Depois que veio a público, por meio de reportagem do site Metrópoles (https://www.metropoles.com/colunas/rodrigo-rangel/exclusivo-funcionarias-denunciam-presidente-da-caixa-por-assedio-sexual), a notícia de que um grupo de empregadas da Caixa Econômica Federal decidiu, no fim do ano passado, denunciar as situações de assédio sexual que vinham sofrendo do gerente-geral da instituição, o Sr. Pedro Guimarães, o tema relativo ao assédio sobre as mulheres nos ambientes de trabalho foi integrado à pauta da grande mídia.
Em poucos dias, no entanto, notícias de novas denúncias, também relacionadas ao meio ambiente de trabalho da Caixa, começaram a dominar o cenário midiático, só que, desta feita, tratando de “assédio moral” https://br.noticias.yahoo.com/ex-presidente-da-caixa-e-alvo-de-denuncias-de-assedio-moral-todo-mundo-tomar-no-c-153852999.html; https://veja.abril.com.br/coluna/radar-economico/caixa-recebeu-50-novas-denuncias-de-assedio-em-tres-dias/).
No primeiro momento, foi possível extrair do conteúdo do noticiário em questão uma espécie de repúdio ao assédio sexual. Mas, logo depois, o debate foi voltado para o assédio moral.
O tema do assédio sexual é por demais sensível e, uma vez colocado em pauta, exige que seja tratado de forma séria e consistente.
Considerando o contexto da superficialidade da informação massificada e também do interesse político-eleitoral em que o tema se inseriu, é primordial não permitir que o tema seja deturpado ou até mesmo que tenha esvaziada a sua relevância. Sobretudo, é essencial obstar que as causas do assédio sexual sejam simplesmente ignoradas.
O presente texto pretende contribuir para este registro.
Resumidamente, é de sua importância não diluir o assédio sexual dentro das questões relacionadas ao assédio moral. O assédio sexual não é mera decorrência, modalidade ou exacerbação do assédio moral.
Há, no assédio sexual, em que na quase totalidade dos casos as vítimas são mulheres trabalhadoras, uma explicitação do patriarcado, da divisão sexual do trabalho e do machismo que estruturam a nossa sociedade desde os seus primórdios.
O assédio sexual tem suas próprias raízes e estas precisam ser reveladas e consideradas, até porque, do ponto de vista estritamente jurídico, o assédio sexual é penalmente tipificado (art. 216-A, do Código Penal Brasileiro).
Quando se diz que o assédio sexual é uma espécie de assédio moral, o que se tem como efeito é a consideração de que, diante de uma denúncia de assédio sexual, se estaria cuidando de mera intercorrência decorrente da subordinação, retirando-lhe o caráter de opressão de gênero e de expressão do machismo em que está baseado.
Com isto o assédio sexual, nas suas mais variadas formas, se desenvolve com ares de normalidade, notadamente nos ambientes marcados pela hierarquização, como se verifica nas empresas capitalistas, que, inclusive, se valem dessas formas de opressão para, reforçando a sua posição de classe, potencializar a extração de valor da força de trabalho que aliena.
Mesmo que o assédio moral e o assédio sexual estejam ligados ao mesmo elemento fundamente da sociedade de classes que é a exploração da força de trabalho, o assédio sexual está fincado em vários outros fatores.
De fato, no assédio sexual encontra-se uma conjunção potencializada da opressão de classe e da opressão de gênero, ou, por assim dizer, uma interseccionalidade de diversos fatores. Não são fatores que se relacionam em uma linha de sucessão. Eles coexistem, de modo que o assédio sexual representa uma violência carregada de diversas formas de opressão.
No assédio sexual estão interligadas as questões de gênero e de classe, quando não se alimenta, também, de discriminação racial, expressão do escravismo que insiste em estruturar a nossa sociedade.
Tudo isto para dizer que, diante das muitas tentativas que se vêm promovendo para desviar o foco das denúncias de assédio sexual, de modo a inserir tudo no pacote do assédio moral, buscando, ao mesmo tempo, tirar da mídia o personagem acusado de assediador, corre-se o grande risco de deixar, mais uma vez, sem a devida resposta a opressão de gênero que constitui a base do assédio sexual.
Isto é muito grave porque uma das maiores (e já clássica) violências que se comete quando o tema é a opressão de gênero é a da tentativa de impedir que as denúncias a respeito sejam levadas a efeito e tratar assédio sexual como se estivesse falando de assédio moral é uma forma concreta de mudar de assunto.
A propósito, é importante advertir também para as diversas outras formas de combate ao devido tratamento do tema, como a desqualificação das mulheres que quebram a barreira do silêncio e se dispõem a falar a respeito. E, sobretudo, a avaliação restritiva da configuração do assédio, naturalizando as condutas e negando o seu efeito agressivo, principalmente quando este se expressa de forma insidiosa, por meio de “brincadeiras” ou “meros galanteios”.
Lembre-se, ainda, da tentativa de persuadir a vítima a não levar a questão adiante. Reduzir a gravidade do fato, equiparando-o a outros de muito menor potencial ofensivo, também, por certo, é um modo de pulverizar o conteúdo da denúncia, prenunciando, de certo modo, o fim trágico da culpabilização da vítima e vitimização do acusado.
E toda esta reação se manifesta automaticamente e até articuladamente, pois, como elucida a jurista Patrícia Maeda, "o movimento de ocultação se produz porque o assédio sexual é indigesto demais para uma sociedade machista".
Fato é que ao assédio sexual adicionam-se, na sequência, várias outras formas de violência, ligadas, por certo, aos mesmos fatores, fazendo com que se estabeleça uma espécie de pacto machista contra a integridade feminina. Os assediadores são muitos e se revelam a cada instante em que expressam uma fórmula para que uma denúncia de assédio sexual morra no vazio.
Tratar com seriedade do assédio sexual impõe a superação dos múltiplos elementos culturais machistas que constituem a nossa a compreensão de mundo. É, antes, um exercício autocrítico e construtivo da condição humana.
Não cabe banalização ou sonegação, pois o assédio sexual é uma violência, além de ser um renitente problema social.
Somente com estes pressupostos em mente, que conduzem, inclusive, a conferir credibilidade pressuposta à versão trazida pela vítima, é que se conseguirá conferir um efeito jurídico que traga alguma contribuição efetiva para o enfrentamento real desta violência.
É preciso, pois, continuar falando do assédio sexual de forma destacada, para que não seja, mais uma vez, ocultada ou naturalizada a questão de gênero que o constitui, sendo certo que a negação só serve ao propósito de manter e até reforçar a opressão.
São Paulo, 05 de julho de 2022.
(*) Presidente da Associação Americana de Juristas - Rama-Brasil. Professor da Faculdade de Direito da USP.