Quem, em um carro, quiser passar pelo Elevado Presidente João Goulart (o “Minhocão”) em sábados, domingos e feriados vai se deparar com a placa indicando que o local fica inacessível para veículos automotores em tais dias.
Diante de tal situação será impossível não lembrar da MP 881 que pretende transformar domingos e feriados em dias normais de trabalho, fixando uma liberdade plena para o funcionamento de toda e qualquer atividade, sem nenhum tipo de intervenção do Estado.
O fechamento do local em questão se destina a interromper a lógica massificadora do trabalho, abrindo espaço para o lazer e os convívios social e familiar. Uma forma, inclusive, dos cidadãos recuperarem os espaços urbanos que lhes foram furtados pelos automóveis.
Mas isso só é possível porque se concebeu, historicamente, a relevância dessa quebra e desse confronto de valores.
Imagine todas as pessoas que residem na zona leste tendo que ir trabalhar na zona oeste sem acesso ao “Minhoção” e com horários reduzidos de trens do Metrô e da CPTM.
Os defensores da medida se apoiam na mesma ladainha da necessidade ou naturalização da redução de direitos trabalhistas e humanos como forma de solução dos problemas da economia, afirmando, inclusive, que a generalização do trabalho aos domingos vai ampliar o emprego[ii].
Então, segundo preveem, o “Minhocão” deverá ser reaberto para automóveis nos domingos e feriados porque milhares de pessoas que estariam no lazer (ou no desemprego) terão que se locomover para o trabalho em escritórios, escolas, lojas, fábricas...
E, transformados em mais um dia de trabalho, com tudo funcionando normalmente, é natural que nos sábados, domingos e feriados também estejam em funcionamento as repartições públicas no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, não é mesmo?
As perguntas que não querem calar são: o Congresso Nacional vai funcionar normalmente nos sábados, domingos e feriados? Os órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário vão funcionar normalmente em tais dias? O contingente de policiais militares e civis será o mesmo nos sábados, domingos e feriados? As partidas de futebol serão realizadas em dias normais de trabalho e nos horários de trânsito elevado? E quem serão os torcedores nos estádios? Só para ficar em algumas poucas indagações...
Tudo isso estaria justificado pela liberdade econômica, diriam os adeptos da MP 881. Mas, e como ficariam os interesses de tantos empreendedores que dependem comercial e industrialmente das atividades de lazer, de arte e de cultura?
O argumento do aumento do emprego que decorreria desse quadro digno de uma cena de “Metrópolis” (Fritz Lang - 1927) é também uma grande falácia.
Nenhum empregador sairá por aí – em momento de crise estrutural – contratando empregados só porque pode funcionar no domingo. Seria preciso, para isso, que tivesse alguma garantia de retorno de consumo e a tendência, portanto, caso queiram se envolver nesse experimento, é que exijam de seus empregados atuais a realização de trabalho em tais dias, fazendo-o, inclusive, de um tal modo que não gere aumento de custos.
Enfim, o que só aumentaria mesmo é o sofrimento no trabalho.
E esse sofrimento é causa, bem se sabe, de adoecimentos e acidentes do trabalho. Com isso, o efeito mais concreto que se pode antever de uma generalização do trabalho em domingos e feriados é meramente o maior custo social de natureza previdenciária com os afastamentos, que, ao mesmo tempo, geram queda de produtividade, em um círculo vicioso de deterioração da economia e da sociedade do trabalho.
Ou será que vão dizer que “não é bem assim”; que “não serão todas as atividades que funcionarão aos domingos” etc? Mas se for isso, qual o sentido da liberação geral? E, mais ainda, como dizer que uma autorização de funcionamento aos domingos e feriados, que seria “naturalmente” restrita a alguns segmentos, representaria fator de redução massiva do desemprego?
O fato concreto é que essa autorização legislativa só serviria para os setores econômicos que já se valem da prática do trabalho em domingos e feriados, como as grandes redes de supermercados, as lojas em shoppings e comércio em estâncias turísticas. Esses segmentos, no entanto, pelas regras atuais, dependem, para funcionamento, de autorização de lei municipal (art. 30, I, da CF) e de negociação coletiva com os sindicatos de trabalhadores (Leis ns. 10.101/00 e 11.603/07). A facilitação generalizada tende a atingir, inclusive, no sentido da fragilização do poder de negociação dos trabalhadores, alguns serviços como hospitais, companhias aéreas, transportes, restaurantes, padarias e farmácias, que, atendendo ao interesse público, já possuíam, há décadas, autorização legal para funcionamento aos domingos e feriados.
Assim, sem qualquer efeito generalizante, o que se projeta com a alteração proposta pela MP 881 é unicamente a facilitação da vida de grandes empresas comerciais, em detrimento de uma liberdade econômica que preserve regras mínimas de proteção contra a concorrência desleal e em favorecimento do processo de formação de oligopólios e de concentração da riqueza socialmente produzida, ao que se somam, ainda com maior intensidade, as outras alterações propostas pela MP 881, da liberação da marcação de cartão de ponto e da marcação de ponto por exceção. Vale a lembrança de que tudo isso está sendo proposto em um país que promoveu recentemente intensa redução de direitos trabalhistas e que no jogo da acumulação da riqueza nas mãos de poucos ostenta a condição de campeão[iii].
A necessidade de negociação com os sindicatos para o funcionamento aos domingos e feriados confere aos trabalhadores a possibilidade de buscarem contrapartidas como melhores salários e outras condições de trabalho. O requisito da autorização legal permite que os Municípios preservem suas identidades, inclusive culturais, e busquem efetivar políticas de ordem pública ligadas à saúde, ao esporte, ao lazer, ao transporte e à segurança, por exemplo.
O que se tenta promover, por conseguinte, é uma redução ainda mais intensa do poder de negociação dos trabalhadores. Repare-se que a MP autoriza que a negociação para o trabalho aos domingos e feriados se faça por ajuste individual, permitindo que a pressão econômica funcione livremente para afastar qualquer resistência coletiva dos trabalhadores.
Até o presente momento, os grandes empregadores, que possuem nicho de mercado em domingos e feriados, para que, de fato e de direito, possam exercer sua atividade, precisam negociar com os sindicatos e mesmo com o poder público local, para que se respeitem condições de ordem pública. Com a aprovação da MP, na qual o pressuposto do marco regulatório está invertido, os trabalhadores teriam que ceder em outros direitos, inclusive salários, caso queiram manter ao menos a excepcionalidade do trabalho em domingos e feriados, e os Municípios se veriam reféns do poder econômico.
A mudança proposta, portanto, bem ao contrário do que preconizam os seus defensores, não seria capaz de generalizar o trabalho em domingos e feriados e, por consequência, não teria o efeito de diminuir massivamente o desemprego. Por outro lado, seu efeito para os trabalhadores seria devastador, porque, invertendo a posição de inércia na negociação, permitiria aos grandes empregadores, que já se valem desse tipo de trabalho, a possibilidade de o obterem com menor custo, caracterizado pela imposição do sacrifício individual ou coletivo de outros direitos trabalhistas.
A pretensão, de todo modo, encontra grandes empecilhos jurídicos, que, inclusive, inviabilizam que se confira segurança jurídica a quem dela pretenda se valer, caso aprovada nos termos fixados na MP 881, já que estes ferem, frontalmente, dispositivos expressos da Constituição Federal, no que tange à competência do Município “para legislar sobre assuntos de interesse local” (art. 30, I) e no que se refere ao princípio da melhoria da condição social dos trabalhadores enunciado expressamente no “caput” do art. 7º. Sem falar do insofismável obstáculo formal advindo da impossibilidade de se utilizar de Medida Provisória para regular essa matéria, conforme disposição expressa do art. 62 da CF.
O fato concreto é que a aprovação da MP 881 estaria apenas a serviço de grandes empresas de segmentos muito específicos, sem qualquer repercussão concreta para a melhoria do nível de emprego e da saúde econômica de micro, pequenas e médias empresas.
O que se teria, pois, não seria um domingão sem minhocão e sim uma (des)regulação direcionada ao aumento seletivo da exploração do trabalho.
E o mais grave é ver a Constituição Federal sendo abertamente atropelada, com apoio da grande mídia e das representações políticas, para se atingir esse objetivo!
São Paulo, 20 de agosto de 2019.
[i]. https://vejasp.abril.com.br/cidades/minhocao-capa-projeto-verde/
[ii]. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/08/pessoas-vao-preferir-trabalhar-domingo-a-ficar-desempregadas-diz-secretario.shtml
[iii]. https://temas.folha.uol.com.br/desigualdade-global/brasil/super-ricos-no-brasil-lideram-concentracao-de-renda-global.shtml