Desde 2016, quando setores econômicos amparados por segmentos políticos procuraram sustentar a necessidade de uma reforma trabalhista no Brasil, difundiram-se enormes deturpações históricas, que nos têm impedido de entender a origem dos institutos jurídicos, por quais motivos existem e a quais fins se destinam.
Essa fuga do passado faz com que se projete um futuro na linha do “tanto faz”. Ora, se os institutos jurídicos só existem por conta de caprichos de alguns personagens, como as versões deturpadas tentam emplacar, mantê-los ou eliminá-los é meramente uma questão de vontade, que não requer qualquer fundamento lógico e consequente.
Lembre-se que foi com base nas falácias de que o Direito do Trabalho no Brasil teria sido criado pela CLT, extraída da vontade uma única pessoa, Getúlio Vargas, que se inspirava no fascismo de Benito Mussolini; de que os direitos trabalhistas no Brasil ainda estariam sendo regulados por essa legislação retrógrada da década de 40; e de que tais direitos geravam um dos maiores custos do trabalho no mundo; foi que se conseguiu promover uma trágica modificação da legislação trabalhista brasileira.
Por mais que se tenha tentado demonstrar todos os erros históricos, jurídicos e econômicos dos argumentos e das propostas de alterações resultantes (e não foram poucas as pessoas e as instituições que fizeram essas advertências), de nada adiantou, muito porque as organizações ligadas à grande mídia, agindo com interesse particular, na qualidade de empregadores e de forma aliada aos seus patrocinadores, contribuíram fortemente para a desinformação preconizada pelos agentes da reforma.
Além disso, não ajudavam muito, para a formação de um movimento popular de resistência, os renitentes ataques – muitas vezes sutis – que os governos do Partido dos Trabalhadores, por mais de uma década, vinham promovendo aos direitos trabalhistas.
Vale perceber, a propósito, o quanto a grande mídia, sempre disposta a criticar os governos e as instituições públicas, sai em defesa das iniciativas ou propostas precarizantes do trabalho e da redução de direitos previdenciários, mesmo que isso se dê com o sacrifício das garantias constitucionalmente fixadas.
E importa verificar, igualmente, como muitos críticos das reformas apresentadas de 2016 em diante são incapazes de reconhecer o quanto a situação da classe trabalhadora já era bastante desfavorável. Prestam-se, muitas vezes, à defesa de direitos apenas na linha do mal menor. Com argumentos contrários ao desmonte total, e, portanto, com ares progressistas, tornam-se reacionários, preconizando a defesa de uma situação muito distante daquela que fora projetada na Constituição de 1988.
De fato, há um enorme déficit acumulado, em termos de práticas democráticos e com relação às políticas de efetivação dos Direitos Sociais e Humanos fixados na Constituição, que precisa ser, urgentemente, posto sobre a mesa de debates.
Claro que dentro do quadro atual em que toda destruição parece ser bem-vinda, não importando motivações e finalidades, qualquer contenção ou preservação de direitos se apresenta como uma grande vitória.
Mas, convenhamos, isso é muito pouco e, sem a formalização de senso crítico e autocrítico, acaba contribuindo seriamente para o revisionismo histórico e para a naturalização das tragédias.
Tudo isso para dizer que não, a multa de 40% sobre o FGTS não é uma cláusula pétrea da Constituição, como preconizaram os críticos à proposta do Presidente de acabar com a multa de 40% sobre o FGTS.[i]
Assim, abstraindo o fato de o Presidente ter dito[ii], ou não, que a multa em questão foi criada no governo FHC (vez que depois negou ter falado isso[iii], afirmando que se referia, em verdade, ao acréscimo de 10% introduzido, em 2001, pela Emenda Constitucional n. 110 – que sempre me pareceu inconstitucional) e o erro, este não negado, da afirmação de que a multa em questão (ou do acréscimo de 10%) inibe a criação de empregos, o dado jurídico concreto é o de que a multa de 40% sobre o FGTS pode até ser extinta.
Aliás, o que deveria impressionar a todos os defensores da ordem constitucional é o fato dessa multa ainda estar em vigor, vez que, ampliando o percentual de 10% anteriormente fixado na Lei n. 5.107/66, pela qual se criou o FGTS como regime paralelo à estabilidade decenal (direito existente no Brasil desde a Lei n. 62, de 5 de julho de 1935), foi instituída pelo inciso I, do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, nos seguintes termos:
“Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição:
I - fica limitada a proteção nele referida ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, "caput" e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966;”
Ora, como o próprio nome diz, trata-se de uma disposição “transitória” e é inconcebível que até hoje, mais de 30 anos depois, ainda esteja regendo as relações de trabalho no Brasil.
Certo que se poderá dizer que no governo Collor, a Lei n. 8.036/90 reafirmou a existência da multa em questão. Mas uma lei não pode contrariar a Constituição e, portanto, não tem como tornar definitivo o que a Constituição fixou como transitório.
Sair em defesa da multa de 40%, sob o argumento da defesa da ordem constitucional, só tem sentido na linha do desvio de perspectiva histórica em que estamos inseridos, que cumpre, inclusive, um papel de retroalimentar o desvio.
O que a Constituição garantiu, com todas as letras, foi a proteção da relação de emprego contra a dispensa arbitrária, nos termos expressos do inciso I, do art. 7º.
Foi com esse intuito, de conferir maior efetividade à proteção ao emprego, aliás, que o governo FHC promoveu a ratificação da Convenção 158 da OIT, cujos dispositivos foram tornados públicos e vigentes, no Brasil, pelo Decreto n. 1.855, de 11 de abril de 1996.
Conforme previsão da Convenção em questão, não é dado ao empregador dispensar o empregado senão quando houver uma "causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento", nos casos de dispensa individual, ou "baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço" ("motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos"), nos casos de dispensa coletiva, cabendo ao Tribunal competente, para julgamento de recurso dos empregados dispensados, examinar "as causas alegadas para justificar o término da relação".
Diante de pressões de setores econômicos, o Poder Executivo, por meio do Decreto n. 2.100, de 20 de dezembro de 1996, denunciou a Convenção, perdendo vigência a partir de 20 de novembro de 1997. No entanto, a Convenção só poderia ter sido denunciada até 22 de novembro de 1996 e, depois desse prazo, segundo Márcio Túlio Viana, a denúncia somente seria permitida após 10 anos de vigência da Convenção no ordenamento nacional.
É clara a inconstitucionalidade da denúncia efetuada, tanto que na ADI 1625, proposta, em 1997, cinco Ministros já declararam seus votos no sentido da inconstitucionalidade.
Então, se pensarmos bem – e temos razões de sobra para recobrar a importância do conhecimento – a inconstitucionalidade concreta no tema está na omissão de não se ter – no âmbito do Legislativo ou mesmo do Judiciário – conferido eficácia concreta à proteção da relação de emprego contra a dispensa arbitrária e, nestes termos, a defesa da multa de 40% sobre o FGTS, relacionando-a, inclusive, à cláusula pétrea, representa a naturalização desse grave e reiterado desrespeito à Constituição.
De todo modo, no debate restrito à multa, não se pode ter dúvida de que se trata de uma questão constitucional, que não pode ser alterada por lei ordinária. E mesmo por lei complementar a alteração da multa, que pode significar até mesmo a sua exclusão, só pode ser feita com o estabelecimento de exigências normativas no sentido da motivação para as dispensas de trabalhadores, nos termos, no mínimo, da Convenção 158 da OIT, com previsão de imposição, no caso de descumprimento, de reintegração ou pagamento de indenização compatível com o dano individual e social gerado.
Durante mais de 30 anos o direito fundamental das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros, pertinente à proteção contra a dispensa arbitrária foi solenemente ignorado pelas instituições jurídicas e políticas nacionais.
Sem deixar de afirmar que a multa de 40% é a fórmula mínima de efetividade da garantia constitucional contra a dispensa arbitrária, ou seja, que não pode, sob nenhum pretexto, ser reduzida por norma infraconstitucional, cumpre expressar, de forma bastante clara, que mais do que uma defesa da multa de 40% sobre o FGTS, o que se deve fazer é expor uma severa crítica à comunidade jurídica que, por 30 anos, naturalizou essa grave inconstitucionalidade por omissão.
Quem sabe o debate público instaurado sobre a multa de 40% do FGTS permita que se perceba essa situação para que seja, enfim, corrigida.
São Paulo, 20 de julho de 2019.
[i]. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/07/multa-do-fgts-e-clausula-petrea-e-nao-pode-ser-extinta-dizem-advogados.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa
[ii]. "Essa multa de 40% foi quando o (Francisco) Dornelles era ministro do FHC (Fernando Henrique Cardoso). Ele aumentou a multa para evitar a demissão. O que aconteceu depois disso? O pessoal não emprega mais por causa da multa. Estamos em uma situação. Eu, nós temos que falar a verdade. É quase impossível ser patrão no Brasil" (Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/bolsonaro-diz-que-multa-de-40-do-fgts-inibe-criacao-de-empregos/, acesso em 20/07/19.
[iii]. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/07/20/bolsonaro-multa-40-fgts.htm