Por Joshua M. Epstein, Universidade de Nova York(*)
Artigo original publicado, em 31/03/2020, na Politico Magazine(**)
Tradução João M. Souto Maior(***)
Tradução e publicação autorizadas pelo autor
Se líderes políticos quiserem enfrentar a doença que se alastra pelo mundo precisam entender que ela é um tipo de contágio. Na verdade, dois.
Um deles é o próprio novo coronavírus, um novo patógeno. O segundo tipo é mais antigo, mais intratável, e mais contagioso: o medo humano.
Não é apenas uma metáfora. Medo muda o comportamento humano, para melhor e para pior. Enquanto cientistas e médicos combatem o vírus, o maior desafio para governantes será gerenciar essa segunda epidemia: a propagação e o recuo do medo, o que por vezes tem sido mais difícil.
Construí modelos de computação realistas, mostrando como o medo funciona e como ele se propaga nas sociedades. O melhor conselho que esses modelos nos oferecem agora é que precisamos pensar no novo coronavírus como quatro de epidemias separadas: além da doença, Covid-19, também há, em epidemias, o medo do vírus, o medo da economia - e logo, provavelmente, - o medo de uma nova vacina. Todos esses quatro tipos de contágio são fortemente interligados e vão interagir amplificando uns aos outros de maneiras complexas.
Precisamos desenvolver respostas contínuas e interligadas: contínuo isolamento social e teste de pessoas infectadas; o rápido lançamento de um teste de anticorpo para determinar imunidade, fazendo com que pessoas possam voltar ao trabalho com segurança; o desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz para não deixar o Covid-19 se alastrar; e – mais importante – uma campanha de informação persuasiva contra o desnecessário medo de vacinas, mesmo antes que ele apareça. Essa combinação nos oferece a melhor chance de vencer a guerra contra o Covid-19.
Neste momento e até o lançamento de uma nova vacina não há dúvidas de que o isolamento social em massa é a única ferramenta que temos para desacelerar a onda pandêmica imediata. No entanto, é importante reconhecer que isolamento não irá erradicar a doença – e que a suspensão prematura do isolamento pode trazer a doença de volta com força.
Já vimos isso antes. Nas primaveras e outonos de 1918 e 1919, durante a devastadora epidemia de influenza, quase todas as grandes cidades dos EUA e muitas das grandes cidades europeias passaram por duas ondas da “gripe espanhola”, separadas por apenas quatro meses. A segunda onda da doença tem sido, por muito tempo, um mistério. No entanto, é muito provável que tenha sido iniciada por comportamento humano, em especial, pelo contágio do medo.
Para demostrar como isso pode explicar o fenômeno da segunda onda, vários colegas e eu publicamos, em 2008, um modelo computacional de como doenças se propagam em uma população, o que chamamos de modelo do “acoplado contagioso”. Incluía dois tipos de contágio: um da própria doença e outro do medo da doença. Enquanto a infecção se espalha, também se espalha o medo. Esse medo pode, de fato, ajudar: quando as pessoas têm medo, elas tomam medidas de emergência, como o isolamento social e a quarentena, as quais ajudam a diminuir a propagação da doença. No entanto, quando o nível da infecção se torna baixo, o medo evapora e as pessoas saem de suas tocas: o isolamento social enfraquece, quarentenas acadam, escolas reabrem, o transporte volta ao normal. Em casos como esse, é a diminuição do medo que causa estragos. Mesmo se apenas alguns casos de infecção permanecerem, a volta à normalidade joga gasolina - na forma de pessoas suscetíveis - nas faíscas infectadas, e a segunda onda inflama.
Em 1918, essa história comportamental aconteceu em Chicago. Quando a doença começou em outubro, o Comissário da Saúde, John Dill Robertson, declarou: “Se você estiver gripado, estiver espirrando e tossindo ... vá para casa, vá para cama”. Recomendações como essa suprimiram os casos da doença para apenas alguns casos em Novembro, quando ele escreveu para o presidente da Associação Comercial de Chicago: “Estamos praticamente livres ... todas as restrições estão revogadas.” Ele estava certo. Eles estavam “praticamente” livres. Mas para pandemias, “praticamente” não é suficiente. A revogação prematura do isolamento social provocou novas ondas em Chicago e em outros cidades aqui [nos EUA] e no exterior.
Por mais cansativo e custoso que seja, precisamos evitar repetir esse erro pelo entusiasmo de reabrir a economia. Ao invés, precisamos usar aquilo que sabemos – na biologia, por experiência, e por meio de novas ferramentas para modelagem de comportamento humano – para guiar nossas respostas.
Aqui está o que esse conhecimento nos sugere:
Primeiro, o isolamento social precisa continuar. Nós, simplesmente ainda não temos informações suficientes para abrir nossas barreiras;
Segundo, são essenciais o rápido desenvolvimento e a distribuição em massa de um teste de sangue para detectar anticorpos ao vírus. Diferentemente do teste disponível no momento, que identifica a doença em si – e que é essencial na alocação de recursos emergenciais e para detectar onde o surto se concentra – o teste para o anticorpo nos mostrará quem teve a doença e que, portanto, pode estar imune à reinfecção. Anthony Fauci, o principal oficial do governo de doenças infecciosas, demostra grande confiança nessa “imunidade conferida”. Ele diz: “Nunca é 100%, mas estaria disposto a apostar qualquer coisa na afirmação de que pessoas que se recuperam estão protegidas contra a reinfecção”.
A grande importância econômica do teste para anticorpo é que pessoas aptas dentro desse grupo de imunes poderiam voltar ao trabalho com segurança e prover um apoio aos trabalhadores de saúde para suprir as demandas do Covid-19. Para ajudar a pensar em como reabrir a economia, fizemos cálculos sobre isso. Erez Hatna, Abbery M. Jones, da Escola de Saúde Pública Global da Universidade de Nova York (NYU), e eu estimamos que ao menos 36% de todos americanos que contraíram o Covid-19 farão parte desse grupo de aptos e imunes.
Fauci recentemente estimou que entre 100.000 e 200.00 americanos irão morrer no decorrer dessa pandemia. Se assumirmos (conservadoramente) que morrem 2% dos infectados, então para chegarmos a 100.000 mortes, precisaríamos ter 5.000.000 de infectados. Se, como estimamos, 36% desses podem trabalhar, chegamos a uma força de trabalho de 3.6 milhões. Seja como for, aqui está uma força de trabalho para ajudar a revitalizar a economia sem recomeçarmos a pandemia e diminuir os custos até que tenhamos uma vacina.
Terceiro, precisamos estar à frente de um potencial medo da vacina. Tem se colocado muita esperança na vacina para o Covid-19, a qual está sendo desenvolvida às pressas, mas ainda temos, ao menos, de 1 ano a 18 meses até que ela fique pronta. Quando estiver pronta, o poder do contágio do medo, para que este forme uma trajetória epidêmica, vai, provavelmente, aparecer novamente. Dado o contínuo crescimento da desconfiança e da desinformação sobre a segurança de vacinas nos últimos anos, a vacina para o Covid-19 – desenvolvida, testada e lançada sob tremenda pressão – será, provavelmente, recebida por muitos com suspeita. E isso é ainda mais provável se os mais jovens e mais saudáveis forem vistos como tendo que suportar os riscos para proteger as populações mais vulneráveis.
Mesmo uma vacina segura e efetiva não terá sucesso se as pessoas se recusarem a tomá-la. A Organização Mundial de Saúde recentemente incluiu a recusa a vacinas como uma das 10 maiores ameaças à saúde global. A recusa de vacinas, baseada em medo, é responsável pelo ressurgimento do sarampo nos EUA e na Europa e até pelo ressurgimento de polio em muitos países. Não podemos excluir a possibilidade de que a recusa a vacinas irá minar os esforços mundiais para conter esse novo coronavírus.
Experiências recentes nos dão razões para preocupação. Em 2009, mesmo depois de a OMS declarar a gripe suína como pandemia, 50% dos americanos recusaram a vacina. Se medo e suspeita levarem uma proporção similar de americanos a recusarem uma eficaz vacina para o Covid-19, então, dado nossas estimativas sobre suas características de propagação, a transmissão do coronavírus estaria no limite entre extinção e reignição. O terceiro tipo de contágio, o medo da vacina, pode nos jogar para além desse limite, na direção de uma renovada epidemia.
O que os modelos mostram? Com Hatna, da Escola de Saúde Pública da NYU, e com Jennifer Crodelle, do Instituto Courant de Ciências Matemáticas da NYU, estendemos o modelo do “acoplado contagioso” discutido acima, adicionando o terceiro tipo de contágio, o do medo da vacina. Tudo gira em torno da relação entre dois medos: um, da doença; outro, da vacina. No nosso modelo, se o medo da doença exceder o medo da vacina, então a aceitação da vacina aumenta e a doença é suprimida. Mas, se na pequena prevalência da doença, o medo da doença se tornar mais baixo que o medo da vacina (o que pode acontecer quando uma doença foge da nossa memória coletiva), as pessoas ficam com mais medo da vacina do que da doença. Elas evitam a vacina e um novo ciclo da doença inicia.
Também podemos observar essa relação em dados históricos. A varíola, um dos grandes flagelos da história humana, mata 30% dos infectados. No entanto, mesmo quando a inoculação (com varíola bovina) foi descoberta, ciclos de vigilância e falta de preocupação, mantiveram a varíola viva. Na sua fantástica história social da varíola, the Speckled Monster, Jennifer Carrell escreve: “Em Londres, a popularidade da inoculação nos anos 1730 variou com a força da doença: em anos bons, as pessoas faziam filas para serem inoculadas; em anos ruins, a prática diminuía. Inoculação era uma prática segura – a única segura – para se proteger durante o terror de uma epidemia; mas em épocas com boa saúde, parecia um risco louco e desnecessário.”
Não podemos nos dar ao luxo de ciclos de vigilância e de falta de preocupação com o Covid-19, principalmente se ele se tornar uma regularidade, como a presença sazonal da gripe, ou se ele continuar a encontrar santuários em animais selvagens como o fez em Wuhan.
Dentre tudo isso, uma das mais desafiadoras variáveis aleatórias tem sido o Presidente Donald Trump, que tem sido um poderoso agente do medo. Para entendermos porquê e como pronunciamentos públicos podem causar danos mensuráveis, é importante compreender como nossa “modelagem de medo” reflete o comportamento humano.
Meu laboratório na NYU [Universidade de Nova York] se especializa em “modelagem baseada em agentes” para entender como pessoas respondem às crises. Na essência, nós construímos sociedades artificiais de pessoas computadorizadas, com uma cognição plausível, que interagem em ambiente simulado e virtual para gerar diferentes tipos de dinâmicas sociais e econômicas, includindo epidemias. Diferentemente do tradicional, não emotivo, “agente racional” usado na economia, meu mais recente agente computadorizado, chamado de Agent_Zero, tem emoções, incluindo, notadamente, medo, definido por um grupo de equações que traduzem a aquisição de medo diante de uma ameaça e a extinção do medo em decorrência da falta dessa ameaça.
Avanços recentes em neurociência nos permitem construir agentes com essa complexidade psicológica. Esse campo nos ensina que a maior causa do medo é a surpresa – a quebra de expectativas. Nos nossos modelos do Agent_Zero, assistimos o poder da surpresa em causar medo e gerar a propagação de um comportamento coletivo que varia entre contra-produtivo e desastroso.
As desdenhosas afirmações iniciais de Trump (“Vai desaparecer. Um dia, como se fosse um milagre, vai desaparecer”) fizeram o mesmo. Elas nos encaminharam ao pânico, incluindo o pânico financeiro para o qual ele mais se importa, inflacionando expectativas que foram destruídas pela verdade.
Depois das expectativas falsas e sem base criadas por Trump, americanos responderam com uma surpresa que se desencadeou de maneira previsível. O susto maximizou os medos interligados da doença e do colapso financeiro, precisamente quando precisávamos estar controlando ambos.
Trump pode nunca aceitar a responsabilidade pela resposta de pânico dada pelo mercado ao Covid-19, mas nossos modelos nos sugerem que ele teve um papel central em criá-la.
Não podemos nos dar ao luxo de uma nova leva de falsas expectativas, sendo que sua inevitável falha gerará novas cascadas de um medo contra-produtivo e da própria doença. Precisamos aceitar a evidência epidemiológica e falar a verdade. Precisamos aprender com a história e manter o caminho do isolamento social, desenvolver o teste para o anticorpo e usá-lo para encaminhar pessoas de volta ao trabalho com segurança. Mais importante, precisamos entender e controlar nossos medos interligados, especialmente a perspectiva de que um medo da vacina pode, ao longo prazo, minar nossos esforços para conter a epidemia.
Não podemos repetir o erro de 1918. “Praticamente livres” não irá funcionar. Em um mundo com conexões físicas e informacionais – e, portanto, com emocionais – se alguém ainda não estiver “livre”, então nenhum de nós está.
(*) Professor de epidemiologia na Escola de Saúde Pública Global da Universidade de Nova York (NYU) e diretor do Laboratório para Modelagem Baseada em Agentes da NYU. É professor externo do Instituto Santa Fé [Novo México, EUA].
(**) Disponível em: https://www.politico.com/news/magazine/2020/03/31/coronavirus-americafear-contagion-can-we-handle-it-157711, acesso em 12/04/20.
(***) Aluno de doutorado na Universidade de Nova York.
(+) Disponível em: https://www.cbs17.com/news/central-park-houses-hospital-ward-as-ny-races-to-add-beds/