Giovanna Magalhães Souto Maior(**)
Hoje é dia de relembrar a luta daquelas que, antes de nós, denunciaram a estrutura machista e racista que sustenta o capitalismo.
No contexto da rememoração dessas lutas, impossível não pensar sobre o PL apresentado recentemente pelo governo, que trata da (des)proteção trabalhista para as trabalhadoras e os trabalhadores selecionados e contratados por empresas multinacionais que operam seu negócio por meio de plataformas digitais. Trata-se de uma questão central no mundo do trabalho, não apenas porque envolve grande contingente de pessoas, pelo menos 1,5 milhão (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38160-em-2022-1-5-milhao-de-pessoas-trabalharam-por-meio-de-aplicativos-de-servicos-no-pais), mas porque diz com uma forma precarizada de exploração de trabalho, que tem se expandido para outras atividades. Já há plataformas para a contratação de professoras, médicas e outras trabalhadoras em atividades predominantemente femininas.
Em estudo feito a partir de entrevista com motoristas mulheres, no final do ano de 2019, as pesquisadoras constataram que a busca por esse trabalho está relacionada ao desespero de ver-se desempregada e à necessidade de dar conta da sobrevivência familiar. Revela, ainda, que elas trabalham com medo e, por isso, evitam realizar as atividades à noite. Também têm dificuldade para realizar jornadas mais extensas, pois dão conta do cuidado com filhos, com idosos e com a casa. Em razão disso, a pesquisa aponta a existência de uma hierarquia que naturaliza a desigualdade nessa atividade, pois “quanto maior o número de corridas feitas pelo motorista e boas avaliações recebidas dos usuários, maiores os ganhos financeiros e os privilégios concedidos pela empresa”. . (https://www.scielo.br/j/cebape/a/LTLQsXQT38Czwjjyt6933XH/?format=pdf&lang=pt#:~:text=Apesar%20disso%2C%20esse%20ambiente%20de,mulheres%20(Uber%2C%202020).)
As mulheres, portanto, são prejudicadas pela “dificuldade de realização de maior quantidade de corridas, restringidas pela dupla jornada de trabalho e, principalmente, pelo medo de dirigir em determinados locais e horários, devido à falta de segurança”. Estão bem mais sujeitas a “notas baixas/ruins exclusivamente pelo fato de serem mulheres”. Nesse sentido, as autoras apontam que as diretrizes inscritas nos aplicativos potencializam a discriminação de gênero, e, portanto, aprofundam a violência simbólica da estrutura patriarcal e machista da sociedade brasileira.
Nenhuma novidade!
Em uma audiência, no Fórum Trabalhista de Porto Alegre/RS, de um processo no qual a motorista pedia vínculo com a UBER, constatou-se que a trabalhadora havia tido seu cadastro suspenso, em razão da reclamação de um usuário, sobre o fato de ter feito a corrida enquanto a filha pequena também estava no veículo. O argumento da empresa era o de que a trabalhadora sabia da impossibilidade de levar sua filha junto para o trabalho.
Bem se vê, por conseguinte, que a denominada “autônoma” não pôde sequer utilizar o próprio veículo para manter consigo, sob os seus cuidados, a sua filha, enquanto prestava o serviço. Quando foi ouvida na audiência trabalhista, a trabalhadora referiu que, naquele dia, a outra mulher que a auxiliava no cuidado com a filha havia faltado. Como ela não podia deixar de trabalhar, pois isso comprometeria sua renda mensal, não teve escolha, precisou levar consigo a menina. Mas, por conta disso, acabou perdendo o trabalho.
Pois bem, nenhuma das aflições e necessidades da mulher motorista está refletida no PL apresentado pelo governo.
Além da linguagem exclusivamente masculina, não há uma linha sequer sobre a condição das mulheres nesse tipo de atividade. Ao contrário, ao permitir que essas trabalhadoras permaneçam até 12h em trânsito (veja que isso sequer inclui o tempo de espera pela nova corrida e de deslocamento para a casa), o que o projeto faz, concretamente, é acentuar ainda mais a violência de gênero nessa atividade. Se, como sabemos, as mulheres despedem pelo menos 9,6 horas a mais por semana com atividades de cuidado, do que os homens (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37621-em-2022-mulheres-dedicaram-9-6-horas-por-semana-a-mais-do-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas) não é difícil imaginar o que significa o regime inconstitucional de trabalho que o PL propõe. Além de se constituir um “legítimo” instrumento de exclusão e de discriminação da mulher do mercado de trabalho.
E não se trata de uma pauta exclusivamente feminina. Nem de um projeto que afeta apenas as mulheres. A questão é que, ao admitir a espoliação do trabalho fora dos parâmetros constitucionais e trabalhistas de proteção social, o governo atua para tornar a vida de todas as pessoas que dependem do trabalho ainda mais difícil.
Afeta a todas as pessoas, sem exceção.
De todo modo, essa é uma questão importante para as causas feministas. Algo que hoje precisa estar em nossos discursos, pois de nada adianta subir a rampa com representantes da diversidade, fomentar projetos que reconhecem a condição das mulheres nos diferentes ambientes sociais, e precarizar justamente as condições de trabalho, sabendo-se que as trabalhadoras e trabalhadores dependem da venda da sua força de trabalho em troca de capital para sobreviver.
O tempo em que trabalhamos é tempo no qual não convivemos com nossa família, nossos afetos. É tempo em que não estudamos; não prestamos atenção no clima, na comunidade, no ambiente em que estamos inseridas.
Permitir que alguém permaneça trabalhando por 12 horas implica - se for um homem - sobrecarregar as mulheres que viabilizam seu trabalho (suas companheiras, mães, irmãs, filhas). Permitir que alguém permaneça trabalhando por 12 horas implica, se for mulher, exaurir as forças físicas e psíquicas dessa trabalhadora, que, sobretudo se computarmos os intervalos, o tempo que demandará para voltar para a casa e aquele que será dedicado às atividades de cuidado, a impede concretamente de existir de forma minimamente decente.
E tudo isso interfere no convívio social. Produz pessoas cansadas, irritadas e desconectadas com as pautas públicas, inclusive com aquelas que dizem diretamente com a sobrevivência humana, tal como a grave crise ambiental com a qual estamos convivendo.
Trabalho sem vínculo é trabalho precário e a precariedade do trabalho causa enormes danos àquelas e àqueles que não têm outra escolha se não a de se submeterem às condições que lhes são oferecidas, pois, repita-se, necessitam da venda de trabalho para sobreviver.
Quando uma atividade como a de motorista é considerada “autônoma”, o que se produz, concretamente, é a aflição constante com a possibilidade de adoecer (e não ter remuneração), de estragar o carro ou de se perceber em alguma condição que impeça a obtenção do salário.
E tudo isso está estreitamente ligado à violência de gênero.
Uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará, em parceria com o Instituto Maria da Penha, realizada em 9 capitais do nordeste, em 2017, revelou que 48% das mulheres ouvidas eram alvo de violência doméstica. Elas se declararam estressadas e infelizes. Relataram dificuldade para dormir, sensação constante de insegurança e problemas de concentração e relacionaram essa condição com a precariedade do trabalho (https://www.esquerdadiario.com.br/Violencia-domestica-e-o-mercado-de-trabalho).
Outro estudo da UFES deixa explícita a relação entre desemprego masculino e violência doméstica (https://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439792598_ARQUIVO_AlexeBeatrizANPUH2015.pdf). Homens exaustos e desvalorizados em seu ambiente de trabalho estão muito mais sujeitos a promover violência moral e física dentro de suas casas. O estresse é um dos fatores emocionais que, apoiado em uma cultura machista na qual nossos meninos crescem sob o imperativo da violência, como insistem Bell Hooks e Rita Segato, desencadeia atitudes agressivas.
Essas situações são muito graves. É apostar num convívio social adoecido, estressado, alienado, discriminatório e violento com relação, sobretudo, às mulheres.
O Direito do Trabalho é o resultado da compreensão sobre a impossibilidade de deixar trabalhadoras e trabalhadores sem amparo social, diante da força de quem detém o capital. Não apenas para que eles e elas possam consumir. Não apenas para que consigam ter um mínimo de previsibilidade na vida. Também porque o emprego protegido, em uma sociedade como a nossa, é condição de possibilidade para todo o resto: estudar, ter ambiente familiar saudável ou engajamento coletivo, por exemplo.
Ao assumir a responsabilidade por “harmonizar os interesses em luta”, o Estado brasileiro reconheceu a ausência de neutralidade na atuação diante das perturbações sociais. A construção de direitos previdenciários e trabalhistas constitui, portanto, uma mudança profunda no discurso do Direito e não se justificou em razão da industrialização. Justificou-se pela necessidade de dar sentido à regulação social. Afinal, somos seres racionais. De que serve construir uma sociabilidade que gera sofrimento e violência?
Como seguir afirmando que a ordem jurídico-social é para todas as pessoas, se a maioria dela, porque depende do salário para sobreviver, é levada à exaustão, interditada em relação às possibilidades de consumo, sujeita à violência da precariedade do trabalho ou mesmo da impossibilidade de obtê-lo?
Em 2024, nada disso mudou. Novas tecnologias para a extração do trabalho, como é o caso das plataformas digitais, não afetam o fato de que seguimos tendo de trabalhar para sobreviver; fazendo-o, em regra, para quem detém o capital e aufere lucro com nossa força de trabalho.
Também não alterou o fato de que as mulheres têm os piores empregos e os piores salários, especialmente as mulheres racializadas. Nem conseguimos mudar a estrutura social, pela qual o trabalho reprodutivo segue sendo tarefa predominantemente feminina e invisibilizada.
Então, quando o governo propõe um texto de lei que admite a exploração do trabalho subordinado sem direitos trabalhistas e, principalmente, desconsidera as necessidades estruturalmente impostas às mulheres, o que faz, além de contribuir para uma espécie de retorno ao passado, é promover uma sociedade precária, estressada, adoecida e sem condições de pensar o mundo a sua volta. Com isso, também reforça e “legitima” toda a violência que se direciona, cotidianamente, às mulheres trabalhadoras.
A propósito, são várias as normas trabalhistas historicamente conquistadas pelas lutas das trabalhadoras, para minimizar o peso que a sociedade capitalista machista tomba seus ombros, até mesmo com o propósito de excluí-las do mercado de trabalho. Normas que são essenciais para viabilizar o trabalho, tal como aquelas que constam dos artigos 389 e 400 da CLT:
“§ 1º, art. 389, CLT - Os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos 30 (trinta) mulheres com mais de 16 (dezesseis) anos de idade terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e assistência os seus filhos no período da amamentação.”
“Art. 400, CLT - Os locais destinados à guarda dos filhos das operárias durante o período da amamentação deverão possuir, no mínimo, um berçário, uma saleta de amamentação, uma cozinha dietética e uma instalação sanitária.”
O PL silencia sobre isso, assim como nada refere acerca das garantias de licença à gestante e de manutenção provisória no emprego, após o nascimento do bebê. Nesse aspecto, da defesa de uma gestação saudável, exige-se, inclusive, que também ao pai sejam garantidos iguais direitos, para que partilhem dos deveres e obrigações parentais.
O silêncio com relação a esses direitos, conquistados a duras penas pelas trabalhadoras brasileiras, e a desconsideração de todas as questões que dizem respeito à inclusão e à não discriminação das mulheres no mercado de tabalho, diz muito sobre o retrocesso social que o PL busca impor e sobre o machismo em que se fundamenta.
(*) Professora de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UFRGS.
(**) Doutoranda em Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da USP.