Por ocasião do carnaval de 2014, diante da greve dos garis, escrevi um texto em defesa do direito de greve daqueles trabalhadores, trazendo como subtítulo a expressão “o encontro do carnaval com sua história” (https://blogdaboitempo.com.br/2014/03/07/em-defesa-do-direito-de-greve-dos-trabalhadores-garis-o-encontro-do-carnaval-com-sua-historia/).
No carnaval de 2018 novamente os direitos trabalhistas voltaram à cena, desta feita como tema da escola de samba Tuiti. A respeito publiquei o texto “Um quilombo na Sapucaí” (https://www.jorgesoutomaior.com/blog/um-quilombo-na-sapucai#_edn1)
Em ambas as oportunidades, foi destacado o quanto o carnaval, desde sua origem, se constituiu como uma festa popular que impõe uma desordem no ambiente em que a ordem segrega. Mas, se destacou também, como, ao longo dos tempos, o Carnaval foi desviando de sua própria história e acabou sendo absorvido pela ordem, de modo, inclusive, a reforçar as estruturas da segregação, ainda que não tenha, ao menos nas composições musicais e rituais, perdido o seu elemento de contestação.
A novidade, agora, em 2024, é que o Carnaval se apresentou como o momento propício para a institucionalidade máxima do poder e da ordem jurídica, o STF, dar um golpe de misericórdia sobre a classe trabalhadora. Ou seja, é a própria ordem utilizando o carnaval para propor uma desordem que aumenta ainda mais a segregação, a acumulação da riqueza e o sofrimento do povo.
É que o STF, não aleatoriamente, por certo, escolheu o dia 08 de fevereiro, véspera do feriadão de carnaval, para colocar em pauta o julgamento de uma questão que pode resultar em alterações profundas nas relações de trabalho no Brasil, em detrimento da classe trabalhadora.
Está na pauta da sessão plenária do STF marcada para a “quinta-feira de carnaval”, o julgamento da Rcl. nº 64.018, na qual a empresa Rappi Brasil Intermediação de Negócios Ltda busca “reformar” decisões da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região e da 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, alegando que tais decisões teriam desrespeitado a autoridade dos entendimentos fixados pelo STF na ADC nº 48/DF, na ADPF nº 324/DF, no RE nº 958.252/MG (Tema nº 725 da Repercussão Geral), na ADI nº 5.835 MC/DF e no RE nº 688.223 (Tema nº 590 da Repercussão Geral).
Vale reforçar que neste tipo de trabalho (“plataformizado”) não se tem qualquer semelhança com a terceirização.
Além disso, nas contratações em que o trabalhador se apresenta como uma pessoa jurídica, também não se trata de uma “terceirização”, e sim, meramente, de um artifício para afastar fraudulentamente a aplicação das normas constitucionais de tutela do trabalhador.
Totalmente impróprio, pois, invocar o precedente da ADPF nº 324 e do RE 958.252 (Tema 725), para abrir espaço para colher uma Reclamação Constitucional cujo objeto seja o trabalho por plataformas.
Mesmo que assim não fosse, o próprio STF deixou evidenciado que a terceirização não seria obstáculo à aplicação das “normas constitucionais de tutela do trabalhador” e que caberia ao tomador dos serviços “verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada”. Além disso, nas situações em que alguns Ministros do STF, por decisões monocráticas em Reclamações Constitucionais, afastaram decisões de reconhecimento de vínculo pela Justiça do Trabalho, não se tratava, propriamente, de terceirização, pois quando o trabalhador constitui uma Pessoa Jurídica para a prestação de serviços há, concretamente, uma contratação direta e não uma relação intermediada.
Cogita-se, igualmente, a possibilidade de se invocar o precedente da tese fixada na ADC 48, que declarou constitucional a Lei 11.442/07, que reconheceu a possibilidade da contratação de Trabalhador Autônomo de Cargas.
Mas o precedente também não se encaixa à hipótese: primeiro, porque as situações fáticas são bem distintas; segundo, porque o texto legal declarado constitucional em nenhum momento diz que o trabalhador que efetua trabalho nas condições de um empregado pode ser contratado como autônomo.
Na ADC 48, o STF disse que a Lei n. 11.442/07 é constitucional, mas isto não representa negar vigência aos artigos 2º e 3º da CLT. Duas leis, contrapostas, não podem ser aplicadas para a mesma realidade fática. Sendo opostas, uma exclui a outra.
Pode-se imaginar que a Lei n. 11.442/07 seria mais específica e, sendo assim, teria prevalência. Mas não se trata de uma especificidade e sim de uma qualificação jurídica que tenderia à generalização, como a própria cogitação de ser utilizada para a questão dos aplicativos demonstra.
Fato é que os artigos 2º. e 3º da CLT qualificam, como empregado, o trabalhador que, pessoalmente, presta serviços de forma não eventual subordinada e remunerada.
A Lei 11.442/07 não trata de relações pessoais de prestação de serviço. Refere-se a relações comerciais de transporte, considerando que o transporte também pode ser realizado por um Transportador Autônomo de Cargas - TAC. O TAC não coloca o seu serviço pessoal à disposição do contratante e sim o veículo, mediante um valor certo. A hipótese regulada é mais de uma locação do que de uma prestação de serviços pessoais, ou seja, de simples venda da força de trabalho.
Vide, a propósito, o que diz o § 1º do art. 4º da referida lei:
"Denomina-se TAC-agregado aquele que coloca veículo de sua propriedade ou de sua posse, a ser dirigido por ele próprio ou por preposto seu, a serviço do contratante, com exclusividade, mediante remuneração certa."
Verdade que a lei também trata de relações pessoais de serviço, mas a hipótese, tratada no § 2o do mesmo artigo, diz respeito, exclusivamente, ao trabalho prestado de forma eventual, o que não colide com os artigos 2o e 3o da CLT:
"§ 2o Denomina-se TAC-independente aquele que presta os serviços de transporte de carga de que trata esta Lei em caráter eventual e sem exclusividade, mediante frete ajustado a cada viagem."
Como se vê, para aplicação da Lei n. 11.442/07, ou se está diante de um trabalho eventual ou se está falando de um autêntico contrato de locação de veículo de transporte, sem qualquer tipo de ingerência na forma de sua execução.
Concretamente, o parâmetro jurídico da definição da relação de emprego, para efeito da aplicação dos direitos trabalhistas, continua sendo aquele fixado nos artigos 2º e 3º da CLT, conforme também referendado no inciso I, do art. 7º da CF. E, como se sabe, ou se deveria saber, a qualificação jurídica de uma relação de trabalho como relação de emprego é dada a partir da verificação da realidade fática que envolve o modo da prestação dos serviços. Sendo não eventual, subordinada e remunerada esta prestação, haverá uma relação de emprego, independentemente da vontade manifestada pelas partes neste sentido, ou mesmo em sentido contrário.
O precedente em questão, por conseguinte, nenhuma relação possui também com o trabalho “plataformizado”.
É insofismável, pois, que os precedentes utilizados pelos Ministros nas referidas decisões monocráticas não se encaixavam às situações concretas examinadas.
No que se refere às repetidas decisões monocráticas proferidas no âmbito do STF, com supressão do percurso recursal ordinário, que “reformaram” decisões da Justiça do Trabalho legitimamente proferidas que reconheciam o vínculo de emprego no trabalho “plataformizado”, também estas não podem ser adotadas como precedentes que justifiquem o julgamento designado para o dia 08 de fevereiro, vez que seria uma tautológica reprodução do vício originário.
A adotar como precedentes decisões que não se assemelham ao caso posto em julgamento, ainda mais avançando para o aspecto da análise fática de caso específico (o que é complemente fora do alcance das Reclamações Constitucionais e da atuação do Supremo em geral), já se apresentava como um enorme abalo da ordem constitucional democrática, mas o pior seria, agora, na pauta carnavalesca do dia 08 de fevereiro, utilizar as decisões monocráticas proferidas neste indevido procedimento, como precedentes para adentrar, novamente em sede de Reclamação Constitucional (o que é ainda mais sério), questão pertinente à definição jurídica acerca do trabalho prestado a empresas de serviços por plataformas digitais, tema que, repito, não possui qualquer precedente no Supremo.
É importante destacar que definir se há, ou não, relação de emprego no trabalho prestado por entregadores e motoristas a empresas de plataformas digitais, primeiro, pressupõe análise fática apurada e, segundo, compreensão jurídica trabalhista, tarefas que foram constitucionalmente destinadas à Justiça do Trabalho. E, conforme expressamente fixado na Constituição Federal, art. 114, I, compete à Justiça do Trabalho julgar “as ações oriundas da relação de trabalho”, o que equivale a dizer, aplicar o Direito do Trabalho, sobretudo, nas situações fáticas em que a ilegalidade do descumprimento das leis trabalhistas é identificada.
Talvez o mais grave de tudo isso seja o fato de que, consideradas as últimas manifestações do STF sobre os direitos trabalhistas, visualizados a partir de uma raiz econômica neoliberal, que desconsidera os compromissos internacionais em torno da dignidade humana e dos valores internamente consagrados, na Constituição Federal a partir do pacto de solidariedade, que vislumbram o respeito aos Direitos Humanos e a efetivação de um projeto de seguridade social, se pode antever que o STF dirá que nas relações de trabalho de prestadores de serviços (entregadores e motoristas) a empresas que exploram atividade econômica por meio de plataformas digitais não se tem uma relação de emprego, de modo a afastar a aplicação dos direitos trabalhistas e mesmo a incidência de contribuições sociais e tributárias.
E pode, até, segundo o que se tem verificado nas decisões já proferidas, chegar a dizer que as eventuais discussões jurídicas a respeito desse tipo de trabalho não pertencem à competência da Justiça do Trabalho.
Com isto, se terá jogado uma pá de cal sobre a rede de proteção jurídica trabalhista no Brasil, ainda mais porque este precedente poderá ser utilizado como parâmetro para que outros setores produtivos o invoquem, para se chegar ao mesmo resultado, pois, na essência, não há diferença alguma entre o trabalho exercido pelo entregador, que presta serviços à Ifood, e o bancário, que presta serviços a um Banco, ou o de uma enfermeira a um hospital, por exemplo.
Só que a devida aplicação dos Direitos Trabalhistas não pode ser afastada pela vontade das partes, até por conta das diversas repercussões de ordem pública que envolvem este reconhecimento fático-jurídico, como a incidência de contribuições sociais e de tributos, assim como a proteção da saúde do trabalhador, também por meio da exigência de medidas de segurança, que busca evitar, igualmente, o colapso previdenciário.
Quando alguns Ministros do STF dizem que é juridicamente possível que as próprias partes definam que tipo de relação de trabalho querem firmar, se de emprego ou se de trabalho autônomo, o que se tem por efeito, é a eliminação em concreto da aplicação da rede de proteção jurídica trabalhista e de todo o aparato constitucional voltado à construção de um Estado Social baseado no “primado do trabalho”; o “bem-estar e a justiça sociais”; na “dignidade da pessoa humana”, nos “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, na promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; na “prevalência dos direitos humanos”; e na “melhoria da condição social” dos trabalhadores urbanos e rurais.
Ora, se um entendimento desse tipo, que torna a aplicação dos direitos trabalhistas uma opção dos contratantes, for firmado pelo STF, nenhuma pessoa (natural ou jurídica) que precisar de mão de obra alheia para a realização de seus negócios ou suprir suas necessidades vai firmar contratos que reconheçam a aplicação dos direitos trabalhistas, pois, como se sabe, há um custo social nesta modalidade de relação jurídica, em razão dos efeitos buscados, conforme acima exposto.
E compete destacar que o modelo da relação de emprego permite, igualmente, a identificação de classe e a organização coletiva trabalhista, por meio da atuação sindical (também assegurada constitucionalmente), enquanto a generalização da contratação autônoma estimula o individualismo, deixando trabalhadoras e trabalhadores ainda mais vulneráreis diante daqueles que detém capital e os meios de produção.
Assim, uma eventual decisão do STF que resulte na conclusão de que não há relação de emprego em situação fática na qual os elementos caracterizadores da relação de emprego esteja presente, afastando, por consequência, a aplicação dos direitos trabalhistas e sociais, o que se terá por efeito é o rebaixamento ainda maior da participação da classe trabalhadora no PIB, o que significa piorar os níveis de distribuição da riqueza socialmente produzida, generalizando a pobreza e aumentando o capital acumulado nas mãos de cada vez mais reduzido número de pessoas (notadamente, grandes empresas estrangeiras).
Nem mesmo uma fórmula de aplicação de direitos trabalhistas, independente da identificação da relação de emprego seria solução ou menos uma amenização. Isto porque, primeiro, se a intenção for esta memo, a de afastar a aplicação de direitos trabalhistas, dizer que os direitos se aplicam com ou sem relação de emprego, isto equivaleria a uma auto sabotagem quanto aos efeitos pretendidos; e, segundo, ainda que se reconheça que alguns direitos trabalhistas devem ser aplicados, este meio termo é, por certo, menos que o todo e, além disso, não pressupõe o respeito às prescrições da ordem pública social, além de não impedir a generalização desse “novo modelo” rebaixado de relações de trabalho.
Assim, uma decisão do STF, enfrentando, em procedimento de Reclamação Constitucional, o mérito de uma questão específica sem que se tenha um precedente a respeito, e fixando pressupostos jurídicos de que em dado tipo de trabalho, independente da avaliação dos fatos concretos que permeiam a prestação de serviços, não se forma uma relação de emprego e de que a relação de emprego pode ser afastada por vontade expressamente manifestada pelos contraentes, já seria suficientemente grave, mas pode ser ainda pior se for além e também dizer que a competência para dirimir controvérsias acerca dessas questões não é da Justiça do Trabalho e sim da Justiça Comum.
Esta possibilidade, aliás, nos remete a um tema fundamental sobre o qual, inclusive, venho me manifestando há décadas.
A questão é que se a proteção jurídica trabalhista está assegurada na Constituição Federal; se a Constituição é a base de nosso Estado Social Democrático de Direito; se os direitos trabalhistas e sociais estão integrados ao rol de Direitos Fundamentais, a atuação das instituições da República negando vigência aos direitos constitucionais trabalhistas constitui, a um só tempo, abalo da democracia e um risco para a efetividade de todos os demais Direitos Fundamentais.
É preciso, portanto, sim, falar de democracia, pois esta não se perfaz pela mera “harmonia entre os Poderes”. É essencial que esta “harmonia” não esteja baseada no propósito de uma atuação articulada para negar vigência à Constituição Federal e o que se tem visto com relação aos direitos trabalhistas e sociais, desde a década de 90, é um recorrente e progressivo desdizer do texto constitucional, no que se refere aos direitos trabalhistas e sociais.
Esta constatação nos leva, inclusive, à necessidade de uma reflexão bastante importante, pois, diante da pauta do STF do dia 8 de fevereiro e de todos os riscos que ela envolve – que são bastante graves, como acima demonstrado – muitos olhares, senão todos, estão voltados exclusivamente para o STF, apontando-o como o algoz da classe trabalhadora. Vide, a propósito: O STF senta à mesa com empresários - 31/01/2024 - Conrado Hübner Mendes - Folha (uol.com.br); STF discutirá futuro das relações trabalhistas no Brasil no dia 8/2 (conjur.com.br); https://economia.uol.com.br/colunas/carlos-juliano-barros/2024/02/06/stf-pode-esvaziar-justica-do-trabalho-em-julgamento-sobre-clt-e-apps.htm; O APOCALIPSE DOS TRABALHADORES NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL | (trab21.org)
Ocorre que, como dito, este desmonte da Constituição Federal já vem se pronunciando em nossa realidade desde a década de 90 e isto pela atuação de diversas mãos e mentes, a começar peça própria Justiça do Trabalho e a doutrina trabalhista. Incontáveis foram as teses jurídicas desenvolvidas na década de 90, sob influência neoliberal, preconizando a “flexibilização” do Direito do Trabalho, o que, em concreto, representava ler o texto constitucional reduzindo o seu projeto de melhoria da condição social dos trabalhadores e trabalhadoras, de modo a colocar os interesses econômicos imediatos das grandes empresas em primeiro plano.
A jurisprudência trabalhista, por sua vez, acolheu muitas dessas teses, como, por exemplo, a do apagamento da proteção contra a dispensa arbitrária, a da ampliação da jornada reduzida em turnos ininterruptos de revezamento; a do negociado sobre o legislado em diversas matérias; a da abertura para a intermediação de mão de obra, resultando, em 1993, na Súmula 331 do TST; e, principalmente, a da limitação do direito de greve.
O legislador não ficou para traz e também tratou de reduzir a potência da Constituição com o incremento de uma legislação “flexibilzadora”, institucionalizando as cooperativas de trabalho, o “banco de horas”, o trabalho parcial; o contrato provisório etc., contando sempre com o apoio de boa parte da doutrina e da jurisprudência trabalhistas.
De 2003 em diante, quando se poderia ter a esperança de que esses caminhos fossem revisitados, o governo do partido dos trabalhadores, além de não reverter o que se produziu em termos legislativos na década de 90, ainda, mesmo de que forma mais tímida, seguiu a mesma direção com a “lei do primeiro emprego” e a lei da recuperação judicial, ambas extremamente maléficas aos interesses da classe trabalhadora.
Em 2017, a “reforma trabalhista”, que foi fruto de uma explícita ruptura democrática, foi acolhida pelo Judiciário trabalhista, ainda que com algumas resistências pontuais.
Para completar, em 2019, a “reforma” da previdência reduziu ainda mais as esperanças em torno de um projeto social baseado em solidariedade, integração, bem-estar e distribuição equitativa da riqueza produzida no Brasil.
Quando parecia que já se estava no fundo do poço, no momento mais trágico da pandemia, de 2020 a 2022, o governo Bolsonaro editou várias medidas que aprofundaram ainda mais as formas de exploração do trabalho, e isto se efetivou sem uma rejeição generalizada e eficaz das instituições democráticas.
O resultado desse cenário de desconstrução quase total da proteção jurídica trabalhista e do projeto constitucional de Estado Social, promovido, sobretudo, de 2017 em diante, foi a generalização da precarização das condições trabalho, notabilizando-se o enorme crescimento dos casos de trabalhadores e trabalhadoras expostos à situação de trabalho análogo à escravidão; o maior sofrimento de todas as pessoas que dependem da venda da força de trabalho para sobreviver; e, por consequência – que era, aliás, o objeto das “reformas impopulares”, o aumento vertiginoso do lucro das empresas e o empobrecimento da classe trabalhadora. Vide aqui, a propósito, o gráfico da evolução da participação da renda dos trabalhadores e trabalhadoras e do lucro das empresas no PIB nacional, de 2017 a 2022 (Fonte: Salários perdem espaço na economia e caem para menos de 40% do PIB, menor nível em 19 anos (globo.com))
É certo que neste período, sobretudo a partir de 2011, o STF se manteve como personagem altamente relevante para assegurar que o caminho da destruição da rede de proteção trabalhista e social prevista na Constituição Federal fosse percorrido sem percalços. Mas é certo, também, que vários outros personagens participaram ativa e decisivamente do roteiro dessa história.
Lembre-se, a propósito, que se muitos, hoje, fazem críticas às posições adotadas pelos Ministros do Supremo em matéria trabalhista, o fato concreto é que o STF é composto por 11(onze) Ministros e, desde 2006, os governos de Lula e Dilma nomearam um total de 8 Ministros, sendo que, atualmente, serão 7 deles a compor a Corte. Na sessão do dia 8 de fevereiro, 6 desses 7 Ministros estarão em atuação (o último nomeado ainda não tomou posse).
Todos esses 8 Ministros tinham currículo e concepções jurídicas e ideológicas bastante conhecidas e, portanto, quem os nomeou sabia o que estava fazendo e que tipo de compromisso firmava com os interesses da classe trabalhadora, integrando, pois, o rol dos responsáveis pelo descaso institucional com as conquistas jurídicas trabalhistas consagradas na Constituição Federal.
E é importantíssimo registrar que se o Supremo tomou a dianteira e acelerou sua atuação para intervir nesta disputa sócio-político-econômica da regulação do trabalho por plataformas é também porque o governo, mesmo após um ano tratando do assunto em um Grupo de Trabalho formado no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, não se engajou em ações políticas efetivas para avançar na respectiva regulação e garantir a integralidade de direitos trabalhistas e sociais aos trabalhadores e trabalhadoras submetidos(as) a este tipo de atividade.
O desinteresse ou a estratégia política do governo sobre o tema ainda mais se evidencia quando se constata que nem a Advocacia Geral da União, nem o próprio Ministério do Trabalho e Emprego apresentaram manifestações no processo pautado para o dia 08 de fevereiro; e tudo leva a crer que não o farão. Cumpre destacar que a não manifestação ao AGU é extremamente grave, pois o resultado do julgamento, com afastamento da relação de emprego, pode gerar enorme impacto nas arrecadações federais e a evasão de tributos, em especial da contribuição previdenciária, equivale a uma destruição do projeto de Estado Social, até porque tende a alimentar mais iniciativas no mesmo sentido.
Fato é que com o protagonismo assumido pelo STF, o governo poderá, a partir dos cálculos políticos realizados, dizer que nada fez porque, afinal, o STF definiu a questão e mesmo o Legislativo poderá se eximir de qualquer responsabilidade, com o mesmo argumento. E vale perceber, também, o quanto o quarto poder, a grande mídia, tem se mantido vigilante, de modo a estimular a regulação – que é, concretamente, uma não regulação – do tema pelo STF.
Seria a esta conjunção de interesses, para se chegar a uma retração plena dos direitos trabalhistas e sociais, que o Presidente do STF se referia quando, na abertura do Ano Judiciário, fez alusão a um “trabalho harmonioso, coordenado e cooperativo entre os Poderes"? (*)
Por tudo isto, parece-me bastante restrito, do ponto de vista da compreensão histórica da situação, voltar os olhos, e com abstração, apenas para o STF.
A destruição dos direitos trabalhistas e sociais não se inicia com o julgamento previsto para o dia 8 de fevereiro e possui vários atores e atrizes.
De todo modo, se o resultado do julgamento referido for no sentido acima anunciado, uma nova era nas relações de trabalho no Brasil se terá promovido, com passos decisivos em direção à barbárie social e econômica e ao autoritarismo político.
A rede de proteção jurídica social e humana no Brasil já se encontra estado mórbido. Mais um ataque desse porte significaria o último suspiro, podendo, então, a sessão do Supremo do dia 08 se identificar como o réquiem para os Direitos Trabalhistas e a Justiça do Trabalho, assim como para o Estado Social, a Democracia e os Direitos Fundamentais.
Assim, mesmo sem desconhecer o histórico da renitente precarização das relações de trabalho no Brasil, e também tendo em conta a necessidade de uma revogação de toda legislação infraconstitucional contrária ao projeto de Estado Social e ao respeito aos Direitos Humanos e da reconstrução doutrinária e jurisprudencial trabalhistas, para uma efetiva retomada do pacto social constitucional, impõe-se, em caráter de urgência, que se busque, por todos os meios legítimos de persuasão e de mobilização, demonstrar aos Ministros do Supremo Tribunal Federal que sua atuação não está isenta de avaliação crítica e de responsabilidade histórica e o quão prejudicial à sociedade brasileira como um todo e, sobretudo, à classe que vive do trabalho, seria o STF fixar um entendimento que atenda aos interesses imediatos e restritos de grandes conglomerados econômicos, em detrimento da efetividade das normas, preceitos, institutos, princípios e pactos históricos sociais, políticos, culturais e econômicos constitucionalmente estabelecidos.
É de extrema relevância, portanto, a Nota expedida pelo FÓRUM INTERINSTITUCIONAL EM DEFESA DO DIREITO DO TRABALHO E DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, formado por várias entidades ligadas ao mundo do trabalho, intitulado “Postulados Relacionados Ao Direito E À Justiça Do Trabalho Visando À Reorientação De Decisões Que Vêm Sendo Tomadas Pelo Supremo Tribunal Federal Em Reclamações Constitucionais”, pela qual se procura levar aos Ministros do STF subsídios para o melhor enfrentamento jurídico da questão posta em discussão. (vide o inteiro teor da nota e seus signatários aqui).
Toda reação é importante, para que o carnaval de 2024 não fique para a história como o momento em que a ordem se fez desordem e, contra todos e contra si mesma, a desordem total perenizou!
Fato é que, produzindo-se tal resultado, o fato se identificaria como uma autêntica Suprema folia, vez que significaria, em concreto, brandir o estandarte da irresponsabilidade fiscal institucionalizada, ao liberar a conversão de relações de emprego, tributadas para financiar a Seguridade Social, por contratos moldados à lógica dos paraísos fiscais e que constituem o alicerce do inferno previdenciário. Só que a conta respectiva dessa festança de cunho neoliberal, embalada pela crença no individualismo, caso se perfaça, não poderá deixar de ser historicamente cobrada dos(a) Ministros(a) do STF, assim como de todos(as) aqueles(as) que, em nome da “defesa” da democracia, vêm lhes “outorgando” poderes irrestritos que, fora de um efetivo compromisso com o respeito aos direitos sociais constitucionais, têm servido, isto sim, para rebaixar a condição de vida da classe trabalhadora e, paradoxalmente, para aniquilar a democracia real.
São Paulo, 07 de fevereiro de 2024.
(*) Parágrafos em negrito acrescidos ao texto em 08 de feveireiro de 2024, às 10h40'.