“Nosso suor sagrado
É bem mais belo
Que esse sangue amargo”
(Tempo Perdido – Legião Urbana)
1. Introdução
Da reiterada análise do contexto do advento da Lei nº 13.467/17 dois aspectos sempre ressaltam:
1) o tempo recorde em que se deu a aprovação de uma lei que tenta alterar profundamente as relações de trabalho no Brasil e o próprio modo de ser social;
2) o tempo perdido pela classe trabalhadora, que não foi capaz de compreender o que estava acontecendo e não reagiu à altura do tamanho da ofensiva que lhe fora desferida.
E quando se chega ao momento da inserção da Lei no mundo jurídico, quando se vislumbra a sua aplicação em concreto, esses dois problemas geram ao menos duas repercussões que são decisivas:
2) ao se deparar com o conteúdo integral da Lei, a classe trabalhadora se surpreende e tenta recuperar o tempo perdido, mas não sabe exatamente como agir, dado que durante as últimas décadas priorizou a ação burocrática, que a faz acreditar que as perversidades da Lei serão revertidas por atuação de uma plêiade no campo jurídico ou na arena do jogo político institucional, pelo qual se cogita a recuperação da contribuição sindical, como concessão do próprio governo que promoveu o desmonte trabalhista, ou a reversão do quadro nas eleições de 2018.
Esse modo de encarar a situação, dentro da emergência do fato consumado, tem feito com que as pessoas, em geral, se esqueçam da origem da Lei nº 13.467/17, que foi, concretamente, uma imposição antidemocrática, impulsionada pela força do poder econômico e da grande mídia.
Esse esquecimento é muito grave porque no afã de buscar interpretações que impeçam as destruições de direitos preconizadas na Lei ou de projetar paliativos por meio de conciliações com os promotores do desmonte ou pelas vias eleitorais futuras, tende-se a naturalizar a quebra das instituições democráticas, além de estimular uma postura dissimulada, negando-se aquilo que se sabe, mas que não pode ser admitido para que não se tenha que levar às consequências necessárias o resultado da apreensão do conhecimento.
Essa forma de raciocínio pragmático, sem base empírica, que não passa de uma preocupação consigo mesmo, mas que não possui uma solução concreta, projetada e programada, produz irracionalidades e estimula a luta de todos contra todos, que foi, ademais, o que nos trouxe até aqui; a um momento extremamente perigoso em que, estimuladas pelas atuações individualistas, mas assombradas pelo medo (do presente e do futuro), muitas pessoas passam a considerar que a solução dos seus problemas, de forma contraditória, não está no exercício de seu esforço próprio, mas na eliminação das possibilidades do esforço alheio, que lhes seria garantido por atuação de um governo autoritário.
Ora, se o poder econômico, que dita as regras do jogo no capitalismo, se valeu expressamente desse expediente, que está refletido no processo de ruptura democrática do qual tem origem a Lei nº 13.467/17 e também no próprio conteúdo da Lei, que tenta pôr a classe trabalhadora de joelhos perante o capital, por que os cidadãos, premidos pela sobrevivência, se veriam comprometidos com a lógica democrática, com os respeito aos direitos civis, os Direitos Humanos, e com o princípio da solidariedade que embasa os Direitos Sociais? Isso, aliás, está refletido na pesquisa “Medo da Violência e Autoritarismo no Brasil”, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Datafolha, publicada no Jornal Folha de S. Paulo, edição de 06/10/16, no qual se destaca um aumento do desprezo à agenda de direitos. A ausência de políticas públicas, no que se refere à efetivação de direitos sociais e redução das desigualdades sociais, faz aumentar a violência urbana e o aumento desta diminui a adesão da população à agenda da efetivação de direitos sociais, retroalimentando a violência.
A Lei nº 13.467/17 não é, portanto, apenas uma lei que tenta “modernizar” as relações de trabalho. É um ato de poder, que reforça toda essa lógica antidemocrática e irracional, para favorecer os interesses econômicos no aspecto da facilitação de uma maior exploração do trabalho, potencializado as taxas de lucro de investidores estrangeiros.
No que se refere ao tempo de trabalho, por exemplo, os termos da Lei nº 13.467/17 buscam, cirurgicamente, facilitar seu aumento, eliminando a compensação remuneratória adicional e afastando as obrigações sociais, em detrimento do projeto de Seguridade Social.
2. O dever de aplicar a Lei nº 13.467/17: como?
Falemos, então, especificamente, dos trechos da Lei nº 13.467/17, que se referem ao tempo de trabalho, mas não sem antes fazer a advertência de que é completamente despropositada a pressão, desenvolvida pela grande mídia, sobre os juízes para que apliquem a dita lei, irrefletidamente, tal qual está estabelecida.
Acho que quem diz isso não leu a lei. E é muito provável mesmo que a maioria das pessoas que defende a tal “reforma” trabalhista não saiba exatamente o que consta na Lei nº 13.467/17.
Ademais, essas mesmas vozes que hoje cobram a aplicação dessa lei não cobram e não cobravam a aplicação literal da Constituição Federal, assim como não cobravam a aplicação integral e efetiva da CLT pelos juízes do trabalho.
Diante dessa pressão seletiva, a pergunta básica a fazer é: aplicar como?
Ora, não é uma tarefa simples, considerando-se a condição humana e o estágio da evolução do raciocínio, aplicar uma lei que sugere a existência de um tal trabalhador autônomo que presta serviços de forma contínua e com exclusividade e trata do empregado que atua de forma descontínua e sem exclusividade?
Uma lei que é contrária à CLT, mas que tenta enxertar seus anti-valores na própria CLT, cujas normas, ainda em vigor, se contrapõem a vários dispositivos da lei. Uma lei que desdiz a Constituição, mas que prevê que as normas constitucionais devem ser respeitadas; que tenta atrair a noção privatista de negócio jurídico do Código Civil, mas que, sem eliminar o Direito do Trabalho, precisa conviver com os princípios do Direito do Trabalho e demais normas de Direitos Humanos.
Uma lei que traz vários dispositivos que tentam reduzir direitos dos trabalhadores, incentivar formas precárias de contratação, possibilitar o aumento sem limites da jornada de trabalho sem sequer o pagamento do adicional correspondente, abrir espaço para ajustes individuais de trabalho e ampliar o poder do capital sobre os trabalhadores, mas que, ao mesmo tempo, foi sustentada nos argumentos de que veio para aumentar o poder dos sindicatos, ampliar empregos, não reduzir direitos, e preservar as garantias constitucionais...
Uma lei que, reitere-se, foi forjada a quatro paredes com a participação exclusiva de representantes do grande capital e que só foi aprovada em razão do regime de ruptura democrática vivenciado no país.
Uma lei que, portanto, sequer merece o status jurídico de “lei”, pois a lei, em um Estado Democrático de Direito, não é o mero resultado da imposição, pela força, dos interesses de um setor específico da sociedade, e que muito menos pode ser considerada uma lei trabalhista, vez que esta pressupõe a participação da classe trabalhadora no processo político de sua elaboração, conforme estabelecido desde a criação da OIT, em 1919.
Trata-se, pois, de um arremedo jurídico que deve ser rejeitado, como resultado de uma atuação que efetive, em respeito às garantias constitucionais conferidas aos cidadãos e, sobretudo, aos cidadãos integrados à classe trabalhadora, pelos poderes que foram instituídos exatamente para, em nome do Estado de Direito, impedir que a vida social fosse ditada direta e exclusivamente pelos detentores do capital, sendo que essa rejeição também deve se dar pela atuação política dos diretamente interessados, como reflexo do exercício do poder democrático que a Constituição lhes garante.
De todo modo, ainda que se abstraia tudo isso, ou seja, ainda que se queira fazer vistas grossas a todos os graves problemas que se integram à aprovação da Lei nº 13.467/17, como dito, aplicar a Lei em questão, no sentido de se atingir o objetivo não declarado de se reduzirem direitos trabalhistas, é uma tarefa irrealizável.
Senão vejamos, analisando os dispositivos ligados ao tempo de trabalho.
3. Artifícios para a extensão da jornada de trabalho
A Lei, como dito, tenta ampliar as possibilidades de extensão da jornada de trabalho e se utiliza do incentivo à negociação coletiva para tanto, mas sempre de modo a não revelar a sua verdadeira intenção, o que lhe faz cair em constantes contradições.
No artigo 611-A, a Lei tenta estimular a negociação coletiva, prevendo hipóteses em que o negociado, inclusive, prevalecerá sobre o legislado. Mas, para fingir que mantém a lógica protetiva, típica do Direito do Trabalho, estabelece no art. 611-B, situações que não poderiam ser alvo de negociação coletiva, consideradas, inclusive, como “objeto ilícito”. Dentre as situações impossibilitadas de integrarem o negociado estão as que se relacionem com as “normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho” (inciso XVIII).
O legislador, no entanto, logo percebe o que fez, vez que essa previsão impediria negociações para extensão da jornada, e tenta corrigir o “erro”, dizendo, no parágrafo único do mesmo artigo que “Regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo”.
É evidente que o legislador com isso só consegue cair no ridículo, porque, por mais que tenha considerado que tinha o poder absoluto para ditar regras, não lhe teria sido permitido, por óbvio, negar toda a compreensão histórica que se integrou à experiência da humanidade no sentido de que a limitação da jornada é, antes de tudo, uma questão de ordem pública diretamente ligada à preservação da saúde, da higiene e da segurança no trabalho, sabendo-se, como se sabe, que o maior número de acidentes de trabalho ocorrem nos momentos em que os trabalhadores, já cansados, estão em atividade de hora extra.
Ou seja, o legislador disse que, por lei, o redondo não seria mais redondo e sim quadrado, mas a realidade científica e cultural não se altera por ato autoritário, ainda que expresso em uma lei.
Assim, por mais que se queira que os juízes apliquem literalmente a lei, esse dispositivo não tem a mínima chance de ser aplicado, vez que contraria a inteligência humana e mesmo aqueles que consideram que o juiz é um “escravo da lei” não podem lhe negar a condição humana.
Aliás, o 611-A, pelo qual se tenta admitir que a jornada de trabalho seja estendida, autorizando que o negociado prevaleça sobre a lei, diz que nas convenções e nos acordos pode ser firmado “pacto quanto à jornada de trabalho”, mas “desde observados os limites constitucionais” (inciso I), o que representa dizer que o negociado não tem prevalência sobre o legislado (ou o “constitucionalizado”).
Ou seja, o que está dito no próprio dispositivo que preconiza o negociado sobre o legislado é que a lei prevalece sobre o negociado, até porque todo o regramento em questão está fixado na lei. Vai entender...
A questão aqui, portanto, não é sequer a da interpretação da lei, mas a do sentido da norma constitucional, a qual o legislador, quando estabeleceu o banco de horas anual, inclusive por ajuste individual (§ 5º do art. 59: “O banco de horas de que trata o § 2º deste artigo poderá ser pactuado por acordo individual escrito, desde que a compensação ocorra no período máximo de seis meses”), a compensação por acordo individual (§ 6º do art. 59: “É lícito o regime de compensação de jornada estabelecido por acordo individual, tácito ou escrito, para a compensação no mesmo mês”) e jornada de 12 horas (art. 59-A), não leu na forma por ele mesmo preconizada, qual seja, a do atendimento à literalidade.
Cumpre, portanto, reler o que diz a Constituição, em seu art. 7º, inciso XIII:
“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;”
Ora, o que está dito, de forma muito clara na norma é que se confere ao acordo ou convenção coletiva a faculdade de se estabelecer uma compensação de “horários” e uma “redução da jornada”.
Atendendo ao pressuposto da literalidade da norma, não se concebe, pois, que os limites de 8 horas diárias e 44 horas semanais sejam aumentados por meio de negociação, e esses limites constitucionais devem ser observados, conforme prevê a própria Lei.
Além disso, a extrapolação da jornada normal, segundo estabelece a Constituição, só é possível de maneira excepcional. Para a Constituição não existe o instituto das “horas extras”, como se pode extrair do teor literal do inciso XVI: “remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal”. Ou seja, só se permite o trabalho além da jornada normal de forma extraordinária, e não podia ser diferente, já que a Constituição assegurou a limitação da jornada de trabalho como direito fundamental, o qual, evidentemente, não está sujeita a monetização, como indução da própria lei.
As horas extras habitualmente prestadas configuram ato ilícito, gerando o direito ao empregado a uma reparação por danos pessoais, como forma, também, de punir o empregador pela prática ilícita que lhe traz vantagem econômica e danos sociais graves em razão das doenças do trabalho provocadas. O pagamento do adicional de 50%, para as horas extras somente tem sentido quando estas são realizadas de forma extraordinária. Quando as horas extras se tornam ordinárias deixa-se o campo da normalidade normativa para se adentrar o campo da ilegalidade e, neste sentido, apenas o pagamento do adicional não é suficiente para corrigir o desrespeito à ordem jurídica.
Esse serviço extraordinário, ademais, está limitado a duas horas diárias, conforme fixado no art. 59 da CLT: "A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho" (art. 59, da CLT).
As horas trabalhadas além desse limite, não são, portanto, tecnicamente, horas extras. Representam também uma ilicitude. Um ataque a uma norma de ordem pública, pois ligada à preservação da saúde do trabalhador e à estruturação geral do mercado produtivo, interferindo na lógica da livre concorrência capitalista, nos direitos do consumidor e na política nacional pela busca do pleno emprego. Lembre-se que o Código Penal, por intermédio de seu art. 149, conforme redação que lhe fora dada pela Lei nº 10.803/03, define como "crime contra a liberdade pessoal", reduzir alguém a condição análoga à de escravo, entendendo-se como tal o exercício do trabalho em "jornada exaustiva".
Mas, como se estava dizendo, o legislador se preocupou mesmo em tentar permitir a elevação da jornada de trabalho, tanto que elencou outras supostas possibilidades de majoração no mesmo art. 611-A, no que se refere a: “II – banco de horas anual”; “III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas”; “XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho”; interferindo até mesmo na formas de controle da jornada: “X – modalidade de registro de jornada de trabalho”.
4. A inaplicabilidade do banco de horas
Quanto ao banco de horas, pelo qual se tenta permitir uma espécie de compensação anual, sem um padrão de condutas, ou seja, sem se saber quando e como, a cada dia, será efetivado, deve-se reconhecer que este não está autorizado constitucionalmente, como demonstrado, e, portanto, por aplicação da própria Lei nº 13.467/17, não tem valor jurídico.
De todo modo, pensando-se a situação no contexto da lógica de preservação de empregos, o banco de horas só teria algum sentido se fosse direcionado a situações sazonais de ausência de serviço para uma compensação das horas não laboradas em momento posterior, com a preservação da diferença remuneratória de hora normal e hora extra.
Não é possível que o banco de horas se estabeleça como mera estratégia de gestão para postergar o pagamento de horas extras, pois o trabalho prestado deve ser pago até o quinto dia útil do mês subsequente.
Pelo banco de horas, concretamente, tenta se permitir que uma dívida, caracterizada pelo trabalho além da jornada sem o correspondente pagamento no prazo legal fixado para tanto, qual seja, o 5º dia útil do mês subsequente ao trabalhado, seja paga por meio de uma compensação com horas de folgas, que, tecnicamente, valem menos do que as horas extras, sem que o empregado possa utilizar essa folga de forma útil, já que não tem previsão de quando ocorrerá. Ou seja, poderá ser paga em dinheiro, até um ano após o efetivo trabalho em sobrejornada, sem juros, correção monetária e multa, bastando que seja calculada com base no valor da remuneração da época, ou no momento da rescisão do contrato, pelo mesmo critério, nos termos do § 3º, do art. 59, da CLT, com redação dada pela Lei nº 13.467/17: “Na hipótese de rescisão do contrato de trabalho sem que tenha havido a compensação integral da jornada extraordinária, na forma dos §§ 2º e 5º deste artigo, o trabalhador terá direito ao pagamento das horas extras não compensadas, calculadas sobre o valor da remuneração na data da rescisão”.
5. Os desrespeitos legais ao direito de intervalo para repouso e alimentação
No que tange ao intervalo intrajornada, reduzido para até “trinta minutos para jornadas superiores a seis horas” (III, do art. 611-A), destaca-se, inicialmente, a contradição da lei, que preconiza uma não interferência do Estado nas relações de trabalho e, ao mesmo tempo, estabelece essa interferência, fixando o limite em 30 minutos.
Ora, imposição legal de um intervalo de uma hora não difere, na essência, da imposição, por lei, de um intervalo de 30 minutos. A diferença é apenas quantitativa e a redução para 30 minutos, nos termos da própria Lei nº 13.467/17, só pode ser considerada válida se for eficaz para atender a finalidade que é a de servir para alimentação e descanso.
Assim, se o tempo reduzido, em avaliação promovida pelo princípio da primazia da realidade, não for, concretamente, suficiente para atender a essa finalidade, a norma convencional estabelecida não terá nenhum valor jurídico, aplicando-se, como efeito, o padrão legal que se pretendeu afastar.
A incoerência do legislador pode ser verificada, igualmente, nos parágrafos 5º e 6º do art. 59 (§ 5º do art. 59: “O banco de horas de que trata o § 2º deste artigo poderá ser pactuado por acordo individual escrito, desde que a compensação ocorra no período máximo de seis meses”; § 6º do art. 59: “É lícito o regime de compensação de jornada estabelecido por acordo individual, tácito ou escrito, para a compensação no mesmo mês”).
Se não é para haver intervenção da lei no negociado porque a lei fixou os limites de seis meses e de um mês nas hipóteses retratadas?
O legislador, portanto, claramente, desconfia de sua própria premissa, a de que o negociado se sobrepõe ao legislado, o que, portanto, deixa de prevalecer, fazendo com que se reforcem os princípios jurídicos trabalhistas da norma mais favorável e da condição mais benéfica, que atraem tanto a aplicação da regra mais favorável ao trabalhador quanto impede o retrocesso normativo.
Tratando, ainda, do tema pertinente ao intervalo para repouso e alimentação, o legislador, no § 4º do art. 71, em vez de tentar garantir a eficácia da norma, que tem nítida natureza de proteção da saúde do trabalhador, isto é, em vez de impor o seu cumprimento, estabelecendo punição ao empregador que a descumprir, associa-se ao empregador e praticamente incentiva o desrespeito do intervalo, reduzindo o patamar punitivo que já se tinha estabelecido jurisprudencialmente.
Diz o texto legal:
“Art. 71. ............................... ....................................................
§ 4º A não concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo, para repouso e alimentação, a empregados urbanos e rurais, implica o pagamento, de natureza indenizatória, apenas do período suprimido, com acréscimo de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho.”
A intenção do legislador aqui, que é a de incentivar o descumprimento da lei, novamente, atinge o ponto do ridículo.
De fato, o legislador assume que o intervalo é “mínimo”, mas permite um suposto cumprimento parcial do mínimo, supondo, portanto, haver uma fração inferior ao que considerou como mínimo.
Mas como está tratando do descumprimento o que legislador instituiu é uma ilegalidade parcial.
Então, pelo padrão estabelecido, seria como se o próprio legislador estabelecesse que alguém que tem o potencial de furtar um conjunto de objetos obtivesse, como previsão da própria lei, a possibilidade de furtar metade da carga sujeito a uma punição apenas parcial, pela metade; ou prevendo que uma concessionária, obrigada a entregar um automóvel que foi adquirido em regular contrato de compra e venda, tivesse o permissivo de entregar apenas a carroceria e se ver na contingência de, uma vez acionada pelo comprador, unicamente ter que indenizar o valor correspondente a outra metade.
O legislador enquadrou o ilícito de modo a conferir ao empregador um direito de descumprir a lei. Simples assim...
6. As inconsistências jurídicas do regime 12x36
No artigo 59-A, o legislador se esmera na perda do senso do ridículo.
Primeiro, contrariando a previsão constitucional, admite, expressamente, que se efetive uma jornada de trabalho de 12 (doze) horas, pressupondo que o dia seguinte sem trabalho representa uma compensação de 36 horas. O dia, para o legislador trabalhista, para efeito de criar uma ficção favorável à extensão da jornada de trabalho, possui 36 horas.
Segundo, permite que essa jornada se estabeleça por acordo individual, contrariando, mais uma vez a previsão Constitucional, que exige acordo ou convenção coletiva para se efetivar uma compensação de horários, como dito.
Mas o pior mesmo está, novamente, no incentivo dado pelo legislador ao descumprimento do direito ao intervalo, autorizando, expressamente, que o intervalo não seja concedido, transformando o direito do empregado ao intervalo no direito do empregador de não conceder o intervalo e pagar o valor correspondente, sem qualquer acréscimo punitivo.
Na visualização do legislador, o intervalo para repouso e alimentação não é um direito do empregado e sim uma faculdade do empregador, do que resulta a possibilidade, juridicamente admitida, de um empregado trabalhar 12 horas seguidas sem comer.
A previsão daria inveja aos industriais dos primórdios da Revolução Industrial! E se pensarmos que o legislador ainda incentivou a prática de horas extras no dito regime 12x36, inclusive em atividade insalubre, conforme se extrai da previsão contida no parágrafo único do art. 60, então se poderia chegar ao fato, sem efeito jurídico específico, de um trabalho prestado durante 14 horas seguidas sem alimentação e em atividade insalubre, o que, certamente, causaria inveja aos escravistas!
Vejamos o que diz o art. 59-A: “Em exceção ao disposto no art. 59 desta Consolidação, é facultado às partes, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação.”
Acham pouco? Não tem problema, há mais...
Em complemento, estabelece o parágrafo único do art. 59-A que o valor que for pago ao empregado pelo trabalho durante 12 horas seguidas, com intervalo indenizado, seguidas de um suposto descanso compensatório de 36 horas, remunera também o trabalho no descanso semanal remunerado e os feriados trabalhados.
Assim, o legislador promoveu, de forma explícita, um aniquilamento desses direitos, que se têm por cumpridos por mera ficção do legislador.
Ora, se o trabalho nos DSRs e feriados é devido em dobro ou sujeito a compensação específica e se a justificativa para se autorizar a jornada de 12 horas é uma compensação com o suposto descanso de 36 horas, uma situação nada tem a ver com a outra e, portanto, em concreto, o trabalho em DSR e feriados não está sendo nem pago nem compensado.
De fato, o legislador criou uma espécie de combo para a supressão de direitos trabalhistas, um tipo de pague 12 horas e leve 24...
Eis a previsão legislativa:
“A remuneração mensal pactuada pelo horário previsto no caput deste artigo abrange os pagamentos devidos pelo descanso semanal remunerado e pelo descanso em feriados, e serão considerados compensados os feriados e as prorrogações de trabalho noturno, quando houver, de que tratam o art. 70 e o § 5º do art. 73 desta Consolidação.” (Parágrafo único do art. 59-A).
7. A negação da insalubridade
Com relação às atividades insalubres, o legislador quis autorizar a realização de horas extras por meio de negociação coletiva, sem a necessidade de autorização do Ministério do Trabalho (inciso XIII, art. 611-A: “prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho”).
O legislador, assim, nega a própria existência da insalubridade, pois, como o próprio nome diz, esta representa uma atividade que expõe a saúde humana a risco, sendo que o objetivo mais atinente à efetivação dos direitos de personalidade seria o de evitar a atividade insalubre e não o pagamento de um adicional, mas o legislador anti-trabalhista, que editou a Lei nº 13.467/17, achou por bem não apenas não seguir esse caminho como também procurou facilitar a realização de horas extras na atividade insalubre. Ou seja, para esse legislador os riscos à saúde se resolvem com uma maior exposição do trabalhador aos elementos insalubres, não vendo nisso nenhuma questão de ordem pública.
Mais à frente, no entanto, o legislador, introduzindo o parágrafo único no art. 60, para efeito permitir o trabalho em horas extras no dito regime 12x36, esqueceu-se do que havia dito no inciso XIII do art. 611-A e manteve vigente o caput do art. 60, que exige a autorização do Ministério do Trabalho para a efetivação de horas extraordinárias em atividades insalubres.
Reza o dispositivo em questão:
“Art. 60 - Nas atividades insalubres, assim consideradas as constantes dos quadros mencionados no capítulo "Da Segurança e da Medicina do Trabalho", ou que neles venham a ser incluídas por ato do Ministro do Trabalho, Industria e Comercio, quaisquer prorrogações só poderão ser acordadas mediante licença prévia das autoridades competentes em matéria de higiene do trabalho, as quais, para esse efeito, procederão aos necessários exames locais e à verificação dos métodos e processos de trabalho, quer diretamente, quer por intermédio de autoridades sanitárias federais, estaduais e municipais, com quem entrarão em entendimento para tal fim.
Parágrafo único. Excetuam-se da exigência de licença prévia as jornadas de doze horas de trabalho por trinta e seis horas ininterruptas de descanso” (Parágrafo único com redação dada pela Lei nº 13.467/17)
Ao menos quem sabe se consiga, enfim, perceber como aberrante, ilegal e opressiva a prática da realização de trabalho em jornadas de 12 horas em dias seguidos, nos ditos regimes de 2x2, 4x2, 4x1 e até 5x1, os quais, adotados os próprios parâmetros da Lei nº 13.467/17 perdem qualquer lastro de validade, devendo ser definitivamente afastados da realidade das relações de trabalho, pois a única exceção feita na lei em questão – que já fere a Constituição, como dito – é a do denominado regime 12x36.
8. Uma falsa contrapartida
Interessante verificar, ainda, a previsão da Lei nº 13.467/17, que diz não promove redução de direitos dos trabalhadores, trazida no § 3º do art. 611-B, segundo a qual “Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo”.
O legislador, claramente, tentou inverter a ordem natural das coisas, fixada na Constituição (inciso I, do art. 7º), pela qual a proteção contra a dispensa arbitrária é garantida a todos os trabalhadores.
Pela Lei nº 13.467/17 tentou-se fazer parecer que esse direito existe apenas para aqueles que tiverem seu salário reduzido por imposição de negociação coletiva.
De todo modo, em esforço interpretativo da norma supra, pode-se dizer que as garantias não se anulam e que, na verdade, se completam, porque a proteção contra dispensa imotivada não é propriamente proteção contra dispensa arbitrária, tal qual previsto no inciso I, do art. 7º da CF.
Mas o mais correto mesmo é reconhecer que a Constituição não permitiu a existência de uma negociação para pura e simples redução do salário, exigindo, dentro do propósito da melhoria da condição social dos trabalhadores, além da preservação dos empregos, que a redução seja temporária e proporcional à redução também dos ganhos dos diretores, dos sócios e dos acionistas, tudo sob o pressuposto da demonstração de uma dificuldade econômica da empresa não induzida por má administração ou desvio do patrimônio para os sócios ou outras empresas do grupo e também que seja eficaz para a melhoria da saúde econômica da empresa.
9. A mesquinhez legislativa
Continuando a análise da Lei nº 13.467/17, naquilo que diz respeito ao tempo de trabalho, sobressai o disposto no § 2º do art. 4º:
“Art. 4º.
§ 2° Por não se considerar tempo à disposição do empregador, não será computado como período extraordinário o que exceder a jornada normal, ainda que ultrapasse o limite de cinco minutos previsto no § 1º do art. 58 desta Consolidação, quando o empregado, por escolha própria, buscar proteção pessoal, em caso de insegurança nas vias públicas ou más condições climáticas, bem como adentrar ou permanecer nas dependências da empresa para exercer atividades particulares, entre outras:
I – práticas religiosas;
II – descanso;
III – lazer;
IV – estudo;
V – alimentação;
VI – atividades de relacionamento social;
VII – higiene pessoal;
VIII – troca de roupa ou uniforme, quando não houver obrigatoriedade de realizar a troca na empresa.”
O legislador deixa claro aqui o lado que assume na perspectiva da defesa de interesses.
Ora, em todos os demais dispositivos, o legislador foi bastante flexível para permitir a ampliação do tempo de trabalho e nos aspectos acima a sua postura, que atende, evidentemente, ao mesmo interesse, foi a da rigidez para afastar as situações relacionadas do cômputo do tempo de trabalho, agindo, inclusive, com extrema mesquinhez quando tenta sugerir que a troca de roupa ou uniforme se dá por “escolha própria” do empregado, ou mesmo o tempo relacionado à alimentação e à higiene pessoal.
10. A preservação das horas “in itinere”
No § 2º do art. 58, o legislador tentou eliminar as horas “in itinere”, que, tecnicamente, é a integração ao cômputo da jornada de trabalho do tempo gasto, em transporte fornecido pelo empregador, da residência do empregado até o local de trabalho quando este se situar em local de difícil acesso ou não servido por transporte público regular (Súmula 90 do TST).
Disse o legislador:
“Art. 58. ................................ .....................................................
§ 2º O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.”
Ocorre que o legislador não enfrentou, especificamente, os pressupostos jurídicos estabelecidos na Súmula mencionada, que resta em pleno vigor, portanto.
11. A conveniência do avanço tecnológico
Tratando do tempo de trabalho, dispõe, ainda, a Lei nº 13.467/17, no inciso III, adicionado ao art. 62, que “não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo”, “os empregados em regime de teletrabalho”.
O legislador, que tentou justificar sua obra normativa, como resultado da evolução tecnológica, nega, expressamente, o próprio fundamento, pois recusa aplicar a tecnologia para garantir aos trabalhadores o direito constitucional à limitação da jornada. Ao contrário, prefere negar, expressamente, esse direito aos trabalhadores que atuam fora do estabelecimento do empregador, apenas para atender o propósito de facilitar a extensão da jornada sem o pagamento do devido adicional.
12. Altos salários, baixos direitos
A Lei nº 13.467/17 também não esqueceu dos denominados altos empregados para estipular, no parágrafo único do art. 444, que: “A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.”
Buscou-se, de forma evidente, permitir a exploração desses trabalhadores sem nenhum limite de horas, o que, matematicamente, pode até anular a vantagem econômica da maior remuneração, pois, junto com ela, vem a “supressão complessiva” de direitos. Se teria aqui o combo 2, do tipo “all inclusive”, para uma exploração sem limite do trabalho sob o argumento do pagamento de um alto salário, o que, certamente, não se amolda aos mais rudimentares preceitos da Teoria Geral do Direito, quanto mais do Direito do Trabalho.
13. O controle efetivo da jornada
Por fim, preconizou a Lei nº 13.467/17, a possibilidade da norma coletiva estabelecer, livremente a “modalidade de registro de jornada de trabalho” (inciso X, do art. 611-A).
Mas, essa liberdade, certamente, não vai ao ponto de tornar o registro ineficaz para a sua finalidade, que é a permitir a quantificação precisa das horas trabalhadas, sendo que dessa previsão, em consonância com o disposto nos artigos 793-A e 793-B[i], deve-se extrair o princípio da intolerância frente à juntada aos autos de cartões de ponto fraudados, afinal a inserção de informações falsas em cartões de ponto e a omissão de salários nos recibos de pagamento correspondem à falsificação de tais documentos e possui graves implicações, que vão desde o prejuízo material daquele que vendeu sua força de trabalho e sequer recebeu as horas extras e os reflexos nas verbas salariais, até a sonegação de tributos (que gera efeitos prejudiciais a toda a sociedade), passando pelo ilícito de se pretender ludibriar o Judiciário para impedir a aplicação da decisão mais justa ao caso concreto.
Assim, é importante que sejam verificados, um a um, todos os aspectos criminais da conduta da reclamada que assim procede, para que as autoridades competentes efetivamente atuem no controle e na repressão de ilícitos como os que se verificaram nos autos e, assim, que a inserção de informações falsas nos recibos (por meio de conduta omissiva) e nos cartões de ponto, além da utilização de tais documentos no processo, deixem de ser tratadas apenas como situações corriqueiras relacionadas meramente à prova processual trabalhista, atingindo a sua necessária abrangência. O fato em questão está tipificado em vários dispositivos penais, inscritos nos artigos 168, 171, 203, 299, 297, 304, 331, 347, do Código Penal e no art. 1º da Lei nº 4.729/65.
14. A ilusão de mecanismos legais para a efetivação de delitos
E para que todos esses delitos contra a previsão constitucional da limitação do tempo de trabalho, autorizados pelo legislador, se efetivem, a Lei nº 13.467/17 estabeleceu que: “Os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual ou coletiva, que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos.” (§ 5º, do art. 611-B)
A intenção evidente do legislador foi a de que a ações individuais, nas quais os trabalhadores discutam a validade de normas coletivas restritivas de direitos, sejam promovidas ou desenvolvidas regularmente, o que, claramente, fere o princípio do acesso à justiça, até porque, desde o regramento estabelecido no Código de Defesa do Consumidor, as ações e os direitos coletivos não constituem óbice aos direitos e ações individuais, sendo que os primeiros só interferem nos segundos quando estabelecem condições mais benéficas.
Na mesma linha de consolidar os ilícitos, o art. 59-B dispôs que: “O não atendimento das exigências legais para compensação de jornada, inclusive quando estabelecida mediante acordo tácito, não implica a repetição do pagamento das horas excedentes à jornada normal diária se não ultrapassada a duração máxima semanal, sendo devido apenas o respectivo adicional.”
E o parágrafo único do mesmo artigo complementou: “A prestação de horas extras habituais não descaracteriza o acordo de compensação de jornada e o banco de horas.”
Neste último dispositivo, inclusive, o legislador tenta institucionalizar as “horas extras habituais”, e, nos outros dois, busca permitir, de forma expressa, que mesmo que o ajuste coletivo firmado seja descumprido pelo empregador não ocasione a invalidação do ajuste.
A previsão não respeita sequer as regras do “pacta sunt servanda” (superado pelo Código Civil de 2003...) e faz letra morta do benefício jurídico estabelecido na negociação ao empregado. A compensação se perde e o ajuste se transforma, por mágica, sem qualquer base jurídica, em mero argumento para alterar o limite da jornada normal, ou, mais propriamente, a base sobre a qual se calcularia a eventual quantidade de horas extras trabalhadas.
Seria o combo 3 que o legislador vislumbrou conferir ao empregador para o cometimento de mais essa ilegalidade com relação ao direito fundamental da limitação da jornada de trabalho.
Vale perceber que todas essas artimanhas jurídicas criadas pelo legislador para evitar a aplicação do direito constitucional da limitação da jornada de trabalho em 08 diárias e 44 horas semanais, está também em desacordo com a política de pleno emprego inserida na ordem econômica, conforme fixado no art. 170 da Constituição Federal, já que a limitação concreta da jornada de trabalho e as reduções da jornada, sem redução salarial, são as contribuições efetivas que o direito pode dar para minimizar esse problema econômico.
Por fim, destaque-se a demonstração inequívoca de que o legislador bem sabe da fragilidade jurídica de seus propósitos, conforme se verifica nos termos dos parágrafos 1º, 2º e 3º do art. 8º:
“Art. 8º .................................
§ 1º O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho.
§ 2º Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei.
§ 3º No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.”
O legislador, a toda evidência, tenta evitar que os juízes apliquem o Direito do Trabalho porque sabe que as regras por ele criadas ferem os princípios e os institutos jurídicos trabalhistas, extraídos no curso da história exatamente para impedir que a força do poder econômico impusesse sacrifícios excessivos aos trabalhadores, como estes que a Lei nº 13.467/17 agora tenta disseminar como mera expressão da “modernidade”.
Do ponto de vista jurídico formal, trata-se, no entanto, de uma tentativa vã, que ultrapassa o ridículo, vez que representa uma ofensa expressa às instituições do Estado Democrático de Direito, que tem como mola mestra a independência dos juízes.
De todo modo, ainda que se queira pautar a análise da negociação coletiva como negócio jurídico nos padrões do Direito Civil, o efeito não seria esse imaginado de validar supressão de direitos pelo uso da força econômica, da opressão e da ameaça do desemprego o sob um falso e indemonstrável argumento da dificuldade econômica. O Código Civil, ademais, não é composto apenas do art. 104, como imagina o legislador. Com efeito, o Código Civil recusa validade ao negócio jurídico que se realize fora dos parâmetros da boa-fé, a qual inexiste em ambiente de coação (art. 151 do CC) e de estado de perigo (art. 156, do CC), que se materializam, por exemplo, na realidade das relações de trabalho, pela ameaça do desemprego. O art. 113 do Código Civil estabelece que, "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Prevê, ainda que é nulo o negócio quando "não revestir a forma prescrita em lei” (IV, do art. 166) ou quando "tiver por objetivo fraudar lei imperativa” (art. 166, VI), o que ocorre, por exemplo, nas hipóteses denominadas de “Pejotização”, nos acordos para pagamento de salário como se fosse indenização, ou mesmo em qualquer pacto que permita renúncia, vedada tanto pelo artigo 9º da CLT quanto pelo art. 1.707 do Código Civil ("Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”). O art. 171, por sua vez, diz que é anulável o negócio jurídico por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores”. E não se esqueça que os artigos 421 e 422 do Código Civil estabelecem que os contratos devem atender a uma função social e que devem estar baseados em boa-fé.
14. Conclusão
Como se vê, diante da completa impropriedade técnico-jurídica da Lei nº 13.467/17, o legislador, seus incentivadores, apoiadores e patrocinadores terão que conviver com a frustração de verem desmontado o seu castelo de ilusões.
De fato, não há como aplicar a Lei nº 13.467/17, ao menos não no seu propósito de destruir por completo os direitos dos trabalhadores, e isso não por um ato de rebeldia, mas pelo devido respeito ao estágio evolutivo da inteligência humana, coletiva e historicamente, construída, e que se viu integrada ao Direito.
A pergunta que resta, no entanto, é: basta apontar os ridículos da Lei nº 13.467/17 e, com isso, inibir seus efeitos em casos concretos?
Parece-me que apesar das inúmeras impropriedades a Lei nº 13.467/17, não sendo afastada por completo por decisão do STF ou por outra lei que a revogue, não perderá a sua força para produzir efeitos concretos na realidade, ainda que regados a muita insegurança jurídica (de parte a parte), e enquanto isso ocorrer a tendência é a do aumento considerável do sofrimento nos ambientes de trabalho, já que a Lei nº 13.467/17 foi apoiada em enorme força midiática que contribuiu, e muito, para o aumento do poder empresarial e da fragilização da atuação coletiva dos trabalhadores, que, ademais, em razão da crise econômica, estão sob a ameaça constante do desemprego, sendo que, também, se veem sob as ameaças de elevados custos processuais caso queiram reaver, judicialmente os seus direitos, o que, por certo, aumenta seu estado de submissão. Esses custos processuais fixados na Lei nº 13.467/17 são inconstitucionais, é verdade, mas igualmente não deixam de produzir efeitos concretos.
Independente do destino interpretativo que se dê à Lei nº 13.467/17, sem uma modificação legislativa ou sem uma reação dos trabalhadores, por meio da atuação sindical, desvinculada do propósito exclusivo da contribuição sindical, o que se antevê é um aumento de casos de assédio moral, de doenças profissionais, de precarização etc.
É preciso compreender que o advento dessa lei, por si, já se constituiu uma grande derrota para o percurso mínimo da construção de uma sociedade menos injusta, menos opressiva, menos preconceituosa e menos desigual, que dirá, então, da visualização plena de um outro modelo de sociedade em que esses problemas possam ser não apenas minimizados, mas, concretamente, superados.
Assim, além da necessidade de deixar consignado na história os nomes dos responsáveis por essa tentativa da imposição de tamanho retrocesso, é fundamental, também, que os trabalhadores e trabalhadoras, assim como todas as pessoas sérias desse país, independente de lados, reajam contra a violência que está representada na proposição, na aprovação e no conteúdo da Lei nº 13.467/17, buscando a sua revogação.
Esse momento ainda está em construção, mas conforme for a nossa capacidade de formular compreensões e de agir, ficará marcado na história do Brasil ou como o momento em que se conseguiu resistir a um retrocesso sem precedentes ou, inversamente, como o momento em que um retrocesso sem precedentes se consagrou, não sendo possível prever o que advirá na sequência.
De forma bem sincera, acredito que as defesas explícitas de irracionalidades que nos apresentam a barbárie ou o autoritarismo como solução constituem, em si, o fundamento para que se perceba a gravidade do momento, favorecendo ao advento da defesa intransigente das conquistas intelectivas, sociais, econômicas, políticas e humanas auferidas no curso da história (e que, no nosso caso, ainda são muito restritas).
Independe disso, o que se pode dizer com certeza é que não apenas a história do Brasil está sendo construída ao vivo e a cores, mas também a nossa própria história. Cada um de nós, pelas posições ou omissões assumidas, querendo ou não, está escrevendo a sua história.
Esse é o tempo. Que não seja perdido!
São Paulo, 09 de outubro de 2017.
[i]. “Art. 793-A. Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como reclamante, reclamado ou interveniente.
Art. 793-B. Considera-se litigante de má-fé aquele que:
I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II – alterar a verdade dos fatos;
III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI – provocar incidente manifestamente infundado;
VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.”