Já escrevi sobre o fato de a relação social entre motorista/entregador e empresa que opera por meio de plataformas digitais constituir-se como típico vínculo de emprego1. O texto mais recente de que participei sobre o tema pode ser encontrado aqui neste blog, que, aliás, tem outros sobre a mesma matéria, todos excelentes.
A questão é que o vínculo de emprego parece não ser o desejo de alguns trabalhadores e trabalhadoras que hoje têm sua força de trabalho exploradas sem direito algum. E há razões para isso. Razões importantes. Essas trabalhadoras e trabalhadores hoje organizam o próprio tempo de trabalho. Muitos trabalham para mais de uma empresa, o que não altera em nada a premissa explicitada na primeira frase deste texto.
Esse é o ponto que quero problematizar.
Não há impedimento legal para que uma pessoa tenha dois ou mais vínculos de emprego ao mesmo tempo. Nada impede que uma empregada trabalhe em horários flexíveis ou em poucos dias da semana. A remuneração por produção é uma lógica adotada entre várias categorias profissionais.
É fundamental, então, compreender bem as razões que levam trabalhadoras e trabalhadores a afirmarem que preferem seguir sendo tratados como parceiros ou empreendedores.
Há, em primeiro lugar, todo o fetiche que decorre da ideia sedutora de ser empreendedor de si mesmo. Afinal, telenovelas, filmes e livros insistem em contar histórias de pessoas que se “libertaram” do trabalho quando passaram, por exemplo, a vender sanduíches na praia.
A realidade é muito diferente disso e a prática cotidiana das entregadoras e entregadores a revela. Basta ouvi-los. Acidentes de trânsito, jornadas extensas, despesas insuportáveis para a manutenção do veículo, sem o qual não podem trabalhar, e a angústia de saber que sem trabalho não terão dinheiro. E, sem dinheiro, não poderão comprar sequer alimentos.
Nunca esqueço de uma entrevista que Jorge Souto Maior fez com o Paulo Galo, tendo o entrevistado narrado situações impressionantes. Entre outras coisas, referiu que quem transporta comida, muitas vezes trabalha com fome. E relatou que vários colegas que atuam em São Paulo não voltam para casa no final do dia porque moram muito longe e o gasto, com o combustível, não vale o deslocamento. Dormem na rua. Essa é uma vida de sofrimento, que não guarda identidade com o que se atribui, no senso comum, à condição de um trabalhador autônomo.
A autonomia, então, se resume à escolha do horário de trabalho e à possibilidade de receber por entrega, aumentando a remuneração com o aumento da quantidade de trabalho. E, claro, tem sempre o argumento fiscal, afinal vários subterfúgios foram criados para convencer a classe trabalhadora a “preferir” ser empreendedora de si mesma e, com isso, aceitar a espoliação em parâmetros inconstitucionais. Pois bem, nada impede que o empregado ajuste a realização de trabalho em horário flexível.
Essa já é a realidade, por exemplo, de muitas trabalhadoras e trabalhadores em várias áreas que realizam teletrabalho, como ocorre com frequência na área da tecnologia da informação. As pessoas trabalham de madrugada ou de manhã, ou no final do dia. E nada disso desconfigura o vínculo de emprego. A jornada, que tanto a Constituição quanto a CLT estabelecem, é o limite máximo, que visa a garantir vida fora do trabalho. Não é o mínimo, nem há em lugar algum na CLT a exigência de horário fixo como condição para que exista um vínculo de emprego. Trabalhar no máximo 8 horas por dia é um parâmetro internacional que tem por objetivo viabilizar descanso, convívio familiar, estudo e até mesmo consumo. Então, o reconhecimento de vínculo para entregadores e motoristas não significa impor redução de salário ou imposição de jornada. Significa o direito a descansar e até mesmo o direito de adoecer.
Do mesmo modo, o piso de uma categoria é só isso mesmo, qual seja, um piso. Não é o máximo de salário. Ao contrário, é a garantia de que mesmo fazendo menos horas de trabalho na semana, o valor mínimo será recebido. Garantia de que ainda que precise não trabalhar em determinado dia, quando se está acometido de alguma doença, COVID-19, por exemplo, a remuneração dos dias será paga.
Hoje, se um trabalhador informal se acidenta (o que é altamente comum entre os motoristas, pois há prazo para entregas realizadas em centros urbanos de tráfego intenso), ele deixa de trabalhar e por consequência de receber. Isso não é apenas um problema de ordem financeira, porque sem trabalhar ele não recebe e, portanto, não tem como dar conta dos gastos cotidianos indispensáveis à sobrevivência. É fator de estresse, de agonia. Saber-se doente, sem condições de trabalho, e sem qualquer amparo, causa angústia e por consequência adoecimento emocional.
Quanto à questão fiscal, o raciocínio não pode se limitar ao percentual de recolhimento do IR. Motoristas e entregadores que não tem vínculo de emprego reconhecido recebem apenas o percentual das entregas que realizam. Empregados recebem, além disso, férias, gratificação natalina, FGTS. Há obrigação de recolhimento previdenciário pelo empregador e, portanto, acesso ao sistema de previdência social. O percentual de imposto de renda descontado pelo empregador – que não é significativamente maior do que aquele que o próprio trabalhador já desconta como “parceiro” – quando colocado na ponta do lápis e relacionado com os valores que precisam ser pagos pelo trabalho assalariado, revelam que também aqui há vantagem concreta em ser empregado.
É claro que é sempre possível argumentar que o reconhecimento da condição de empregado não garante, por si só, a observância dos direitos por parte das empresas. Aliás, a burla aos direitos trabalhistas não é prerrogativa exclusiva desse tipo de empreendimento. Isso, porém, não pode justificar a desistência da luta pelo reconhecimento do vínculo. A inclusão de regra expressa na CLT dizendo que entregadores e motoristas que atuam por intermédio de plataforma digital são empregados terá, sem dúvida, efeito simbólico importante. Implicará um discurso oficial de proteção social.
Nesse momento, em que trabalhadoras e trabalhadores entregadores e motoristas foram chamados pelo governo para discutir uma regulação que os proteja, exatamente em razão da importância dessa atividade, tornada tão mais clara durante a pandemia, o que está no horizonte é uma regulação jurídica.
Não há, então, sentido em insistir no erro de estabelecer um estatuto social que não garanta a proteção social já prevista na Constituição para toda a classe trabalhadora.
É sempre bom lembrar que o artigo 7o. da Constituição não se refere a empregados, mas sim a trabalhadores, sublinhando a necessidade de estender a todas as pessoas que vivem do trabalho a proteção social contida na legislação trabalhista.
O fato de que a CLT é símbolo (de proteção social, mas também, de modo distorcido pelo senso comum, de sujeição a horário, ordens, penalidades) é exatamente o que faz com que boa parte dessas pessoas, que trabalham de forma uberizada, respondam por princípio que não querem “ser CLT”. Basta seguir a conversa, perguntar se essa pessoa gostaria de ter um mês de férias todos os anos, recebendo o salário integral acrescido de ⅓, se gostaria de receber o décimo terceiro; se acha importante ter acesso ao seguro-desemprego quando perder o trabalho. E assim por diante. Em regra, nas conversas e debates de que tenho participado, essas trabalhadoras e trabalhadores querem segurança social, gostariam de ter esses direitos garantidos. Apenas não querem ser subordinados. Querem ter autonomia.
Esse é um nó bem difícil de desfazer.
E de novo cabe refletir sobre a diferença entre o senso comum acerca da subordinação e aquilo que realmente está regulado na CLT.
A CLT não utiliza o termo subordinação nem define o que seja um vínculo de emprego. Em lugar disso, identifica quem são as pessoas que participam dessa relação social. E começa pelo empregador. O artigo 2o. diz que empregador é “a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”.
A expressão utilizada pelo dispositivo legal mencionado é “dirige a prestação de serviço”, não a vida de quem trabalha. A condição jurídica de empregado, portanto, não depende de se estar diante de uma situação em que o trabalhador deve cumprir horário sempre igual, obedecer ordens diretas ou sofrer penalidades. Nada disso tem previsão legal. A direção da atividade decorre do fato objetivo de que os meios de produção estão nas mãos da empresa. Direcionar a atividade é incluir o trabalho em uma lógica empresarial que será necessariamente definida por quem emprega, afinal quem produz (serviço ou mercadoria) precisa organizar e dizer como funcionará essa produção. O sistema capitalista se fundamenta na produção e na circulação de mercadorias e serviços. Para isso, o trabalho humano é necessário para a empresa. Então, ele é necessário para quem vive do trabalho (e só tem a força de trabalho para oferecer nessa troca), mas também para quem emprega. Não há como uma empresa de entrega de alimentos funcionar sem entregadores, por exemplo.
O artigo 3o. da CLT refere que empregado é “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Dependência é o termo escolhido. Não subordinação. Muitos livros e debates foram feitos sobre isso. Essa dependência é, em regra, econômica, pois as pessoas trabalham para ter o dinheiro com o qual se alimentam, compram roupa, pagam aluguel ou remédio. Então, viver em uma sociedade de trabalho obrigatório significa que não escolhemos trabalhar. Precisamos trabalhar. Mas não é apenas isso. É também dependência jurídica (social, política, etc), porque decorre do fato de que o trabalho será realizado dentro de uma lógica em que os meios de produção, o direcionamento da atividade, o pagamento da remuneração e a demanda de trabalho serão estabelecidos por quem está contratando.
É usual conceituar a dependência (ou a subordinação se quisermos usar esse termo) como o oposto da autonomia. Mas isso ocorre porque, de fato, não há autonomia em uma sociedade, na qual sem trabalhar não conseguimos acesso nem ao alimento. Se vincular-se a um trabalho para receber salário é a condição fundante para viver em sociedade (ter onde morar, o que comer, o que vestir), não há autonomia. Se vender a força de trabalho para uma empresa significa aceitar e seguir o direcionamento da atividade (o estabelecimento da plataforma em que a demanda de trabalho aparecerá, a forma de avaliação, de remuneração, a quantidade de trabalho, etc), não há autonomia. Se quem oferece o trabalho não tem o capital, não tem os meios de produção, não há autonomia. Fácil perceber, então, que trabalho efetivamente autônomo em um modelo de sociedade como o nosso é algo raro, ou mesmo inexistente.
A questão é distorcida, porém, diante de tanta regulação precarizante que retira grupos de trabalhadores da condição de empregados, dizendo-lhes autônomos, quando em realidade não são. Todas elas, desde a lei sobre cooperativas de prestação de serviços, passando pelos auxiliares de carga e descarga, manicures, diaristas, etc, constituem estratégias de segregação que dificultam a luta por melhores condições de existência para quem vive do trabalho e, consequentemente, para todas as pessoas. Como sempre refere o amigo Ricardo Antunes, dividir a classe trabalhadora é desde sempre uma das principais armas de quem detém o capital.
A autonomia que hoje existe para quem vende trabalho e não tem reconhecidos os direitos trabalhistas é nenhuma. Escolher o horário em que “se ativa”, trabalhar com veículo próprio ou receber por produção não significam a possibilidade de gerir um empreendimento, determinar o valor do trabalho, definir quanto investir ou para quem prestar (ou não prestar) algum serviço e, especialmente, lucrar com isso. A dependência, que é o critério legal para a caracterização de um vínculo de emprego, é exatamente a ausência de capital (e, portanto, dos meios de produção), aliada à necessidade de trabalhar para ter acesso a bens materiais.
A principal reflexão a ser feita é porque justamente essas trabalhadoras e trabalhadores estão sendo chamados a conversar sobre uma regulação jurídica que os (des)ampare? Não houve a mesma atenção com as manicures e cabeleireiras, com as diaristas ou com os falsos cooperados. O que se está reconhecendo – e é isso que torna o momento presente singular e tão importante – é o fato de se tratar de uma categoria estratégica. Afinal, a logística, a entrega de alimentos, o transporte de pessoas constituem condição para o funcionamento da sociedade contemporânea. Se motoristas e entregadores pararem não são só as empresas que não conseguirão mais lucrar. Toda a sociedade sentirá o efeito da falta desse serviço.
Há também o fato de que essas pessoas, mesmo trabalhando sem proteção social e tendo suas vidas cruelmente expostas durante a pandemia, se organizaram. Fizeram greve, reconhecem sua condição de precariedade e já vêm travando uma luta importante por melhores condições de trabalho. Elas conseguiram reverter o discurso que as invisibilizava na condição de “parceiros” satisfeitos e se colocaram na centralidade da luta de classes no Brasil de hoje. Isso não é pouco.
Por fim, sabe-se bem da importância que a uberização do trabalho tem para toda a classe trabalhadora. A própria criação desse neologismo, dessa palavra para explicitar uma exploração do trabalho fora dos parâmetros constitucionais, é indicativa da centralidade desse trabalho e, portanto, da importância social de reconhecer proteção a essas trabalhadoras e trabalhadores.
O parâmetro de proteção que se estabelecer agora não atingirá apenas quem hoje já vive fazendo entregas ou transportando pessoas. Atingirá toda a sociedade.
E é sempre bom lembrar que o transporte de pessoas e de coisas não foi criado pelas empresas que passaram a operar utilizando plataformas digitais. Basta ver a história de luta e de trabalho dos motoboys.
E pensar se a vida melhorou ou piorou depois que o trabalho começou a ser explorado através dessas grandes empresas. Aumentou a remuneração? Reduziu a jornada? Mais direitos foram reconhecidos?
Se as respostas forem negativas, eis o que significa a uberização do trabalho. Piora nas condições de trabalho, sob o disfarce da autonomia. Sob a distorção, na verdade, do que significa ter autonomia. Nessa forma de exploração de trabalho o que se confere, concretamente, é a falsa autonomia de não poder adoecer, não poder aposentar, não ter férias e assumir todo o custo do próprio trabalho, permitindo que as empresas lucrem, sem qualquer contrapartida.
Pode ser sim importante regular alguns direitos que são próprios dessas atividades. O ponto de partida, porém, é necessariamente reconhecer a condição de empregados. O direito à CLT. A importância disso. E partir daí discutir que outros direitos podem ser reivindicados, que dizem com a especificidade dessa categoria de trabalhadoras e trabalhadores.
Porto Alegre, 05 de fevereiro de 2023.
1 SEVERO, V. S.; RODRIGUES, C. . O resgate do direito do trabalho em tempos de pandemia. Revista LTr. Legislação do Trabalho, v. 84, p. 465-474, 2020.