Já me manifestei, mais de uma vez, em defesa da liberdade de expressão e o impulso para isso se dá, precisamente, quando percebo o pêndulo que os posicionamentos sobre o tema adquirem dependendo de quem seja a pessoa cuja liberdade esteja sendo atingida ou a sua ideologia.
O que me instiga dessa vez são as manifestações, sobretudo de pessoas e entidades historicamente ligadas à esquerda, favoráveis à condenação penal de um opositor ideológico e a adoção de medidas institucionais baseadas em censura e punitivismo, determinadas sob o argumento de defesa da ordem, mas que invertem o papel que se reserva às instituições, de promotoras dos direitos fundamentais, e que, de forma reversa, desmoralizam e fragilizam as instituições.
Tenho sido e continuarei sendo defensor de uma liberdade de expressão sem censuras, com destaque especial ao papel do humor.
Para não ser repetitivo, peço licença para remeter o leitor ao texto que publiquei sobre o tema, no qual constam, de forma mais alargada, os fundamentos dessa defesa. [i]
Claro que todo direito encontra seus limites, mas os da liberdade de expressão devem ser dados pelas próprias correlações sociais, no campo do que se poderia chamar de propriamente político, dentro de uma perspectiva da aceitação ou rejeição das falas manifestadas, já que o desafio constante ao qual estamos todos condenados é o do aprimoramento da condição humana e não se percorre esse caminho punindo e censurando as ideias, mesmo com o argumento da forma.
As inúmeras conquistas da humanidade só foram possíveis diante de ideias que romperam ou mesmo transgrediram padrões de pensamento que se apresentavam como obrigatórios em determinados momentos históricos e ainda estamos muito longe daquilo que poderíamos considerar como uma organização social mais apropriada aos seres humanos (todos e com suas diversidades). Dependemos, pois, e muito, da liberdade de pensamento e só possível pensar quando se expressa.
Essa liberdade, certamente, tem seu preço: a liberdade do outro. A liberdade de quem, inclusive, não quer que as coisas mudem.
Os tempos não estão fáceis, bem sei. A apreensão da realidade está bastante dificultada pela multiplicidade dos meios de comunicação e pelas facilitações não só de manifestação como também de criação de falsas notícias. Isso, no entanto, não constitui motivo suficiente para que se abandone o desafio do enfrentamento constante contra o desconhecimento.
Não é nada fácil ouvir divergências ou objeções mais contundentes, quase sempre desvinculadas do conteúdo das ideias, e mais ainda quando se expressam com agressividade, dentro de uma postura que não vai além do propósito de anular o opositor.
Ainda assim, insisto: que se preserve o direito da liberdade de expressão.
Pode-se argumentar que vivenciamos graves riscos de retrocessos nas conquistas humanitárias alimentados, principalmente, pelo desencadeamento de um processo de revisionismo histórico, mas é exatamente nesses momentos que o direito à liberdade de expressão adquire ainda mais sentido.
O que se ganha com a imposição do silêncio não é consciência ou aprimoramento do conhecimento, é censura e estímulo ao ódio, fruto do processo de embrutecimento. Não se trata, pois, ao contrário do que se possa imaginar, de uma providência necessária à preservação da ordem democrática. Aliás, que “ordem democrática”? A da desigualdade estamental disfarçada de meritória?
Devemos temer mais o silêncio do que as falas. Libertemos as falas e os pensamentos, e façamos as necessárias disputas, sem descartar, evidentemente, os efeitos jurídicos para a reparação civil por eventuais danos que as falas dolosamente ofensivas ou baseadas em inverdades (“fake news”) possam provocar à esfera dos direitos fundamentais e ao estágio de civilidade historicamente alcançado, e sem deixar de rechaçar as manifestações de ódio, racistas, misóginas e lgbtfóbicas, que servem para maltratar e fragilizar pessoas, aumentando seu estado de opressão e que, por se constituírem ilícitos, devem se sujeitar, respeitado o devido processo legal, aos efeitos legalmente previstos.
Os conteúdos de muitas falas não me agradam do ponto de vista ideológico e se apresentam, ao meu juízo, agressivos a direitos. Pessoalmente, o que vislumbro como desafio diante dessas situações não é buscar meios para impedir a manifestação ou aplaudir a eventual utilização de mecanismos jurídicos voltados a essa finalidade, e sim o de convencer, com argumentos, a outras pessoas, do profundo erro de adotarmos esse padrão de raciocínio, que só serve para anular conquistas histórias e nos tornarmos menos dignos da condição humana.
Preocupa-me mais o fato de, bem diferentemente de mim, por exemplo, pessoas que expressam esses sentimentos possuírem à sua disposição espaço para ampla manifestação em grandes veículos de informação, pois se isso ocorre é porque, certamente, há um enorme público que aprecia a conduta e as ideias que representa. Essa é, concretamente, a disputa a ser feita, que, necessariamente, deve se desenvolver no plano do convencimento e da conquista de corações e mentes. E aqui cabe mais uma autocrítica, no sentido de tentar entender por que a defesa dos Direitos Sociais, dos Direitos Humanos e da ordem democrática está perdendo essa contenda, do que, simplesmente, expressar ataques pessoais ao opositor ou tentar lhe impor o silêncio.
Diante da grave ameaça de rompimento das barreiras da Constituição democrática e de retrocessos no percurso da busca constante pelo conhecimento e na disputa pela consciência que a censura e o punitivismo representam, vejo-me na obrigação de não aplaudir prisão por “crime de opinião”, interdição a sites jornalísticos e apreensões judiciais sem processo.
Fato é que no processo contínuo de aprimoramento da condição humana não cabe apoiar os atos de supressão ou ameaças a direitos fundamentais dos adversários ideológicos, ou mesmo, comodamente, sob qualquer argumento, deixar de se expressar a respeito, pois o silêncio também é uma forma de manifestação. Afinal, os retrocessos atingem a todos e todas indistintamente e, em especial, aos que se encontram em situação de vulnerabilidade social, política e econômica.
São Paulo, 16 de abril de 2019.
[i]. https://blogdaboitempo.com.br/2015/01/19/a-quem-interessa-o-silencio-charlie-hebdo-e-a-liberdade-de-expressao/, acesso em 15/04/19.