genialidade de Mané Garrincha e com os craques argentinos Maradona e Messi. Mas a totalidade não se atingiu e acho até que nem nunca foi tentada.
Parece, inclusive, que dificilmente voltará a existir outro Pelé, seja porque o futebol passou a ser regido pela racionalidade produtiva da especialização e da disciplina tática, seja porque, na verdade, o que aquele ser humano praticava era um esporte que ainda não foi inventado!
Esta constatação nos obriga ir além.
Ora, a comoção mundial que sua morte gerou foi extremamente emocionante, merecida e linda, mas se lembrarmos que fora dos gramados Edson era apenas mais um ser humano, com todos os seus erros e acertos, o que se tem por efeito é que esta reação mundial em torno de uma pessoa nos obriga a projetar e até nos permite vislumbrar a viabilidade de conceber uma sociedade mundial que ainda não foi inventada, uma sociedade em que a vida de cada ser humano seja potencializada e celebrada.
Esta conclusão, ademais, conforta e estimula, pois se o que o Pelé fazia era jogar futebol, grande parte da população mundial jamais sequer teria entrado em campo, fazendo com que uma boa parte de suas vidas perdesse sentido; mas se o que se extrai dessa apoteótica história é a verificação do quanto um ser humano pode fazer pela humanidade e do quanto os seres humanos e suas instituições são capazes de reverenciar uma pessoa, então temos, todos, uma história para dar continuidade e muito trabalho a fazer, na construção de uma sociedade em que a celebração de cada vida humana seja uma regra, como, ademais, preconizou, em algumas passagens, o nosso homenageado!
Obrigado, Edson Arantes do Nascimento!
São Paulo, 30 de dezembro de 2022.