Certamente, não por obra do acaso, dias atrás alguém sugeriu revigorar os termos do AI-5.
Para quem não se lembra do conteúdo do referido documento editado em 1968 e possa ter considerado natural falar a respeito, urge reproduzir alguns de seus dispositivo
Resolve editar o seguinte:
Ato Institucional
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Art. 2º O presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo presidente da República.
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Art. 3º O presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição.
Parágrafo único. Os interventores nos estados e municípios serão nomeados pelo presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam, respectivamente, aos governadores ou prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixadas em lei.
Art. 4º No interesse de preservar a Revolução, o presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.
Parágrafo único. Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem os seus mandatos cassados não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.
Art. 5º A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa simultaneamente, em:
I. cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II. suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III. proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de freqüentar determinados lugares;
c) domicílio determinado.
§ 1º O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados.
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Art. 6º Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
§ 1º O presidente da República poderá, mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou por em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.
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Art. 10º Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
Art. 11º Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.
Art. 12º O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 13 de dezembro de 1968."
Explica-se, pois, porque a reação das instituições públicas e privadas foi bastante forte, sendo amplamente difundida e aplaudida pela grande mídia.
Ocorre que, com relação aos cidadãos trabalhadores, a regularidade constitucional e a essencialidade das liberdades democráticas e dos Direitos Civis, Políticos, Sociais e Humanos têm sido negadas, de fato, desde a promulgação da Constituição de 1988 e com maior intensidade nos últimos anos, sem que a mesma reação institucional e midiática se verifique. Aliás, muito pelo contrário, não raro as instituições em questão se apresentam como apoiadoras e até agentes do autêntico estado de exceção permanente a que foi conduzida a classe trabalhadora.
A Constituição Federal de 1988, fruto de um processo de redemocratização no qual a classe trabalhadora organizada se postou como protagonista, alçou os direitos trabalhistas ao patamar de Direitos Fundamentais e estabeleceu um projeto de sociedade no qual a economia deveria se guiar pelos ditames da justiça social (art. 170), de modo a garantir aos trabalhadores e trabalhadoras uma melhoria progressiva de sua condição social (art. 7º), com realce para a proteção do emprego contra a dispensa arbitrária (inciso I, do art. 7º) e uma jornada normal de trabalho não superior a 8 horas diárias e 44 horas semanais, facultada a “compensação de horários” e a “redução da jornada”, por meio de negociação coletiva (inciso XIII, do art. 7º).
Neste projeto, restou claro que a proteção da dignidade humana seria um princípio fundamental da República (art. 1º, III), que o trabalho e a livre iniciativa se legitimariam por seu valor social (art. 1º, IV) e que a propriedade atenderia uma função social (art. 5º, XXIII; art. 170, III; e art. 186).
Além disso, adicionando aos patamares mínimos de proteção social, nos moldes dos direitos explicitados na Constituição, se assegurou aos trabalhadores, nos moldes traçados da ordem democrática, a possibilidade do diálogo social por meio do direito da liberdade sindical (art. 8º) e de um direito de greve livre das amarras do Estado (art. 9º).
Os compromissos constitucionais não se efetivaram, no entanto. Seguindo o embalo do neoliberalismo que invade de vez o país na década de 90, o que se viu foi um processo de destruição das garantias constitucionais trabalhistas, seja por uma interpretação restritiva da Constituição, seja pelo advento de uma legislação que, contrariando expressamente o pacto social e político firmado em 1988, reduzia direitos e ganhos dos trabalhadores como forma de alavancar a economia e inserir o país na concorrência internacional. Os interesses econômicos estiveram sempre em primeiro plano, sob o argumento de que seria preciso melhor a competitividade das empresas no cenário internacional para que fosse possível, depois, beneficiar os trabalhadores e enfrentar as questões sociais. Esse raciocínio que imperou na política econômica republicana brasileira, com apoio jurídico e jurisdicional, desde, pelo menos, meados da década de 60, quando se falava em crescer o bolo para depois reparti-lo, só produziu acumulação da riqueza nas mãos de muitos poucos, evasão de divisas, empobrecimento e sofrimento da classe trabalhadora, trabalho em condições análogas à de escravo (que ainda é a nossa chaga), número recorde de acidente do trabalho, concentração da riqueza socialmente produzida e consequente aumento da desigualdade.
Os problemas sociais e econômicos gerados pela política de favorecimento das grandes empresas multinacionais, adotada, como dito, desde meados da década de 60, foram enfrentados com aplicação de nova dose do mesmo remédio.
Na década de 60, por influência dessas ideias, várias reduções de direitos trabalhistas foram implementadas: parcelamento do pagamento do 13º salário (Lei n. 4.749, de 13 de agosto de 1965); permissivo da redução de salários por decisão judicial (Lei n. 4.923/65); representação comercial: primeira fissura no conceito de subordinação (Lei n. 4.886/65); fim da estabilidade no emprego (Lei n. 5.107/66 — FGTS); introdução da noção de ato inseguro da vítima nos acidentes do trabalho (Decreto-Lei n. 229/67).
Com efeitos nefastos já sentidos, a “estratégia”, tragicamente, se amplia na década de 70: contrato de safra (Lei n. 5.889/1973); abertura da porta para a intermediação de mão de obra - terceirização (Lei n. 6.019/74); contrato de estágio – sem vínculo empregatício (Lei n. 6.494/77; vendedor ambulante – sem vínculo empregatício (Lei n. 6.586/78).
Na década de 80, a linha legislativa restritiva de direitos será sentida até 1983, com a edição da Lei n. 7.102/83. De fato, o que se verifica no período é que as tensões sociais provenientes da política econômica recessiva, alimentadas também pelo ambiente de supressão das liberdades civis e democráticas, interrompem a linha de redução de direitos. A partir de 1985, com a redemocratização, pode-se até enumerar leis que foram benéficas aos trabalhadores, como a Lei n. 7.313, de 17 de maio de 1985, que limitou em 8 horas a jornada de trabalho dos vigias, suprimindo a alínea “b” do art. 62 da CLT, que excluía essa categoria de trabalhadores do capítulo da CLT referente à duração do trabalho; a Lei 7.414, de 09 de dezembro de 1985, que alterou a redação do artigo 135 ampliando de 10 para 30 dias o prazo mínimo, para participação por escrito ao empregado, do período de concessão das férias anuais remuneradas; a Lei n. 7.430, de 17 de dezembro de 1985, que modificou a redação do caput do art. 224 da CLT para incluir os empregados da Caixa Econômica Federal na jornada de trabalho de 6 horas; a Lei n. 7.449, de 20 de dezembro de 1985, que alterou o parágrafo único do art. 566 da CLT, retirando a proibição de sindicalização dos empregados da Caixa Econômica Federal; a Lei n. 7543, de 2 de outubro de 1986, que alterou o teor do § 3º do artigo 543 da CLT, a fim de estender a estabilidade ao empregado associado investido em cargo de direção de associação; e o Decreto n. 95.461, de 11 de dezembro de 1987, que tornou novamente vigente no Brasil a Convenção n. 81 da OIT (relativa à Inspeção do Trabalho), o que havia sido interrompido desde 05 de abril de 1971.
De forma mais concreta, essa inversão da linha legislativa é sentida na Constituição de 1988, que, pela primeira vez, elegeu os direitos trabalhistas como direitos constitucionais e, além disso, posicionados no Capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais, como adiantado acima.
No entanto, a desconsideração com a questão social e a renitência em superar os marcos oligárquicos, escravistas ,elitistas e colonialistas, impediram que se avançasse em direção da efetivação de um Estado Social no Brasil, conforme preconizado na Constituição, cujo cumprimento não era, ou não deveria ter sido, uma questão de opinião pessoal.
Fato é que, como já adiantado, o que se verifica na década de 90 é um desprezo generalizado e declarado à Constituição (sobretudo pela via da interpretação restritiva e deturpadora de direitos expressamente reconhecidos, levada adiante por atuação da própria doutrina e jurisprudência trabalhistas), impulsionando-se uma retomada da política econômica de favorecimento institucional aos interesses econômicos, em detrimento da busca da justiça social e da efetivação dos direitos sociais e trabalhistas constitucionalmente consagrados.
Em direção oposta à Constituição Federal, o que se vê na década de 90 (até 2001) é a implementação de novas fórmulas de precarização do trabalho: limitação ao exercício do direito de greve constitucionalmente assegurado (Lei n. 7.783/89); terceirização no setor público (Lei n. 8.031/90); terceirização na atividade-meio (1993 - Súmula 331 do TST); cooperativas de trabalho – sem vínculo empregatício (Lei n. 8.949/94); denúncia da ratificação da Convenção 158 da OIT, em 23 de dezembro de 1996, pelo Poder Executivo (Decreto n. 2.100); reforço da terceirização no setor público (Lei n. 9.491/97); trabalho em campanha eleitoral – sem vínculo empregatício (Lei n. 9.504/97); contrato provisório, com redução do FGTS para 2% (Lei n. 9.601/1998); banco de horas (Lei n. 9.601/1998); trabalho voluntário – sem vínculo empregatício (Lei n. 9.608/98); trabalho a tempo parcial (Medida Provisória n. 1.952-18, de 9 de dezembro de 1999); negação da natureza salarial do montante pago e instituição da mediação e arbitragem de ofertas finais, para a solução dos conflitos coletivos de trabalho (Lei n. 10.101/00); alteração do art. 458 da CLT, para afastar a natureza salarial de diversas parcelas recebidas pelo empregado (Lei n. 10.243/01).
Em 2002, ano de eleição, o ataque aos direitos trabalhistas cessa, mas, contrariando o clima de esperança instaurado com o resultado da eleição presidencial, prossegue, de 2003 em diante, com a Lei do “primeiro emprego” – com incentivos fiscais para empresas que aumentassem o número de empregados jovens (Lei n. 10.748/03); desconto em salário em virtude de empréstimo bancário (Lei n. 10.820/03); recuperação judicial, que retirou do crédito trabalhista (superior a 250 salários mínimos) o caráter privilegiado com relação a outros créditos e tentou eliminar a figura da sucessão trabalhista (Lei n. 11.101/05); permissão às microempresas e empresas de pequeno porte para, por meio de negociação coletiva, estipular o tempo médio gasto pelo empregado, quando o local de trabalho for de difícil acesso ou não servido por transporte público e o empregador fornecer a condução (Lei Complementar n. 123/06, acrescentou o § 3º ao artigo 58 da CLT); contrato de estágio – mantida a ausência de vínculo empregatício (Lei n 11.788/08); trabalho avulso – sem vínculo empregatício (Lei n.12.023/09); nova regulamentação das cooperativas de trabalho, mantendo a ausência de vínculo empregatício (Lei n. 12.690/12); instituição da Política Nacional de Participação Social (PNPS), ao qual se acoplou projeto de lei que visa a criação de um Sistema Único do Trabalho (SUT), que, de forma sutil, retomou a ideia embutida na Emenda 3, de negar o caráter de indisponibilidade da legislação trabalhista (Decreto n. 8.243/14); ampliação das exigências para aquisição dos benefícios da pensão por morte e seguro-desemprego (MPs 664 e 665/14, revertidas nas Leis ns. 13.134/15 e 13.135/15); retrocessos na lei dos motoristas (Lei n. 12.619/12), impostos pela Lei n. 13.103/15; resistência à equiparação dos direitos dos trabalhadores domésticos aos demais trabalhadores prevista na EC 72/13 (Lei Complementar n. 150/15); Política de Proteção ao Emprego, por meio da redução temporária, em até trinta por cento, da jornada de trabalho dos empregados, com a redução proporcional do salário (art. 3º) (MP 680/15, convertida na Lei n. 13.189/15; ampliação das possibilidades de autorização do empregado (e também segurados do INSS e servidores públicos federais) para desconto direto em seu salário (em até 30%), com menção expressa, desta feita, às dívidas de cartão de crédito (no limite de 5%), além de passar a permitir que o desconto também se dê nas verbas rescisórias, o que, antes, estava vedado (MP 681/15, convertida na Lei n. 13.172/15). E isso sem considerar que nenhum dos dispositivos legais restritivos de direitos criados na década de 90 foi revogado...
Durante esse período todo, desde a década de 60, em paralelo ao aumento do sofrimento da classe trabalhadora e o desrespeito reiterado ao projeto constitucional, o que se verificou foi o aumento constante do patrimônio e dos lucros das grandes empresas e das instituições financeiras...
Como era bem possível prever, a política de acumulação da riqueza produzida, que é recessiva, geraria nova crise econômica, com redução de consumo, aumento de desemprego etc.
E qual foi a “solução” pensada? A resposta é até meio óbvia. A única saída imaginada foi a de reduzir direitos trabalhistas, para melhorar a saúde econômica das grandes empresas.
Começa-se a se difundir midiaticamente o tema da “reforma”, como se a legislação trabalhista no Brasil fosse a mesma desde 1943, quando editada a CLT.
Nos anos de 2016 e 2017 verificou-se a formação de um pacto muito forte entre segmentos do poder político, do poder econômico e da grande imprensa que, para chegar ao resultado almejado da “reforma” trabalhista, concebeu como natural a quebra das bases constitucionais que garantiam aos trabalhadores e trabalhadoras o princípio do não retrocesso social.
Em 2017, por meio da Lei n. 13.467 se engendrou um modelo de relações de trabalho que estimulou a redução de ganhos dos trabalhadores, pelo estímulo à adoção de contratos precários, redução do poder negocial dos sindicatos de trabalhadores e criação de obstáculos para a propositura de reclamações trabalhistas.
O efeito já sentido, após 02 anos de vigência da lei, foi o aumento do sofrimento no trabalho, redução de ganhos dos trabalhadores e trabalhadoras, aumento da precarização, manutenção dos níveis de desemprego, uma ainda maior concentração de renda, evasão de divisas, desigualdade social etc. Enfim, uma piora social e econômica generalizada...
Não fosse isso, se estaria comemorando o sucesso da “reforma” e não se buscando novas soluções...
E em qual “solução” se pensa? Ora, em reduzir ainda mais direitos dos trabalhadores...
A questão é que no presente momento, depois de todas essas experiências, o que se tem é um quadro de direitos extremamente reduzidos e que, na verdade, sequer são respeitados, sobretudo em razão dos obstáculos criados para o acesso à Justiça do Trabalho (que se mantém sob constante ataque) e a profunda limitação institucional da atuação da Auditoria Fiscal do Trabalho (agravada com a extinção do Ministério do Trabalho). O número crescente da “informalidade” nas relações de trabalho reflete esse ambiente de desrespeito generalizado à legislação trabalhista, que impacta diretamente no custeio da Previdência Social.
É nesse contexto que se apresenta a MP 905, de 11 de novembro de 2019, já refletindo o fundo do poço a que chegamos, não apenas do ponto de vista do abandono da promessa constitucional da elaboração de um projeto econômico que fosse voltado à redução das desigualdades sociais, com distribuição da riqueza coletivamente produzida por meio da efetivação das garantias e direitos fundamentais de natureza social, mas também das próprias bases democráticas.
Ainda que, de forma mais acertada, se deva dizer que a classe trabalhadora foi mantida em estado de exceção permanente desde a década de 60, com seus direitos sociais e fundamentais suspensos, é possível reconhecer que ao menos um arremedo de democratização se verificou após a promulgação da Constituição de 1988.
Na “reforma” trabalhista, instituída graças a um processo de “ruptura democrática”, como chegou a ser reconhecido pelo próprio relator do projeto de lei na Câmara dos Deputados, já se havia desprezado todos os limites constitucionais do regular processo legislativo, impondo-se a fórceps, em forma de lei, os interesses específicos do grande capital. Mas tudo ainda se fez com algum verniz retórico (o que não altera a essência ilegítima do processo legislativo instaurado)...
Agora o que se promove, com a Medida Provisória n. 905, é uma afronta concreta, direta, reta e convicta à Constituição. Mas, como se trata de um ataque aos direitos trabalhistas, com benefício ao poder econômico, a indignação institucional manifestada é muito pouca ou quase nenhuma, bem ao contrário daquela que se verificou diante do discurso de um deputado sobre a retomada do AI-5.
Supõem que como a classe trabalhadora já está acostumada a ver seus direitos constitucionais desrespeitados, como já está habituada a sobreviver sem direitos, sem moradia, sem transporte, sem saúde, sem educação, e, como já foi afrontada, de forma mais intensa e recente, com as “reformas” trabalhista e previdenciária, cujo argumento central justificador foi o de que eram os “privilégios” dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros os culpados pela “triste” situação das empresas e bancos, por que, afinal, não avançar de uma vez sobre o que ainda resta dos direitos trabalhistas e fazê-lo de forma autoritária? Até porque se o poder econômico, beneficiado com a situação, e as instituições públicas e privadas, sentindo-se distantes do problema, não reagirem, já teria consumado o balão de ensaio para avançar em outras pautas, com o mesmo método e seus aparatos repressivos necessários e consequentes...
O que é preciso perceber, concretamente, portanto, é que a MP 905 não é apenas uma tentativa de extrair dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros a dignidade que lhes resta (pois não se pode dizer outra coisa de um texto que tributa seguro-desemprego, no contexto de um pacote econômico que isenta e perdoa dívidas tributárias de empresas). O que se pôs na mesa foi uma cartada para testar o apetite das instituições e do povo brasileiro para a defesa da Constituição.
E só de se colocar em questão essa afirmação, considerando-a exagerada, já seria possível constatar que a estratégia, infelizmente, pode funcionar. Afinal, não há um fundamento sequer, nem com a máxima forçada de barra possível, que se possa encontrar no art. 62 da Constituição Federal para que se utilize uma Medida Provisória para realizar uma nova e profunda “reforma” estrutural trabalhista, ainda mais diante de um conteúdo que, a cada dispositivo, afronta as bases jurídicas e políticas constitucionais.
A eventual aplicação e validação jurídica da MP 905 representará, pois, um golpe decisivo e talvez definitivo na já combalida democracia brasileira e no Estado de Direito Social erigido sobre os Direitos Fundamentais e Humanos, que um dia se imaginou instaurar no país.
A par de não haver base para se regular questões trabalhistas com tamanha abrangência e profundidade por meio de tal instrumento legislativo, a MP 905 simplesmente despreza toda a rede de proteção trabalhista fixada na Constituição.
Com efeito, ao instituir o denominado “contrato verde e amarelo” com redução de custo para as empresas, para a contratação de pessoas “entre dezoito e vinte e nove anos de idade”, e ainda com redução de garantias trabalhistas (FGTS, 2%; contrato a tempo determinado de até 24 meses, sem direito a indenização em caso de rescisão antecipada; negociação individual em temas de negociação coletiva etc.), instaura-se uma quebra de isonomia no mercado de trabalho que não possui qualquer respaldo Constitucional.
Ora, pela Constituição Federal, não há subclasses de trabalhadores. O que se tem na Constituição Federal é uma base de direitos mínimos aplicáveis a todos, até para que não se estabeleça uma concorrência destrutiva de garantias entre os próprios trabalhadores. E o que se verifica na MP é uma tentativa de causar uma cisão no seio da classe trabalhadora, para que a redução de direitos de uns, mas que lhe geram o “benefício” de sair do desemprego, impulsione a redução de direitos de outros.
Verifique-se que a própria MP incentiva a adoção de uma política recessiva de salários, aduzindo que os benefícios econômicos da lei só serão aproveitáveis pelas empresas nas situações em que o salário pago não for superior a “um salário-mínimo e meio nacional”.
Fato é que, embora possa beneficiar diretamente algumas empresas e alguns jovens desempregados, não se vislumbra qualquer proveito real à economia brasileira com as fórmulas recessivas adotadas pela MP. Muito pelo contrário, a “solução”, como já visto historicamente, tende a aprofundar os problemas econômicos, ainda mais porque o que resulta da lógica jurídica da MP é menos arrecadação para a Seguridade Social, redução do financiamento das políticas públicas que se apoiam no FGTS, redução do ganho da classe trabalhadora, gerando, por consequência, menor consumo e mais desemprego...
Falando ainda do ponto de vista econômico, mas no aspecto dos interesses particulares de empregadores, resta sempre a questão do risco proveniente da adoção de um negócio jurídico cuja base legal é incapaz de conferir a tão perseguida segurança jurídica. A vantagem econômica obtida com a adoção de contratos “verdes e amarelos” pode ser efêmera e, rapidamente, se transformar em prejuízo, com o reconhecimento das inconstitucionalidades da MP 905.
Então, fica claro que a edição da MP 905 atende unicamente aos interesses de uma estratégia política, com o objetivo de testar o apetite das instituições na defesa das bases constitucionais. É dentro desse contexto, aliás, que se explica a reiteração de menção ao AI-5, realizada, desta feita, pelo Ministro da Economia. Ao dizer que se houver reação às medidas do governo o AI-5 pode ser chamado[1], o que o Ministro fez foi, claramente, uma afronta à democracia e uma ameaça às instituições democráticas.
Mas se reações de contrariedade se mantiverem no nível do discurso, ou seja, se, apesar de falas indignadas, as iniciativas inconstitucionais promovidas pelo governo vingarem sem qualquer reação institucional, sob a consideração, no caso concreto, de que com relação aos interesses da classe trabalhadora a base constitucional pode ser destruída, criando-se, inclusive, a ilusão de que uma aliança para a conclusão dessa obra as deixa imunes de quaisquer ataques, os que ameaçam resgatar o AI-5 nem precisarão tentar cumprir as ameaças, pois a quebra do Estado Democrático de Direito já estará consumada.
A MP 905 nos posiciona diante de uma encruzilhada histórica, na qual a pergunta que direciona para os caminhos, feita aos setores ligados ao grande capital, é: se o poder econômico e a grande imprensa (na qualidade de entidade empregadora) estão dispostos a sacrificar (de vez) as bases democráticas para obtenção de uma pequena e efêmera vantagem financeira?
Para as instituições jurídicas, a pergunta é: se querem preservar a razão de sua existência...
E para cada um de nós: se a democracia, afinal, importa ou não!!!
[1]. https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/11/26/paulo-guedes-fala-da-possibilidade-de-novo-ai-5-se-corrige-e-diz-que-e-inconcebivel-declaracao-provoca-reacoes.ghtml