Em geral, os questionamentos sobre os direitos trabalhistas têm em mira a CLT.
Insistem em dizer que a CLT, que regula as relações de trabalho no Brasil, é velha porque foi editada em 1943; que foi uma “dádiva” de Getúlio Vargas, inspirada na Carta del Lavoro; e que seus artigos são obsoletos ou anacrônicos.
Nada disso corresponde à realidade, no entanto.
Pode-se consignar, de forma sintetizada, que a experiência legislativa em questão trabalhista, na Primeira República, foi bastante considerável, tendo início, em 1890, com o Decreto 1.313, de 17 de janeiro, que trouxe diversos dispositivos vedando o trabalho de menores de doze anos nas fábricas do Rio de Janeiro.
Podem ser citados, ainda: o Decreto n. 979/1903, sancionado pelo Presidente Rodrigues Alves, que facultava aos profissionais da agricultura e indústria rural organizarem-se em sindicatos; o Decreto n. 1.150, de 05 de janeiro, de 1904, que instituiu o privilégio para pagamento de dívidas provenientes de salário do trabalhador rural, tendo sido alterado, em 1906, por outro decreto, de n. 1.607; o Decreto n. 6.532/1907, que regulamentou o pagamento de salários aos trabalhadores rurais; o Decreto n. 6.562, de 16 de julho de 1907, que tratou da inspeção de teatros e demais casas de diversões no Distrito Federal, “com dispositivos cuidando expressamente da duração do trabalho e garantias dos artistas e empregados”[i]; o Decreto n. 1.637, de 5 de Janeiro de 1907, que possibilitou a criação de sindicatos profissionais no âmbito urbano e de sociedades cooperativas; de aplicabilidade restrita ao Distrito Federal, a Lei municipal n. 1.350, de 31 de outubro de 1911, sancionada pelo então prefeito, Bento Ribeiro, que fixou o horário de trabalho no comércio, “facultando aos estabelecimentos dessa natureza funcionarem, diáriamente, num limite de 12 horas”[ii] (segundo Dario de Bittencourt, que “Resultado de uma campanha de tres anos da União dos Empregados no Comércio do Rio de Janeiro, tal lei possibilitou o surto de outras, em todos os Estados, principalmente nas capitais e cidades importantes”[iii]); o Decreto n. 3.724, de 15 de janeiro de 1919, que acolheu a tese da teoria do risco profissional, estabelecendo uma responsabilidade do empregador de indenizar o acidente do trabalho; o Decreto n. 16.027, de 1923, que criou o Conselho Nacional do Trabalho; o Decreto n. 4.682, de 23 de janeiro de 1923, que instituiu a Caixa de Aposentadoria e Pensões para os empregados em empresas de estrada de ferro, prevendo vários direitos trabalhistas, dentre eles a estabilidade no emprego após dez anos de serviço; a Lei n. 4.982, de 24 de dezembro de 1925, que estabeleceu o direito de férias aos empregados e operários; e o Decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, uma espécie de Código de Menores, que fixou regras específicas sobre o trabalho da criança.
Lembre-se, também, dos diversos dispositivos trabalhistas trazidos nas leis municipais de interesse sanitário, como, em São Paulo, o Código Sanitário, Decreto n. 233, de 2 de março de 1894, com 520 artigos que regulavam, dentre outras coisas, as condições sanitárias dos ambientes de trabalho, do trabalho noturno e infantil; e a Lei n. 1.596, de 1917, que reforçou muitos desses dispositivos e foi além.
Destaque-se, ainda, a instauração, em 16 de maio de 1919, da Comissão Especial de Legislação Social da Câmara dos Deputados, com o objetivo de, atendendo as obrigações assumidas pelo Brasil, no Tratado de Versalhes, realizar estudos voltados à elaboração de leis trabalhistas.
Em discurso, feito por ocasião da criação da referida Comissão, disse o Presidente Delfim Moreira: “Exercendo passageiramente o alto cargo de Chefe do Estado, nesta hora delicada em que, pela assinatura do Tratado de Versalhes, se criam direitos e deveres para o Brasil, entre estes – o da organização do Trabalho, com os conseqüentes necessários do solidarismo e constituição das uniões profissionais, – julguei, contudo, do meu dever pedir-vos que, por leis adequadas, sejam suprimidas as omissões de nossa legislação, de modo a torná-la harmônica com as conclusões da memorável Assembléia de Paz.”.
Muitos foram os debates realizados na Comissão, dos quais resultaram inúmeras propostas de regulação das relações de trabalho e, por isso, quando se está pondo em debate a legislação trabalhista, com amplitude que se está falando agora, a leitura dos anais da referida Comissão apresenta-se como essencial.
Analisando o referido documento[iv], que contém três Volumes com cerca de 800 páginas cada, é possível verificar o quanto é equivocada a visão de que no Brasil o tema da legislação trabalhista só foi ventilado com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930.
Nos dois primeiros volumes, inclusive, faz-se um levantamento histórico dos debates travados no Congresso Nacional acerca de projetos pertinentes à legislação trabalhista, ocorridos mesmo antes da criação da referida Comissão: Projeto Medeiros e Albuquerque, 1904 (indenizações de acidentes do trabalho); Projeto Graccho Cardoso, 1908 (indenizações de acidentes do trabalho); Projeto Wenceslau Escobar, 1908 (indenizações de acidentes do trabalho); Projeto Nicanor Nascimento, 1911 (regulamentação do contrato de locação de serviços entre patrões e empregados do comércio); Projeto Adolfo Gordo, 1915 e 1917, Substitutivo Prudente de Moraes, 1918; e Substitutivo Andrade Bezerra, 1918 (indenizações de acidentes do trabalho).
Em 13 de outubro de 1917, foi apresentado na Comissão de Constituição, Legislação e Justiça um substitutivo ao projeto de Código do Trabalho, que já havia sido apresentado em 1912 (Projeto n. 4 A), sob os considerandos de que era “urgente e da maior conveniência social procurar solução para o problema operario, estabelecendo disposições protectoras da situação econômica do operariado e garantidoras do direito dos patrões; mas considerando, que, sem termos ainda legislação adequada, suceptivel de consolidação, tão útil reforma precisa ser feita prudentemente, sem radicalismos e largos surtos, restricta ao trabalho propriamente operario, prevenindo os riscos delle resultantes, e promovendo a devida reparação”(570).
Esse projeto de Código do Trabalho continha 107 artigos, regulando: contrato de trabalho e seus sujeitos; obrigações dos empregados e dos empregadores; regras de proteção ao salário, de nulidade e de rescisão contratual; jornada de trabalho, fixada em oito horas, em seis dias da semana, reservando-se um para descanso, que seria o domingo, salvo convenção em contrário; idade mínima para o trabalho, 10 anos, com jornada máxima de 6 horas até os 15 anos de idade; limitações ao trabalho da mulher; trabalho noturno, considerado o que “se realiza entre o sol posto e o sol nato”; feriados — “descanso extraordinário” (1º de maio e 7 de setembro); horas extras, permitidas apenas em situações excepcionais de força maior, perigo ou acidente ou, ainda, conclusão de serviço inadiável; e indenização por acidente do trabalho, adotando-se a teoria do risco profissional, sendo relevante destacar que se destinava, na integralidade, também aos “operarios da União, Estado ou município” (art. 3º).
É plenamente inapropriado, portanto, para dizer o mínimo, que, em 2017, ainda se reproduzam argumentos no sentido de que a legislação do trabalho foi criada por Vargas, com inspiração na Carta del Lavoro, e que foi imposta a partir de concepções que jamais tinham sido debatidas entre nós; ou mesmo que a legislação trabalhista proteja, de forma desproporcional e indevida, o trabalhador, vez que isso representa um desconhecimento pleno da história.
Segundo, há que se dizer que as relações de trabalho no Brasil, atualmente, não são reguladas pela CLT de 1943.
Dos 921 artigos que constavam da CLT, em 1943, somente 625 diziam respeito aos direitos trabalhistas propriamente ditos, pois os demais regulavam o processo do trabalho.
Desses 625, apenas 255 não foram revogados ou alterados total ou parcialmente de maneira expressa por leis posteriores, editadas nos mais diversos governos; e 65 não foram recepcionados pela Constituição de 1988, como reconhece doutrina e jurisprudência, expressamente. Os 188 artigos restantes estão integrados a institutos que passaram, considerando o conjunto normativo, por diversas modificações.
A CLT, além disso, embora editada em 1943, não foi uma dádiva de Getúlio, pois a legislação trabalhista no Brasil começa a existir, no âmbito estadual, já nos primeiros anos da Primeira República e, em caráter nacional, de 1919 em diante. Vários foram, ademais, os direitos trabalhistas fixados em âmbito negocial, como conquistas concretas dos trabalhadores, decorrentes de greves, sobretudo antes de 1930.
E, do ponto de vista legislativo, os direitos trabalhistas que se aplicam nas relações de trabalho no Brasil atualmente não foram sequer criados pela CLT de 1943.
Além das leis acima citadas, são referências da CLT: a) conceitos jurídicos: Decreto n. 24.637/1934; Decreto-Lei n. 2.122/1940; Decreto n. 5.493/1940; Lei n. 435/1937; Decreto n. 23.152/1933; Decreto n. 23.322/1933; Decreto n. 23.303/1933; Decreto n. 1.918/1937; Decreto n. 23.768/1934; Decreto-Lei n. 1.843/1939; Lei n. 62/1935; Decreto n. 2.308/1940; Decreto-Lei n. 5.429/1943; Decreto n. 21.417-A/1932; Decreto-Lei n. 399/1938; Decreto-Lei n. 4.373/1942; Decreto-Lei n. 4.114/1942; Decreto-Lei n. 4.404/1941; Decreto-Lei n. 3.070/1941; Decreto-Lei n. 1.237/1939; Decreto n. 6.596/1940; Decreto-Lei n. 3.616/1941; e Decreto-Lei n. 2.028/1940; b) Carteira de Trabalho: Decreto n. 21.175/1932; Decreto n. 22.035/1932; Decreto-Lei n. 2.308/1940; e Decreto n. 23.591/1933; c) limitação da jornada de trabalho: Decreto-Lei n. 2.308/1940 e Decreto n. 23.152/1933; d) períodos de descanso: Decreto-Lei n. 2.308/1940; e) salário mínimo: Lei n. 185/1936; Decreto-Lei n. 399/1938; Decreto-Lei n. 2.548/1940; e Decreto-Lei n. 2.162/1940; f) proteção do trabalho da mulher: Decreto n. 21.417-A/1932; g) proteção do trabalho do adolescente: Decreto n. 17.934, de 12.10.1927; Decreto-Lei n. 3.616/1941; h) contrato de trabalho: Lei n. 435/1937; Decreto n. 54/1934; e Decreto-Lei n. 4.350/1942; i) remuneração: Decreto-Lei n. 3.813/1941; Decreto-Lei n. 65/1937; Decreto-Lei n. 2.162/1940; e Decreto-Lei 399/1938; j) estabilidade no emprego: Lei n. 62/1935; Decreto n. 4.682, de 23 de janeiro, de 1923; l) férias: Decreto n. 4.982, de 24 de dezembro de 1925; m) justa causa: Lei n. 108, de 11 de outubro, de 1837; Lei n. 62, de 5 de junho de 1935.
Além disso, depois de 1943, muitos direitos trabalhistas, por contextualização política, social e econômica diversa, foram sendo criados por várias outras leis: Descanso Semanal Remunerado (Lei n. 605/49); Vendedores, viajantes ou pracistas (Lei n. 3.207/57); 13º salário (Lei n. 4.090/62); FGTS (Lei n. 5.107/67); PIS (Lei Complementar n. 7/70); trabalho em atividade petrolífera (Lei n. 5.811/72); trabalho doméstico (Lei n. 5.859/72); trabalho rural (Lei n. 5.889/73); Férias de 30 (trinta) dias (Decreto-Lei n. 1.535/77); Alimentação do trabalhador (Lei n. 6.321/76); Serviços no exterior (Lei n. 7.064/82); Vale-transporte (Lei n. 7.418/85); Mãe social (Lei n. 7.644/87); direito de greve (Lei n. 7.783/89); Pessoas com deficiência (Lei n. 7.853/89); PIS-PASEP (Lei n. 7.859/89); seguro-desemprego (Lei n. 7.998/90; regulação atual do FGTS (Lei n. 8.036/90); trabalho do adolescente (Lei n. 8.069/90); atleta profissional (Lei n. 9.615/98); empregado público (Lei n. 9.962/00); participação nos lucros e resultados (Lei n.10.101/00); proteção ao idoso (Lei n.10.741/03); igualdade racial (Lei n.12.288/10); aviso prévio proporcional (Lei n.12.506/11); motorista profissional (Lei n.12.619/12, alterada pela Lei n. 13.103, de 2 de março de 2015); vale-cultura (Lei n.12.761/12)...
Cumpre acrescentar que, juridicamente falando, o instrumento que regula as relações de trabalho no Brasil é, na verdade, a Constituição de 1988, pois nenhuma norma infraconstitucional pode contrariar a Constituição e esta, em seus artigos 7º a 9º, a partir do pressuposto de que as leis trabalhistas visam a melhoria da condição social dos trabalhadores, relacionou quais são os direitos trabalhistas, de modo que a legislação infraconstitucional anterior ou foi recepcionada pela Constituição e vale, ou não foi recepcionada, deixando, pois, de ter valor jurídico.
A CLT de 1943, portanto, já não existe no mundo jurídico há muito tempo, razão pela qual o argumento não tem como ser considerado, até porque se argumento de idade da lei valesse para evitar sua aplicação e invalidar seu conteúdo poderia ser utilizado para afastar os Direitos Humanos fixados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ou os direitos civis e políticos consagrados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
[i]. BITTENCOURT, Dario de. Das “ordenações filipinas” á creação do Ministério do Trabalho: a legislação social trabalhista brasileira anterior a 1930. Separata da Revista “Trabalho, Indústria e Comércio”, Ano I, n. 2, 1932, setembro/1938. Porto Alegre: Thurmann, 1938, p. 15.
[ii]. BITTENCOURT, Dario de. Das “ordenações filipinas” á creação do Ministério do Trabalho: a legislação social trabalhista brasileira anterior a 1930. Separata da Revista “Trabalho, Indústria e Comércio”, Ano I, n. 2, 1932, setembro/1938. Porto Alegre: Thurmann, 1938, p. 16.
[iii]. BITTENCOURT, Dario de. Das “ordenações filipinas” á creação do Ministério do Trabalho: a legislação social trabalhista brasileira anterior a 1930. Separata da Revista “Trabalho, Indústria e Comércio”, Ano I, n. 2, 1932, setembro/1938. Porto Alegre: Thurmann, 1938, pp. 16-17.
[iv]. Documentos Parlamentares - Legislação Social. Acidentes de trabalho – indemnisação – maximo de trabalho – condições de salarios – contractos de locação de serviços no commercio. 1º Volume. Rio de Janeiro. Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C. 1919.