Considerando a declaração de pandemia do Coronavírus, considerando as precauções mundiais com o tema, que refletem uma preocupação de saúde pública inadiável, e considerando que não há, por conseguinte, elementos científicos para estabelecer um questionamento válido à gravidade da situação, impõe-se a verificação dos aspectos jurídicos que envolvem as vidas dos seres humanos e suas relações sociais neste contexto.
Quando se diz que alguém tem um direito, duas consequências são inevitáveis: a primeira, de que todas as demais pessoas e instituições (públicas e privadas) têm a obrigação (que não é, pois, mero dever moral ou expressão de um favor) de respeitar o direito alheio; e a segunda, de que quem detém um direito tem o direito de defender a efetividade de seu direito.
Tudo isso considerado, resta claro que a ninguém é dado, por ação ou omissão, expor a vida (em sentido amplo) de outra pessoa a risco. E tomados os padrões do Coronavírus, os alvos dessa exposição são grupos mais vulneráveis (idosos, imunodeficientes e subnutridos) que podem não estar integrados à relação social na qual, por falta de prevenção, o vírus se transmitiu.
Em se tratando de uma pandemia, impera, de forma ainda mais evidenciada e incontestável, o preceito jurídico básico da vida em sociedade, a solidariedade. As pessoas, portanto, devem se portar nas relações sociais pensando em todas as demais pessoas que podem sofrer as consequências de atos jurídicos específicos.
Adotados esses parâmetros jurídicos, aqueles que detêm a competência funcional de lidar com as políticas públicas (mesmo em relações privadas) têm a obrigação de adotar medidas que sejam compatíveis com as minimizações do risco à vida, sendo que na inércia e na incompatibilidade das medidas com a gravidade do problema, aquele que se sente sob a ameaça do risco pode exercer o seu lídimo direito de preservar a própria vida, que se traduz também como uma obrigação diante das repercussões de seu ato em vidas alheias.
De forma concreta, quando constatado que na região (país, Estado ou cidade) já há circulação autônoma do vírus não apenas nas aglomerações como também nos contatos coletivos e nos transportes públicos, os deslocamentos, sempre quando possível, devem ser evitados e isso não como expressão do “bom senso” ou de certa “sensibilidade”, mas como efeito do cumprimento de uma obrigação jurídica.
Assim, exemplificativamente, se um reitor não suspende as atividades administrativas e acadêmicas de uma universidade, como era sua obrigação (e não mera opção), impõe-se às unidades fazê-lo. Se as unidades não tomam a iniciativa, devem fazê-lo os respectivos Departamentos. E se estes também não o fazem, cumpre aos professores e professoras, individualmente, suspender as aulas, como forma de defender o seu direito à vida, como efeito da obrigação que possuem perante a vida de alunos e alunas, servidores e servidoras e demais membros da sociedade em geral.
Se as confederações associativas não suspendem a realização das atrações esportivas, cumpre às entidades que a integram, notadamente quando ostentam a posição de empregadoras dos atletas que lhes prestam serviços, comunicar a sua não participação nos eventos. E se as entidades não o fazem, caberá aos atletas, individual ou coletivamente, exercer o direito, que é também uma obrigação, de não trabalhar, isto é, de não realizar a correspondente prática esportiva.
A realização de partidas de futebol com portões fechados é uma medida incompatível com a gravidade do problema porque não evita o deslocamento de diversos profissionais, incluindo jornalistas, aos locais do evento, e expõe os atletas ao risco extremo dos contatos diretos.
Os jogadores de futebol têm, portanto, o direito e a obrigação de não participar dos jogos marcados com portões fechados.
O mesmo feixe de direitos e obrigações se apresenta em quaisquer relações jurídicas trabalhistas, impondo-se ao empregador, nas atividades essenciais, inadiáveis e naquelas que se apresentem como fundamentais à própria preservação da vida, negociar com os respectivos trabalhadores a forma da execução dos serviços, de modo a minimizar os riscos, com a obrigação adicional de fornecer os meios e as condições necessárias para tanto.
Da mesma forma, juízes e desembargadores têm o direito e a obrigação de suspenderem as suas atividades que dependam ou imponham o deslocamento de diversos outros cidadãos (partes, testemunhas, advogados, servidores). Estão juridicamente obrigados a não submeter a vida alheia a riscos e, ao mesmo tempo, possuem o direito de conferir efetividade ao seu direito à vida.
Em razão disso, suspendi minhas aulas (no mesmo sentido, aliás, das posteriores determinações da direção da Faculdade e da reitoria da Universidade), cancelei minha participação em sessões de julgamento presenciais e dispensei servidores do comparecimento ao gabinete que administro, mantendo as atividades que possam ser realizadas virtualmente.
São Paulo, 14 de março de 2020.
Jorge Luiz Souto Maior