Não me importa aqui, caro Nélson, o fato de lhe ter como uma espécie de ídolo no esporte, tendo acompanhado os seus passos, quilômetro por quilômetro, desde a sua primeira participação na F1, em 30 de julho de 1978 (poucos dias após o lançamento do Movimento Negro Unificado - MNU, que ocorreu em 7 de julho de 1978). Não me importam, igualmente, as suas opções ideológicas e políticas. E, muito menos, me move o interesse de lhe direcionar uma crítica que possa engrossar qualquer tipo de campanha de destruição de sua imagem.
Tendo tido contato há alguns anos com vários estudos sobre as questões raciais na realidade brasileira e ocupando o cargo de professor de Direito do Trabalho em uma universidade pública, vejo-me, no entanto, compelido a tratar publicamente do assunto, no sentido de tentar contribuir de algum modo na compreensão dos fatos, notadamente no aspecto da avaliação para afirmar se teria havia, ou não, no caso concreto, uma expressão de racismo. Não se trata, pois, de um julgamento, voltado a condenação ou absolvição.
O racismo não se resume a uma discriminação pela cor da pele. Perfaz-se por ações concretas, ligadas ao rebaixamento em questão.
Toda expressão de racismo tem efeito concreto e estrutural.
No caso do Brasil, o racismo se consolidou pela força, com muita violência explícita, portanto. Mas esta violência foi (e ainda é) constantemente negada pela utilização reiterada de simbologias que, tendo à vista o fato de que a escravidão foi estruturante da nossa sociedade (e não unicamente um grandioso empreendimento comercial e condição de dominação, como vislumbrado pelas grandes potências nos séculos de transição do feudalismo para o capitalismo), procuraram reduzir (ou até eliminar) o sentimento de culpa do escravista. Para que uma sociedade se estruturasse na escravidão em um mundo que se anunciava, primeiro, humanista e racional e, depois, também liberal, seria preciso criar mecanismos de pensamento que conduzisse as atrocidades da escravidão ao plano de uma naturalidade quase poética.
É assim, por exemplo, que, para além das teorias raciais, que forneciam a convicção em torno da negação da condição humana da população negra africana, desenvolveu-se, no Brasil, a noção de “favor”, segundo a qual quem escraviza faz um favor ao escravizado, dado o seu estado de extrema necessidade e se concebeu, também, a ideia de “democracia racial”, pela qual se busca fazer crer que houve um processo de acolhimento pacífico, fraternal e integrativo dos escravizados, sobretudo das escravizadas, junto às famílias dos senhores de escravos e na sociedade em geral.
Fruto dessa estratégia de autoproteção, a escravidão foi, no Brasil, deixada em estado de esquecimento, até ser banida de vez da consciência com a publicação de uma lei (a Lei Áurea). Era como se não fosse o que efetivamente era. E deixou de existir, sem que, concretamente, tivesse deixado.
Mas nem as estruturas escravistas foram de fato rompidas, nem as estátuas e homenagens removidas e menos ainda se abandonou por completo a racionalidade escravista, baseada em racismo.
Uma das formas recorrentemente utilizada para manter vigente a racionalidade escravista é a da negação da existência do racismo na sociedade brasileira, enquanto a cultura escravista se reproduz de forma velada e reiterada, gerando efeitos concretos, dentro do propósito, nem tão velado assim, de assegurar o rebaixamento social e humano das pessoas ex-escravizadas, em benefício da “supremacia” branca.
É dentro deste mecanismo que convivemos (e até repercutimos diariamente), há décadas, com fórmulas concretas de violência contra as pessoas negras e ou não percebemos isto ou se percebemos (ou somos induzidos a perceber) temos a tendência de reduzir a importância do ocorrido.
Estas fórmulas são múltiplas. Estão em expressões (“peça rara”; “pecinha”; “a coisa tá preta”; “boçal”; “meia tigela”; “a dar com pau”; “mulata”; “denegrir”; “preto de alma branca”, “escravo”, no lugar de “escravizado”; “negro de primeira linha”(1) etc. ou seus contrários, como “passou em branco”; “vocês que são brancos que se entendam” etc.) em piadas, gestos, atos (muitas vezes “falhos”) e olhares.
Considerando toda a história de sofrimento da população negra no país (que seria impossível aqui relatar por completo), é por demais importante compreender que a cada vez que uma dessas fórmulas é utilizada há um efeito concreto de reafirmação da estrutura escravista, de rebaixamento da população negra e, por certo, um sofrimento de todos aqueles que são atingidos.
Muitos dirão que nunca tiveram conhecimento de que estas expressões ou piadas etc. possuem esta conotação.
No entanto, é difícil admitir que uma pessoa branca que vive no Brasil e, sobretudo, uma pessoa branca nascida no Brasil, não tenha tido o conhecimento desta realidade e da origem e o propósito destas fórmulas (e de tantas outras).
De todo modo, mesmo que assim não fosse, não seria apropriado isentá-la de culpa pelo uso das expressões, pois se não conhece deveria ter procurado conhecer. Este desconhecimento, por consequentemente, resulta mais de uma omissão dolosa (ou seja, intencional) do que de um acaso ou de uma posição de vítima das circunstâncias.
A questão não se mede apenas pela intenção daquele que se expressa. Ao assim se pensar, tem-se, mais uma vez, a manifestação do racismo, pois não são só as pessoas brancas os sujeitos dessa história. A situação diz respeito, antes de tudo, à população negra, ou, mais precisamente, a como ela se sente diante dessas fórmulas que romantizam, naturalizam e até banalizam o seu sofrimento histórico.
E ainda quem as utilize diga, em sua defesa, que não conhecia a origem da expressão empregada, por exemplo, quando segue na defesa e diz que não vê um racismo na situação, acaba perdendo o beneplácito da ignorância. Ao agir desta maneira, passa à posição de quem, de forma convicta, está disposto, ao menos, a contribuir com a violência histórica, estrutural e ainda cotidiana que se dirige à população negra.
Em um país em que o racismo é tão arraigado e velado como é o Brasil, alguém chamar outra pessoa de “neguinho” é algo que pode acontecer e acontece de forma recorrente. Esta recorrência, no entanto, não torna o fato normal e isento de violência. Concretamente, esta situação diz mais sobre a tragédia brasileira do que sobre a nossa alardeada “democracia racial”, que, de fato, nunca existiu.
Em um país baseado em um escravismo tão entranhado como é o Brasil, todas as pessoas brancas, que não querem conhecer a história e se recusam a compreender a realidade em que vive a população negra, tendem a reproduzir o racismo. Mas o problema é maior quando, advertidas a respeito do conteúdo da fala ou do gesto, tentam esvaziar o conteúdo ofensivo da fórmula utilizada, naturalizando-o.
Diante do uso de uma expressão racista, o mínimo que se espera do ofensor é que, além de se desculpar, também reconheça o erro. E isto ainda mais se exige de pessoas que são referências para tantas outras, pois sua atitude pode ser, por assim dizer, educativa.
“Neguinho” é, por certo, uma palavra que historicamente tem integrado este rol de violência não apenas verbal, mas também estrutural e física, que se comete contra a população negra e, inegavelmente, a sua utilização, direcionada ao piloto, Lewis Hamilton, para menosprezar a sua capacidade técnica e até mesmo rebaixar a sua condição de ser humano, representou uma nítida expressão de racismo.
Seria, pois, muito didático e contributivo para o necessário processo de reparação e de construção de uma sociedade efetivamente não racista que V. Sa., em vez de vir a público para dizer, “não fiz nada de errado”(2), acenasse com o gesto aparentemente simples de reconhecer o erro, admitindo, ao mesmo tempo, que é uma expressão de racismo tentar negar mérito ou a condição igualitária de uma pessoa negra chamando-a não pelo nome mas por “neguinho”.
São Paulo, 08 de julho de 2022.