
Para sustentar que a CLT – que nem existe mais, como já visto – é retrógrada, ou se limita a destacar a sua idade (de 73 anos), sem indicar qualquer ponto concreto para discussão, ou, quando se tenta trazer algum exemplo, pinçam-se, a dedo, algumas normas que ou já caíram em desuso, ou seja, que não são aplicadas, ou que, de fato, não geram nenhum custo adicional ao empregador, ou, ainda, que não se revertem em qualquer tipo de conflito nos tribunais.
Vejamos um a um.
- hora noturna reduzida: primeiro, o artigo que traz essa regulação não é o 71 e sim o 73 e quem regula a situação específica da hora noturna reduzida é o § 1º do art. 73. Segundo, previsão neste sentido já constava no art. 13, do Decreto-Lei n. 2.308, de 13 de junho de 1940. Terceiro, o teor do § 1º do art. 73, foi revitalizado pelo Decreto-Lei n. 9.666, de 28 de agosto de 1946, já no governo Dutra, e foi editado, segundo consta dos considerandos do Decreto-Lei, para dirimir dúvidas de interpretação e aplicação.
Vargas e o “fascismo”, portanto, já não têm mais nada a ver com essa regulação.
Além disso, ela não traz nenhum problema técnico ao empregador e busca atender, concretamente, o preceito constitucional de que a remuneração do trabalho noturno deve ser superior à do diurno (CF-1946, art. 157, III; CF-1988, art. 7º, IX). Aliás, partindo do pressuposto, determinado por outra norma, o “caput” do art. 73, de que o trabalhador tem direito a um adicional de 20% sobra a hora noturna, a convenção de que o trabalho noturno é aquele realizado entre às 22h de um dia e às 5h do dia seguinte serve para diminuir o alcance das horas noturnas no cômputo total das horas de um dia, e, neste contexto, a ficção de que a hora noturna é de 52’e 30” tem a função matemática de criar a ficção de que no horário em questão foi cumprida uma jornada de oito horas e, com isso, embora permita que o trabalhador receba o adicional noturno sobre 8 horas e não 7, também faz com que o salário-hora do trabalhador (respeitado o salário mínimo, obviamente), que é base para o pagamento de horas extras, por exemplo, seja reduzido, pois o empregado recebe por sete horas efetivamente trabalhadas, mas seu salário-hora é calculado por um divisor que considera ter havido 08 horas de trabalho.
Claro que para as empresas em que se exerça atividade também durante o dia esse efeito se perde, na medida em que não pode haver diferença de salário para igual trabalho na mesma empresa e, ademais, conforme prevê a Constituição de 1988, a remuneração do trabalho noturno deve ser superior ao do diurno (art. 7º, IX), já regulado dessa forma desde a Constituição de 1946 (art. 157, III), mas a regulação não é mera esquisitice do legislador.
Certo que poderia ser regulado de forma diferente, mas não se tem aí um problema que trava o funcionamento das empresas, não havendo, propriamente, questionamento jurídico relevante a respeito.
- férias em um único período para empregados com 50 anos de idade: trata-se de previsão contida no § 2º, do art. 134, da CLT. Esse dispositivo já constava da CLT, em sua redação originária (§ 2º, art. 136), mas sua base é o Decreto n. 23.103/33. Além disso, a previsão foi reafirmada, em 1977, pelo Decreto-Lei n. 1.535, que reformulou todo o Capítulo da CLT referente às férias.
Então, novamente, nem Vargas nem o “fascismo” não têm nada a ver com isso.
De todo modo, não se trata de preceito que gere maiores problemas ao empregador e se é possível dizer que hoje em dia a norma prejudica o empregado maior de 50 anos de idade que queira parcelar suas férias, em 24 anos de magistratura, fazendo audiências quase que diariamente, e já tendo apreciado, por baixo, mais de 50.000 processos, nunca me deparei com uma demanda de um empregado, maior de 50 anos, que tenha pedido ao seu empregador tal parcelamento e, depois, reclamado em juízo, alegando o descumprimento da lei por parte do empregador, no aspecto em questão.
- direito das empregadas ao descanso de 15 minutos entre a jornada regular de trabalho e o início da hora extra (art. 384, da CLT): a questão não é mera esquisitice, tanto que está sendo debatida no STF (RE 658.312) e os posicionamentos têm sido bastante conflitantes. Em 27 de novembro de 2014, o relator Ministro Dias Tofoli declarou que o art. 384, da CLT, foi recepcionado pela Constituição de 1988. A decisão foi anulada, posteriormente, por suposto vício processual. Voltou a julgamento no dia 14 de setembro, mas foi retirada de pauta, em virtude do pedido de vista do Min. Gilmar Mendes, ficando a indicação de que a decisão anterior será revista. Na mesma sessão, a Ministra Cármen Lúcia fez um pronunciamento de alta relevância para uma melhor compreensão da realidade para além das formalidades jurídicas. Referindo-se ao seu voto anterior e sobre o pedido de vista no Ministro Gilmar Mendes, que considerava necessário verificar alguma pesquisa para saber se a aplicação da lei gerava, ou não, alguma discriminação para as mulheres no mercado de trabalho, a Ministra disse:
"Votei como juíza que sou e com a racionalidade que a função impõe. Eu acho que não preciso muito dos dados de literatura, eu preciso só da experiência da minha vida e de todas as mulheres com quem eu convivo para saber que neste caso discriminatório é a gente desconsiderar que temos diferenças na sociedade e uma cultura em que sim é preciso que aja a adoção desse tipo de providência ainda e que o fato de o legislador – o fato não porque é direito – mas o legislador ter tomado essa decisão foi baseado num quadro social que continha a prevalecer grandemente e há tanta discriminação contra mulher ao contrário do que aqui foi dito 'não temos mulheres conduzindo boings', 'mulheres isso e aquilo', a simples referência disso já demonstra discriminação porque ninguém fala que tinha um homem sentado aqui desde 1828 neste Supremo Tribunal de Justiça e que isso era novidade. É o fato de continuar a ter discriminação contra a mulher que nos faz realmente precisar ainda de determinadas ações que são positivas. Se fosse igual ninguém estava falando. Uma vez em um dos julgamentos aqui sobre a anencefalia eu me lembro do voto do Ministro Carlos Brito que disse 'sabe por que estamos discutindo essa questão? Porque que faz a lei é o homem e quem fica grávida é a mulher'. Só por isso. Fosse outra realidade ninguém estava discutindo. Então, há sim discriminação contra a mulher. Há sim discriminação mesmo nos casos nossos de juízas que conseguimos chegar a posição de igualdade. Há sim enorme preconceito contra nós mulheres em todas as profissões. Eu convivo com mulheres que o tempo todo são discriminadas..."
Trata-se de uma conquista da classe trabalhadora que, portanto, dentro do pressuposto necessário da igualdade de gêneros, deve conduzir à aplicação da norma também para os homens e não excluí-la, até porque, aplicando-se os termos precisos da Constituição Federal, as horas extras habitualmente prestadas constituem uma ilegalidade, permitindo-se, apenas, o “serviço extraordinário”, ou seja, o trabalho além da jornada normal praticado excepcionalmente, com adicional de, no mínimo, 50%. Neste contexto, o descanso de 15 minutos constitui, inclusive, norma essencial tanto de limitação das horas extras, quando de preservação da saúde da trabalhadora e do trabalhador.
- prazo prescricional de dois anos para propor reclamações trabalhistas: esta suposta “esquisitice da CLT”, de fato, está assegurada na Constituição Federal de 1988 (art. 7º, XXIX).
A pertinência da norma é extremante relevante, pois é fator de equilíbrio das relações e impede que supressões de direitos se tornem definitivas pelas impossibilidades materiais dos trabalhadores em proporem as ações. Aliás, em se tratando de direitos fundamentais, o devido é que sequer houvesse prescrição e se alguma alteração pudesse ser aventada na Constituição Federal a respeito, o deveria ser no sentido de ou afastar completamente a prescrição qüinqüenal ou ampliá-la para 20 (vinte) anos ou mais... Não se esqueça que para o cumpridor do direito a prescrição não amplia ou preserva seus interesses, favorecendo apenas, portanto, ao mal pagador.
- tempo de 10 minutos de tolerância para entrar e sair da empresa: a regulação à qual o “especialista” em relações de trabalho se refere está longe de ser uma norma da CLT de 1943. De fato, a norma foi criada em 2001, pela Lei n. 10.423, de 19 de junho, que acresceu o § 1º ao art. 58 da CLT, contendo esta previsão. O objetivo do artigo, aliás, foi “furtar” dos trabalhadores o efetivo direito à limitação da jornada em oito horas, fazendo com que os problemas organizacionais do empregador, no que se refere ao tempo de entrada e saída do trabalho, fossem suportados pelos trabalhadores, contrariando toda a lógica do Direito do Trabalho, no sentido de que cabe ao empregador a assunção dos riscos do negócio.
E o “especialista” considera que conferir ao empregador 10’ da vida do empregado é pouco. No entanto, conforme definido no processo n. 0013259-04.2015.5.15.0096, um empregador que tenha 60.000 empregados, pagando salário de R$1.918,00, com a não remuneração da “migalha” de 10 minutos diários a cada um de seus empregados, em 3 anos e oito meses, embolsa a pequena quantia de R$171.864.000,00 (cento e setenta e um milhões, oitocentos e sessenta e quatro mil reais).
- ultratividade dos acordos e convenções coletivas: não existe qualquer norma na CLT que estabeleça a ultratividade. Norma neste sentido foi introduzida, em 23 de dezembro de 1992, pela Lei n. 8.542, que criou e regulou a “política nacional de salários” criada pela Lei n. 8.542, não atendia esses propósitos, pois referida lei, embora tenha estabelecido o fundamento da livre negociação coletiva, o fez dentro do contexto do princípio da irredutibilidade (§ 1º do art. 1º)[ii] e que “As condições de trabalho, bem como as cláusulas salariais, inclusive os aumentos reais, ganhos de produtividade do trabalho e pisos salariais proporcionais à extensão e à complexidade do trabalho, serão fixados em contrato, convenção ou acordo coletivo de trabalho, laudo arbitral ou sentença normativa, observadas dentre outros fatores, a produtividade e a lucratividade do setor ou da empresa” (§ 2º), que foi, inclusive, o parâmetro adotado durante todo o governo FHC, a partir de 30 de junho de 1995, com a edição da Medida Provisória n. 1.053 (Plano Real), que foi reeditada 72 vezes, até ser convertida na Lei n. 10.192, de 14 de fevereiro de 2001.
A jurisprudência, durante algum tempo, deixou de conferir aplicabilidade a este dispositivo, ainda que desde 2004, por disposição expressa da Emenda Constitucional n. 45, já se tivesse estabelecido a garantia aos trabalhadores de que as sentenças normativas proferidas em Dissídio Coletivo deveriam preservar “as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente” (§ 2º, art. 114), até que, enfim, em 14 de setembro de 2012, o TST alterou o teor da Súmula n. 277, para acolher o princípio da ultratividade e de forma mitigada, considerando que a integração das normas de convenção e acordos coletivos não se integravam de forma definitiva aos contratos individuais de trabalho, admitindo, pois, que possam “ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”. Ocorre que em 14 de outubro de 2016, o Ministro Gilmar Mendes, na Medida Cautelar para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 323, em decisão com 57 laudas, atendendo ao pedido da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN, determinou “a suspensão de todos os processos em curso e dos efeitos de decisões judiciais proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho que versem sobre a aplicação da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas, sem prejuízo do término de sua fase instrutória, bem como das execuções já iniciadas”.
Ou seja, a tal ultratividade, citada pelo “especialista” em questão, que seria, na sua visão, uma esquisitice da CLT de Vargas, de 1943, nunca teve vigência concretamente na realidade jurídica brasileira, e, em sua forma mitigada, só teve vigor de setembro de 2012 a outubro de 2016.
- obrigatoriedade para a marcação do ponto na empresa: o nosso “especialista” sugere que o empregado, mesmo trabalhando em casa, deve ir ao estabelecimento do empregador anotar o cartão de ponto, mas não há um só artigo na CLT, ou de lei posterior, que estabeleça essa obrigação, ficando, pois, impossível tentar estabelecer um contraponto.
Talvez o “especialista” esteja se referindo ao artigo 74 e seus parágrafos, mas o que está dito ali é exatamente o contrário do que sugere:
“Art. 74. O horário do trabalhador constará de quadro organizado conforme modelo expedido pelo Ministério do trabalho, e afixado em lugar bem visível. Esse quadro será discriminativo no caso de não ser horário único para todos os empregados de uma mesma seção ou turma.
1º O horário de trabalho será anotado em registro de empregados com a indicação de acordos ou contratos coletivos porventura celebrados.
§ 2º Para os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso. (Alterado pela L-007.855-1989)
§ 3º Se o trabalho for executado fora do estabelecimento, o horário dos empregados constará, explicitamente de ficha ou papeleta em seu poder, sem prejuízo do que dispõe o §1º deste artigo.”
[i]. http://revistapegn.globo.com/Administracao-de-empresas/noticia/2016/07/8-regras-esquisitas-que-estao-na-clt.html
[ii]. “As cláusulas dos acordos, convenções ou contratos coletivos de trabalho integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser reduzidas ou suprimidas por posterior acordo, convenção ou contrato coletivo de trabalho.”