Jorge Luiz Souto Maior
No curso das intensas transformações promovidas desde o século XV, que abalaram as estruturas feudais, o iluminismo constituiu um passo decisivo para a consolidação da nova ordem. O desenvolvimento da capacidade de produzir raciocínios lógicos, explicativos, dominadores da natureza e organizativos da sociedade também contribuíram para o aprimoramento da condição humana, ainda que boa parte da racionalidade produzida estivesse comprometida com a consagração dos valores e das estruturas, inclusive jurídicas, essenciais ao novo modelo de sociedade em formação.
Assim, a razão idealizadora e revolucionária – que, na visão de Silvia Federeci[i], já era, igualmente, repressora da formação de qualquer outra estrutura social e que preservou interesses de antigos senhores feudais – transforma-se em conservadora, passando a ser utilizada para manter as vantagens da nova classe dominante que, evidentemente, deixa de ser adepta a mudanças. Com isso, abandona-se o uso da razão como impulso para uma atuação revolucionária ou de evoluções constantes e, com o desprendimento da análise do real, atinge-se o estágio da razão cínica.
Mas se isso é verdade, também não é menos verdade que a razão crítica do modelo estabelecido tem se limitado a apontar as contradições da lógica liberal, transmudada em neoliberal, desprezando as incoerências e incompletudes da racionalidade socialista, sobretudo com relação às práticas autoritárias e opressivas que, em nome da emancipação humana, se cometeram.
Permeando tudo isso talvez existam dois aspectos mais simples, mas ao mesmo tempo mais profundos, que possam explicar a fuga da busca de uma razão emancipadora, descomprometida com pressupostos teóricos dados que, de tão impregnados e arrogantes, aparecem como verdadeiros dogmas.
Refiro-me à ética e à concepção do humano como ser social.
A ética tantas vezes é apontada como um conjunto de valores e princípios morais histórico e culturalmente desenvolvidos para proporcionar a vida em sociedade. Filosoficamente, a ética seria um atributo nato do ser humano, uma espécie de lei interna, que lhe auxiliaria a separar o certo do errado, determinando sua conduta. Neste sentido, que é o comumente adotado, um ser ético é aquele que obedece a essa sua valoração interna e que, por consequência, age em conformidade com ela. Dito de forma reversa e simplificada, ser ético é fazer o que é certo segundo sua própria consciência, estabelecendo-se uma linha direta entre o pensar e o agir.
Verdade que se pode dizer que essa formulação teórica parte do pressuposto da existência de concepções morais natas dos seres humanos, resumidas na fórmula da tendência dos humanos em “fazer o bem”, sem apontar, entretanto, o que isso significaria concretamente. Dentro de uma realidade em que os valores iluministas, vinculados ao projeto liberal, se apresentavam sem qualquer objeção, o individualismo, a liberdade (no sentido contratual, consagrada na figura do sujeito de direito), a igualdade meramente formal que convive e estimula as desigualdades instrumentais ao modo de produção, como a divisão sexual e racial do trabalho, assim como daquelas que decorrem da competitividade, teriam forjado o ser humano jurídico, na perspectiva exclusiva de um sujeito com direitos e obrigações, conduzindo a preocupação com o sofrimento alheio à esfera da caridade.
Essa concepção kantiana da ética seria, então, instrumental ao novo modelo, vez que estimularia um agir que corroborasse os valores que lhe são essenciais.
Considero, com a devida vênia, que essa visão, embora traga um aprofundamento de análise importante, se tomada como único fator de compreensão da constituição do sujeito, reduz a nossa capacidade humana, ou seja, nos torna mais objetos do que seres pensantes e, ao mesmo tempo, menos responsáveis e mais impotentes, além de refletir uma retrospectiva exclusivamente eurocêntrica, descolada, por exemplo, da nossa trágica experiência escravocrata de quase quatrocentos anos.
O estímulo e o uso da razão, por conseguinte, não podem ser negados como conquistas da humanidade que extrapolam as delimitações de interesses determinados e a sua utilização fora de parâmetros prévia e intencionalmente delimitados possibilita o advento de um novo estágio da condição humana, não sendo, pois, ilusório dizer que, efetivamente, se desenvolveram postulados éticos que transbordaram a visualização instrumental, afinal, por mais que se pretenda, os seres humanos não são fantoches e insistem em existir mesmo diante da força dos fetiches e dos processos de alienação. De minha parte, costumo acreditar mais nos seres humanos do que nos sistemas, até porque nenhum modelo social, por mais teoricamente bem estruturado que seja, sobreviverá se não for integrado por seres humanos efetivamente racionais e conscientes, além de mental, formal e materialmente livres.
Seja como for, não há como deixar de reconhecer que o imperativo ético, como autêntica lei moral interna, domina os seres humanos desde o iluminismo.
Dedico-me, então, nos limites do objeto do presente texto, a destacar como esse método de avaliação do pressuposto ético, ao contrário do que possa parecer, pode acabar sendo um convite à perda da razão e da consciência.
Concretamente, o efeito que produz não é o do pensamento direcionando a ação e sim o da ação aprisionando o pensamento, isto porque a ação, ela própria, está ligada às determinações sociais, políticas e econômicas.
A admissão de que os humanos só experimentam a condição plena de sua existência quando convivem em sociedade gera, de forma complexa, um reboliço na formulação ética, já que os seres humanos se veem constrangidos a direcionar o seu comportamento dentro da lógica dos interesses da inserção e do pertencimento.
Neste contexto, o postulado ético, qual seja, a regra interna, de ordem moral, que auxilia na definição e nas escolhas entre o certo e o errado, em vez de enaltecer a condição humana acaba sendo fator de sofrimento. A exigência ética em questão maltrata o ser humano quando este, diante das necessidades dadas pela inserção e o pertencimento, não consegue fazer com que seus atos estejam em conformidade com o seu julgamento.
Como o agir está vinculado a influências externas, muitas vezes irresistíveis, determinadas pelas necessidades do ser social, para não sofrer com a contradição, o mecanismo de autodefesa opera para alterar o juízo moral. Ou seja, para preservar um dos elementos de constituição da ética, que é a identidade entre o pensar e o agir, a ação acaba direcionando o pensamento.
Dessa maneira, em vez de um postulado ético em que o pensamento induz a ação, são os delimitadores sociais que agem para inverter o julgamento de modo a permitir que a ação, ou, na maioria das vezes, a inação, esteja eticamente protegida.
Se terá uma coerência entre o pensar e o agir, mas como efeito de um processo inverso em que o pensamento foi corrompido pelas limitações práticas.
É assim que, com a produção de experiências históricas de adaptação, vamos “aprendendo” a conviver, sem qualquer trauma, com situações que, num primeiro momento, nos causavam indignação. É por isso, aliás, que os jovens são bem mais rebeldes que os mais velhos e estes ainda dizem, com orgulho, que a solução para os jovens é envelhecer, sem se atentarem para a circunstância de que a sua maturidade neutra e distante é fruto de um processo repetitivo de estupro da consciência ética.
Lembre-se como em várias situações da vida social alguns interlocutores, preocupados com nosso bem-estar, nos dizem que não é o momento oportuno para dizer ou fazer algo. São tantos os enredos com essa advertência, que a própria vida passa a ser uma eterna espera do “momento adequado”, que nunca chega.
Cedendo às urgências de cada situação, agimos ou nos silenciamos, ainda que de forma contrariada, mas para não nos corrompermos, vamos, ao mesmo tempo, sem percepção, alterando o nosso modo de pensar. Quantas vezes já não se ouviu a frase amadurecida: “eu também pensava assim quando era jovem, mas, agora, mais experiente, entendi que esse pensamento está equivocado, até porque nada pode ser feito para mudar essa realidade”.
Claro que a sabedoria e o conhecimento são fatores importantes da compreensão humana e os mais velhos possuem maiores acúmulos nessa seara. Mas o conhecimento em si não é determinante das condutas e, portanto, não influencia os nossos julgamentos morais tanto quanto o fazem as necessidades do ser social.
O fato é que se alguém quiser pertencer a um grupo social ou se integrar a alguma instituição (pública ou privada) verá seu comportamento sendo cotidianamente moldado em nome da harmonia do convívio ou mesmo para preservá-lo.
Não é à toa que se podem estabelecer estereótipos dos diversos grupos sociais, sendo que mesmo fora desses limites específicos ainda há uma espécie de estereótipo básico dado pela estrutura social dominante.
O conjunto dessas relações históricas não apenas molda a nossa consciência como também nos torna cúmplices da realidade que produz, fazendo com que o conservadorismo seja uma força quase “natural”, que atua silenciosamente.
O efeito inevitável de tudo isso é que o maior esforço mental que se estimula é o da justificação dos fatos, já que nos sentimos um pouco autores da realidade vivida e também porque, “naturalmente”, os nossos atos, determinados pelas necessidades, não estão voltados a alterá-los, por mais que, em princípio, não concordássemos com eles. Como nos integramos a essa realidade (do todo social ou de grupos determinados) não a criticamos porque isso representaria uma crítica aos “iguais” e, consequentemente, a nós mesmos, até porque por mais objetiva que seja uma crítica, quando envolve o comportamento humano, ela será sempre um julgamento moral e isso faz com que o crítico tenha que remoer a sua consciência e, muitas vezes, a sua própria história de vida.
Esse quiproquó dificulta sobremaneira a realização de análises críticas, no sentido de uma investigação séria e isenta da realidade social, apontando as inconsistências, incoerências e contradições que resultam da razão dominante.
O fato é que não há como realizar uma análise crítica sincera da realidade social sem se integrar à própria crítica e daí porque, em função dos efeitos nefastos de ordem pessoal que essa circunstância gera, a maior tendência é a de que não se procedam as críticas a não ser de realidades passadas, de estruturas sociais alienígenas ou de grupos sociais diversos.
É talvez por isso que os historiadores, por exemplo, não se dispõem a falar da realidade atual, pois, como dizem, fazem parte dela e precisam de um distanciamento que lhes permita uma isenção científica.
Esse direcionamento do pensamento pelos limites sociais faz, tantas vezes, com que também o estudo intelectualizado perca a sua objetividade, porque não raro o debate de ideias se parte em julgamentos morais do autor.
Não se trata de negar a pertinência de perquirir o local de fala do autor e a sua visão de mundo, que são de conhecimento necessário para se entender melhor o que está dizendo e por quais motivos, mas de evitar a desqualificação das ideais expressas por conta das ações do ser humano que as expôs, ainda mais porque, em geral, os atos são analisados fora do contexto histórico, geográfico e político em que as ideais foram expressas.
Seguindo todos esses parâmetros, o esforço da intelectualidade, muitas vezes, acaba sendo mais destrutivo do interlocutor do que construtivo de ideias; e o estudo acadêmico não passa da formalidade ou da superficialidade.
Não se está dizendo que os atos pouco importam e que as pessoas estejam livres dos parâmetros sociais de convivência, sobretudo no que se refere ao respeito às conquistas históricas ligadas, por exemplo, aos denominados direitos fundamentais, às políticas afirmativas, à superação das diversas formas de discriminação e de preconceito. O desafio proposto é o da formulação de uma racionalidade crítica que seja apta, inclusive, para pôr em questão o próprio comportamento e, por consequência, aquilo que, influenciado pela conduta, antes determinava o julgamento moral.
Para que a crítica se produza e contribua efetivamente para o aprimoramento da condição humana é preciso admitir a possibilidade de sofrimento pessoal, tanto na perspectiva das relações sociais quanto no aspecto da formação de um dilema ético, que é fator fundamental para que se promova um novo agir, fruto, então, da autocrítica. Não se dão passos para frente sem uma formulação autocrítica. O compromisso histórico com os erros cometidos, os quais não são vistos enquanto tais, é uma fórmula para não gerar sofrimentos ou para não se dar um argumento ao adversário, mas é, na verdade, uma forma de suicídio.
Não é porque não conseguimos mudar situações concretas objetivas que estão à nossa volta e da qual, inclusive, fazemos parte, ou porque não podemos modificar o que já passou, que devemos ser reprodutores conscientes dessas mesmas situações. Podemos – e devemos – ser críticos de realidades que, por conta de outros fatores, não temos como mudar.
Isto não representa dizer, repita-se, que os comportamentos sejam desprezíveis. Os atos e a coerência importam, e muito. A produção acadêmica que se preocupa apenas com a coerência formal, interna, de sua lógica teórica, aparta-se dos elementos concretos da realidade, fragilizando a própria teoria e impossibilitando a transposição de uma esfera para outra. Esse descompromisso do teórico com os atos próprios (ainda que vistos de forma autocrítica) faz com que se contente com a transferência para terceiros da responsabilidade pelas mudanças propostas e o maior problema é que os agentes projetados da mudança, não vendo a sua a vida concreta considerada, em geral, sequer se identificam como os personagens tratados na proposição teórica.
Essas são, por certo, avaliações mais complexas. Por aqui basta explicitar que o mínimo que se espera é que o pensamento, extraído de reflexão crítica, da autocrítica e do conhecimento, estimulem os atos, sendo inconcebível que após submetida a situação concreta a uma avaliação crítica descomprometida se continue tentando utilizar a razão para justificar o que, enfim, possa ser percebido como uma experiência equivocada.
Claro que as possibilidades concretas de mudar a realidade e até de mudar o mundo são quase ínfimas por meio de ações individuais, mas também as ações políticas não estão fixadas em roteiros pré-concebidos. Nada é inexorável e nada é impossível de ser mudado e aquilo que está ao nosso alcance, por mais restrito que seja, ainda que apenas nos diga respeito, isto é, que se refira apenas ao nosso julgamento interno, tem toda a importância do mundo, pois somente diante desse difícil exercício cotidiano é que ganhamos condições de interagir politicamente. As estruturas sociais influenciam o ser social, mas essas estruturas não são nada além do que efeito da vontade humana, embora não de todos os seres humanos, certamente, reconhecendo-se, como se deve reconhecer, que vivemos em uma sociedade de classes onde a vontade que prevalece é a da classe dominante. Mas, a história não acabou...
O que se está tentando dizer é que a maior parceira da imobilidade é a perda da consciência crítica e se esta estiver aprisionada no medo de sermos atingidos pela manifestação de uma ideia, a tendência é a de que os delimitadores sociais e os interesses pessoais imediatos moldem o ser, tornando-nos reprodutores de um pensamento que naturaliza todo esse processo. Sem o exercício cotidiano da crítica e da autocrítica o conservadorismo toma ares de normalidade e nos domina. Pior, sem que a consciência crítica admita uma autocrítica, para a reformulação da conduta também dentro da lógica de um julgamento moral, ainda que adotando o padrão do culturalmente concebido, aprisiona-se o pensamento, banem-se as correlações e, como resultado, transfere-se para o conservadorismo, que justifica privilégios e dominações, a “autoridade” da razão, ainda que cinicamente expressa.
Além disso, no próprio campo da teoria crítica, as avaliações pertinentes a temas ligados a esferas socialmente reduzidas são desprezadas, como se somente as grandes questões estruturais fossem capazes de produzir mudanças sociais e econômicas essenciais à emancipação humana, o que, no entanto, sem uma perspectiva concreta de ação, ou diante da constatação da insuficiência do agir, atua em favor da inércia e, na sequência, forja uma postura conservadora.
Com tudo isso, o que seria necessário e bem-vindo para a constante evolução da condição humana acaba, por ataque de todos os lados, sendo transformado em distúrbio.
É aí que o pressuposto ético, adotado como porto seguro para a prática conservadora, atua com maior rigor para impedir que o senso crítico se produza, venha de onde vier. Qualquer avaliação crítica é atacada por meio do mesmo método de vinculação do juízo moral à prática, que serve, então, para desqualificar eticamente o autor. Se o autor da crítica não tem uma postura ética, no sentido de que seus atos correspondam integralmente à sua fala, as suas ideias sequer serão consideradas.
Diante de uma crítica, os que se sentem alvo dela, ou que não se veem dispostos a realizar os atos que se vislumbram como coerentes com a ideia posta, veem-se livres do debate de ideias trazendo à baila o falseado imperativo ético. Assim, com suposta autoridade moral, indagam ao crítico o que ele já fez para mudar a realidade que critica, lembram que o crítico está integrado à realidade analisada ou que procedeu, com a mesma lógica criticada, em situação análoga.
O argumento lógico, norteado pela ética invertida, que desconsidera as determinações do ser social, é utilizado para apontar uma eventual incoerência do crítico. Aquela necessidade de atração ao todo social passa a funcionar como uma fórmula mágica para se negar a produção de uma consciência crítica, até porque, conforme também se sustentará, se a crítica advém de “estranhos”, qual seja, de quem não está integrado à relação analisada, sua motivação é meramente fruto de represália, inveja ou tentativa de destruição.
Ou seja, os limites humanos, determinados pela sobrevivência e pelas necessidades de inserção e de pertencimento, no primeiro momento, tentam dominar o raciocínio e se isso não for suficiente, em momento posterior, funcionam, por impulso externo, como censores de quem se expressa fora do senso comum.
Partindo do pressuposto de que os seres humanos – assim como as instituições que criam – são incompletos e que devem estar, portanto, em constante evolução, a adoção generalizada do critério de avaliação prévia dessa suposta pertinência ética do interlocutor nos condena a um não pensar coletivo, fazendo com que a vida em sociedade se transforme em uma somatória (cada vez mais complexa e profunda, portanto) de práticas e argumentos fingidos, interessados, fugidios, disfarçados etc.
Como esse processo de impedimento da razão está nos conduzindo a uma espécie de guerra de todos contra todos para chegar em lugar nenhum, da qual, inclusive, resultam propostas ainda mais irracionais como a da implementação do autoritarismo, para banir o pensamento e impor condutas pela força, torna-se urgente que nos libertemos para o senso crítico, admitindo que constituem elementos essenciais da formulação crítica: desvinculação de fórmulas preconcebidas; sinceridade nos propósitos e na manifestação; busca constante do conhecimento; superação ou enfrentamento do medo das consequências pessoais da expressão do pensamento; disposição para ouvir e se inserir como objeto da própria crítica, como forma, inclusive, de dar impulso a um novo agir.
Importante deixar claro que não se deve extrair dessa avaliação a compreensão de que a análise crítica tem uma finalidade em si mesma e que, portanto, o autor está livre de qualquer tensão ética entre pensamento e ação. O que se está dizendo é que as ações, tantas vezes influenciadas por determinações sociais, não podem aprisionar o raciocínio, sendo certo que não basta admitir isso para que o pensamento se produza sem compromisso pertinente à ação ou para que quaisquer ações possam ser tomadas como justificadas em si mesmas.
Esse compromisso com o agir, ademais, não se extrai de uma preocupação de auto ajuda e sim da necessária – e verdadeiramente ética, que vincula a identificação do indivíduo ao que consegue projetar para o outro – contribuição para a construção coletiva de práticas de superação das diversas formas de opressão da condição humana, considerando, pois, a variedade de determinações sociais e culturais historicamente construídas nas diversas relações de dominação. Daí porque o método básico da análise crítica deve ser a verificação da materialidade histórica, sem perder a perspectiva de alteridade.
Então, não é o caso de o crítico simplesmente rechaçar as críticas que, em contrapartida, lhe são feitas, bastando-se na coerência teórica de suas ideias, até porque ninguém tem autoridade para definir, de plano, qual é o melhor pensamento ou a melhor forma de agir para aprimorar a condição humana. Deve não só as admitir (quando pertinentes e apoiadas em dados verdadeiros e não retoricamente inventados) como também integrá-las às suas ações, afinal, todo crítico deve ser, antes de tudo, crítico severo de si mesmo.
O ser humano é um projeto inacabado, em constante construção, e não se leva adiante essa “obra” sem formulações críticas e autocríticas, sem enfrentamento de ideais ou mesmo pela adoção, como dogma, da crença de que as estruturas sociais modulam de forma inexorável e insuperável o pensamento e, consequentemente, a ação, ainda mais quando, ao mesmo tempo, ao largo desse argumento, se procura desenvolver um pensamento que impulsione a ação concreta de superação dos problemas sociais, econômicos, políticos e culturais identificados.
A coerência e a tranquilidade como resultado do silêncio e da inércia só valem para quem já morreu.
Os desafios postos à condição humana são cotidianos e constantes. Enfrentá-los de frente, sem disfarçar limitações, contradições, dificuldades e angústias pessoais, é a única forma para sobreviver, manter ideais, assumir responsabilidades, agir e não envelhecer.
São Paulo, 15 de fevereiro de 2018.
[i]. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Editora Elefante, 2017.