Os argumentos baseados na necessidade de “modernização” da legislação trabalhista já perderam a novidade há muito tempo.
Senão vejamos.
"O Direito do Trabalho, de princípio de ordem, passou a fator de desequilíbrio, porque em contradição com as exigências irremovíveis das leis do preço que regem a produção. O direito legislado se contrapõe às necessidade econômicas. A crise da economia traz a crise do direito. A ordem econômica, abalada nos seus alicerces, ameaça levar na sua queda a própria ordem jurídica que condiciona." [ii]
Na década de 60, quando o desmonte da legislação trabalhista foi iniciado com a eliminação da estabilidade em troca do FGTS, Octavio Bueno Mago, em artigo publicado na edição de maio/junho de 1966 da Revista LTr (“Revisão da estabilidade”, pp. 273-283), assim se pronunciou:
"A maioria das críticas feitas ao Projeto não se dirigem propriamente a ele resolvendo-se, ao contrário, numa apologia sentimental da estabilidade, ou na condenação de sua supressão, que nele absolutamente não se preconiza. Essa falta de objetividade atraiçoa, em muitos casos, o propósito de atingir, por razões políticas, os que o apadrinham e não o que nele se contém.
(....)
Num país com o Brasil, o grande objetivo a ser alcançado é o da maximização da taxa de desenvolvimento. Só o desenvolvimento econômico poderá propiciar efetiva melhoria das condições de vida da população.
Na perseguição de tal objetivo, há dois instrumentos fundamentais: a poupança e a produtividade.
(....)
No Projeto em análise estão presentes os referidos instrumentos de progresso: a poupança e a produtividade. (....) A conversão do Projeto em lei será, pois, um fator de desenvolvimento econômico e social, a ser por todos desejado."
Nos anos 70, já sob a influência do neoliberalismo que se consolidava em âmbito mundial, tem-se a oportunidade para a difusão de doutrinas que reproduziam fortes ataques ao Direito do Trabalho. A propósito, registre-se a publicação, no início da década de 70, da tese de livre-docência de Otacvio Bueno Magano, que já falava de “novas tendências do direito do trabalho”, colocando em questão o princípio protetor do Direito do Trabalho e justificando a redução de direitos.
O Editorial da Revista LTr de abril de 1987 traz em destaque a discussão em torno da necessidade da adoção de métodos extrajudiciais para a solução de conflitos trabalhistas, fazendo menção expressa ao teor da palestra proferia pelo Ministro Marcelo Pimentel, Presidente do TST, proferida em Congresso jurídico, em março/87, no qual refere à necessidade de modernização do Direito do Trabalho:
"Em segundo plano, mas também de caráter urgente e inadiável, repousam as modificações estruturais, de conteúdo mais profundo e caráter perene, Aqui, cogita-se de transformações e melhorias que se iniciam por uma reelaboração do Direito do Trabalho modernizando o direito material consolidado, subtraindo-lhe o anacronismo..."[iii]
A modernização preconizada pelo Ministro não era, é verdade, no sentido de uma redução de direitos para melhorar a competitividade das empresas frente aos desafios internacionais e sim com vista a um Pacto Social, que partia da ideia central de uma melhor distribuição da renda produzida, exortando os capitalistas a abrirem mão de seus privilégios e os trabalhadores a um espírito de colaboração e responsabilidade.
De todo modo, a fissura aberta pela defesa da modernização, partindo do pressuposto de que a legislação era arcaica, dá margem ao avanço da ideia de desmonte do Direito do Trabalho e da própria Justiça do Trabalho. Em complemento ao edital referido, a Revista publica artigo de Edy de Campos Silveira, retomando o tema da arbitragem: “Contribuição e elaboração de um anteprojeto de lei dispondo sobre ‘a arbitragem facultativa na solução dos conflitos individuais do trabalho’.”[iv]
Ao final da década de 80, a doutrina trabalhista acabou sendo a responsável pela disseminação da teoria neoliberal no Brasil.
O texto de Cássio Mesquita Barros Jr., publicado em setembro de 1987, é a demonstração explícita da presença do neoliberalismo no meio jurídico trabalhista bem antes do período admitido enquanto tal pela historiografia.
Diz Mesquita:
"A flexibilização econômica e social parece ser a mais importante questão das economias européias atingidas pela crise internacional. No conjunto das formas institucionais e jurídicas, relativas às relações de trabalho, é o meio privilegiado de lutar contra os sistemas rígidos que engendram custos insuportáveis na competição internacional."[v]
Quando a CLT completou 50 anos, em 1993, aproveitou-se da oportunidade, buscando o apelo do tempo, para expressar que a CLT, sendo “velha”, estava desatualizada. Como se sustentou:
"Convenhamos: a CLT e a Justiça do Trabalho têm mais de 50 anos. Elas foram criadas para um mundo fechado e para uma economia protegida contra as agressões do processo competitivo."[vi]
Claro, não se disse nada sobre a “velhice”, digamos assim, do Código Civil de 1916, que regia as relações civis à época, ou do direito de propriedade, que, para muitos, remonta ao Código de Hamurabi (1772 a.C.).
Em 1994, Luiz Carlos Amorim Robortella escrevia a obra, “O moderno Direito do Trabalho”, que, no fundo, preconizava o fim do Direito do Trabalho, no que foi acompanhado pelo conteúdo de diversos artigos escritos por Arion Sayão Romita, compilados em obra publicada em 2003, com o sugestivo título, “O princípio da proteção em xeque”.
E como preconizava, à época, um dos principais porta-vozes dessa corrente: “Convenhamos: a CLT e a Justiça do Trabalho têm mais de 50 anos. Elas foram criadas para um mundo fechado e para uma economia protegida contra as agressões do processo competitivo.”[vii]
Em 1997, esse mesmo autor preconizava, inclusive, que o emprego ia acabar:
"Já há sinais disso. O mundo do futuro está nascendo completamente diferente do atual. Tudo indica que, daqui a uns dez anos, a grande maioria das pessoas trabalhará não mais em empregos fixos, mas como autônomos, em projetos que têm começo, meio e fim."[viii]
"E como ficarão as licenças, férias e aposentadoria? Já nas primeiras décadas do próximo milênio, isso vai virar peça de museu porque, no novo mundo do trabalho, desaparecerá a relação de subordinação entre empregadores e empregados. Isso ocorrendo, desaparecerá quem conceda licenças, férias e aposentadoria."[ix]
Na onda das previsões, e sem se importar muito com a coerência de se colocar em defesa de um modelo assumido, nas entrelinhas, como inviável para a sociedade, já que benéfico apenas para alguns poucos, apresentando um cenário apocalíptico[x], chegou mesmo ao ponto do grotesco:
"Para você que é jovem e gosta de estudar, está aí um 'kit de sobrevivência' para enfrentar o desemprego estrutural. Ouça bem os sons do futuro. Eles já estão anunciando: trabalhadores do mundo, eduquem-se! Leis do mundo, flexibilizem-se."[xi]
E esses ataques não ficaram no papel. Foram, obviamente, acatados pelo poder econômico e se reverteram, a partir de meados da década de 60, em iniciativas legislativas voltadas, exatamente, à tal “modernização” das relações de trabalho
Advieram, por influência dessas ideias, sucessivos mecanismos de flexibilização: parcelamento do pagamento do 13º salário (Lei n. 4.749, de 13 de agosto de 1965); regulamento Lei n. 4.749, que estabeleceu a fórmula válida até hoje do parcelamento do 13º: 1ª metade entre fevereiro e novembro e a 2ª metade até o dia 20 de dezembro (Decreto n. 57.155, de 3 de novembro 1965); permissivo da redução de salários por decisão judicial (Lei n. 4.923/65); representação comercial: primeira fissura no conceito de subordinação (Lei n. 4.886/65); fim da estabilidade no emprego (Lei n. 5.107/66 — FGTS); introdução da noção de ato inseguro da vítima nos acidentes do trabalho (Decreto-Lei n. 229/67); contrato de safra (Lei n. 5.889/1973); abertura da porta para a intermediação de mão de obra - terceirização (Lei n. 6.019/74); contrato de estágio – sem vínculo empregatício (Lei n. 6.494/77; vendedor ambulante – sem vínculo empregatício (Lei n. 6.586/78); contrato do vigilante (Lei n. 7.102/1983); limitação ao exercício do direito de greve constitucionalmente assegurado (Lei n. 7.783/89); terceirização no setor público (Lei n. 8.031/90); terceirização na atividade-meio (1993 - Súmula 331 do TST); cooperativas de trabalho – sem vínculo empregatício (Lei n. 8.949/94); denúncia da ratificação da Convenção 158 da OIT, em 23 de dezembro de 1996, pelo Poder Executivo (Decreto n. 2.100); reforço da terceirização no setor público (Lei n. 9.491/97); trabalho em campanha eleitoral – sem vínculo empregatício (Lei n. 9.504/97); contrato provisório, com redução do FGTS para 2% (Lei n. 9.601/1998); banco de horas (Lei n. 9.601/1998); trabalho voluntário – sem vínculo empregatício (Lei n. 9.608/98); trabalho a tempo parcial (Medida Provisória n. 1.952-18, de 9 de dezembro de 1999); negação da natureza salarial do montante pago e instituição da mediação e arbitragem de ofertas finais, para a solução dos conflitos coletivos de trabalho (Lei n. 10.101/00); alteração do art. 458 da CLT, para afastar a natureza salarial de diversas parcelas recebidas pelo empregado (Lei n. 10.243/01); lei do “primeiro emprego” – com incentivos fiscais para empresas que aumentassem o número de empregados jovens (Lei n. 10.748/03); desconto em salário em virtude de empréstimo bancário (Lei n. 10.820/03); recuperação judicial, que retirou do crédito trabalhista (superior a 250 salários mínimos) o caráter privilegiado com relação a outros créditos e tentou eliminar a figura da sucessão trabalhista (Lei n. 11.101/05); permissão às microempresas e empresas de pequeno porte para, por meio de negociação coletiva, estipular o tempo médio gasto pelo empregado, quando o local de trabalho for de difícil acesso ou não servido por transporte público e o empregador fornecer a condução (Lei Complementar n. 123/06, acrescento o § 3º ao artigo 58 da CLT); contrato de estágio – mantida a ausência de vínculo empregatício (Lei n 11.788/08); trabalho avulso – sem vínculo empregatício (Lei n.12.023/09); nova regulamentação das cooperativas de trabalho, mantendo a ausência de vínculo empregatício (Lei n. 12.690/12); instituição da Política Nacional de Participação Social (PNPS), ao qual se acoplou projeto de lei que visa a criação de um Sistema Único do Trabalho (SUT), que, de forma sutil, retomou a ideia embutida na Emenda 3, de negar o caráter de indisponibilidade da legislação trabalhista (Decreto n. 8.243/14); ampliação das exigências para aquisição dos benefícios da pensão por morte e seguro-desemprego (MPs 664 e 665/14, revertidas nas Leis ns. 13.134/15 e 13.135/15); retrocessos na lei dos motoristas (Lei n. 12.619/12), impostos pela Lei n. 13.103/15; resistência à equiparação dos direitos dos trabalhadores domésticos aos demais trabalhadores prevista na EC 72/13 (Lei Complementar n. 150/15); Política de Proteção ao Emprego, por meio da redução temporária, em até trinta por cento, da jornada de trabalho dos empregados, com a redução proporcional do salário (art. 3º) (MP 680/15, convertida na Lei n. 13.189/15; ampliação das possibilidades de autorização do empregado (e também segurados do INSS e servidores públicos federais) para desconto direto em seu salário (em até 30%), com menção expressa, desta feita, às dívidas de cartão de crédito (no limite de 5%), além de passar a permitir que o desconto também se dê nas verbas rescisórias, o que, antes, estava vedado (MP 681/15, convertida na Lei n. 13.172/15)...
O argumento de que as leis trabalhistas são rígidas e ultrapassadas, portanto, não é novo e não foram poucas as experiências legislativas no sentido da flexibilização e da redução de direitos, sendo certo que o efeito concreto dessa estratégia foi que não houve solução do problema do desemprego, tendo apenas servido para aumentar o sofrimento da classe trabalhadora e favorecido ao processo de acumulação de riqueza, o que explica, inclusive, o forte movimento grevista ocorrido ao final da década de 70.
Como a solução dos problemas econômicos passou a ser pensada apenas a partir do pressuposto da necessidade de reduzir custos por meio da retirada de direitos trabalhistas, ao se verificar que os dados econômicos continuavam ruins ou até piores, vez que a estratégia retira do consumo uma parcela cada vez maior da população, viu-se, a cada ciclo de crise, diante da necessidade de propor nova redução de direitos, o que só fez agravar os problemas econômicos e sociais, a não ser, é claro, para o grande capital que não depende do mercado interno para o consumo de seus produtos e do setor financeiro, o qual, bem ao contrário, se vê favorecido com o aumento da corrida da população empobrecida aos financiamentos bancários.
Na linha recessiva de ganhos, atingimos o ponto trágico de os trabalhadores se verem obrigados a pleitearem empréstimos até para aquisição de bens essenciais à sobrevivência[xii] (o que foi incentivado pelas Leis n. 10.820/03 e 13.172/15, acima citadas). Não é à toa, pois, que a dívida interna do Brasil é uma das mais altas do mundo, enquanto que a concentração de riqueza só aumenta[xiii].
Portanto, já chegamos ao fundo do poço.
Que redução querem mais?
[i]. ANTUNES, José Pinto. O "Robot" e as consequências econômico jurídicas da sua utilização. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 52, p. 250-260, 1957. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66272/68882>. Acesso em: 8 mar. 2016.
[ii]. ANTUNES, José Pinto. O "Robot" e as consequências econômico jurídicas da sua utilização. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 52, p. 250-260, 1957. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66272/68882>. Acesso em: 8 mar. 2016.
[iii]. PIMENTEL, Marcelo. Palestra proferida no Congresso Internacional de Direito do Trabalho, realizado em Fortaleza, em março de 1987. In: Editorial da Revista LTr 51-4/87.
[iv]. SILVEIRA, Edy de Campos. “Contribuição e elaboração de um anteprojeto de lei dispondo sobre a ‘arbitragem facultativa na solução dos conflitos individuais do trabalho’.” Revista LTr 1-4/393.
[v]. BARROS JR., Cássio Mesquita. “Impacto das novas tecnologias no âmbito das relações individuais do trabalho.” Revista LTr 51-9/1.045-1.056.
[vi]. PASTORE, José. Relações de trabalho numa economia que se abre. Palestra realizada no Congresso Brasileiro de Direito Coletivo do Trabalho, LTr, São Paulo, 4/11/96. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 93.
[vii]. PASTORE, José. Relações de trabalho numa economia que se abre. Palestra realizada no Congresso Brasileiro de Direito Coletivo do Trabalho, LTr, São Paulo, 4/11/96. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 93.
[viii]. PASTORE, José. O futuro do emprego. Artigo publicado no Jornal da Tarde, em 20/12/95. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 23.
[ix]. PASTORE, José. A morte do emprego. Artigo publicado no Jornal da Tarde, em 15/09/04. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 21.
[x]. “Quem sobreviverá nesse novo mundo? Terão mais chances os que puderem continuar acompanhando o ritmo da revolução tecnológico-organizacional. Os que forem educados e não meramente adestrados. O novo mundo vai exigir capacidade de criar e transferir conhecimentos de um campo para outro. Será um tempo para quem souber se comunicar, trabalhar em grupo, aprender várias atividades, etc. Será a era da polivalência; da multifuncionalidade; das famílias de profissões.” (PASTORE, José. O futuro do emprego. Artigo publicado no Jornal da Tarde, em 20/12/95. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 25).
[xi]. PASTORE, José. O futuro do emprego. Artigo publicado no Jornal da Tarde, em 20/12/95. In: PASTORE, José. A agonia do emprego. São Paulo: LTr, 1997, p. 25.
[xii]. http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2016/01/brasileiro-esta-se-endividando-por-causa-da-conta-do-supermercado.html
[xiii]. http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/10/concentracao-de-renda-cresce-e-brasileiros-mais-ricos-superam-74-mil.html