(*) Presidente da Associação Americana de Juristas - AAJ-Rama Brasil, entidade fundada, em 1975, com status consultivo ante o Conselho Econômico e Social da ONU, que tem dentre seus objetivos a defesa da paz, dos Direitos Humanos e das garantias para a sua proteção.
Em 18 de julho deste ano, o atual presidente (candidato derrotado nas eleições) reuniu-se com representantes diplomáticos internacionais e, sem qualquer elemento de prova, desferiu mais um ataque às urnas eletrônicas.
Essa foi apenas mais uma das inúmeras atitudes e falas do atual presidente da República afrontando as instituições e o patrimônio público nacionais e, sobretudo, desconsiderando a inteligência e as vidas humanas.
Nenhuma reação jurídica e política efetiva se produziu como resposta a tais atos, de modo que foram se intensificando e se agravando a cada dia.
Passadas as eleições, o presidente dobrou a aposta e não só reincidiu na conduta, primeiro, omitindo-se com relação ao reconhecimento da derrota e, depois, chegando mesmo a estimular a realização de atos antidemocráticos, ainda que tenha se manifestado pedindo a cessação dos bloqueios nas rodovias, mas apenas para a preservação do “direito de ir e vir”.
As agressões à ordem jurídica cometidas pelos ditos “manifestantes”, ou como se intitulam, “defensores da pátria”, estão muito além, por conseguinte, da obstrução de vias públicas.
A verdade é que delitos têm sido expressa ou implicitamente estimulados pelo presidente da República, renovando, pois, seu completo desrespeito à ordem democrática, como já havia feito, aliás, de forma renitente, com relação às vidas humanas, seja quando desacreditou as medidas de prevenção e controle da pandemia, seja quando estimulou o armamento de parte da população, consentiu com a destruição do meio ambiente e conduziu uma política econômica voltada aos interesses de uma elite empresarial e do capital especulativo, o que fez o país retornar ao mapa da fome, potencializando o sofrimento de milhões de brasileiros e brasileiras.
A negligência presidencial, marcada pelo desdenho com relação às medidas de prevenção, incluindo a vacinação, certamente contribuiu para que se chegasse à triste marca de quase 700 mil mortes por COVID-19 no Brasil (ou até mais, considerando as subnotificações). Em um país, com nem mesmo 3% da população global, se chegou a 11% do total de óbitos resultantes da pandemia.
E cumpre ressaltar que a negligência em questão foi bem além da omissão, vez que se desenvolveu no período, concretamente, uma política deliberada de desencorajamento à imunização e desobediência às políticas de isolamento social e utilização de máscaras.
Este conjunto de elementos desenham os contornos de uma agenda genocida implementada no país. Também nesse particular é de se ter em conta que a pandemia vitimou de forma mais contundente não só idosos e pessoas com déficit de imunidade, mas também de forma desigual e mais pronunciada a população negra e pobre do país, o que pronunciou o genocídio imemorial denunciado desde Abdias do Nascimento contra negros e negras brasileiras.
Assim, para que se tenha êxito no necessário processo de revalorização de uma vida em sociedade marcada pela solidariedade e o respeito à condição humana, é fundamental que os ilícitos praticados neste período não restem esquecidos e impunes.
Quanto aos atos praticados por ocasião das eleições, cumpre lembrar do uso abusivo e com evidente desvio de finalidade de contingentes da Polícia Rodoviária Federal e mesmo do Exército para dificultar o voto de milhares de eleitores, sobretudo no nordeste, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, contrastando com a total ausência das mesmas operações policiais em regiões com predominância de eleitores do atual presidente e, sobretudo, com a postura de conivência e até de apoio explícito da mesma PRF.
Lembre-se, ainda, do assédio eleitoral, que chegou ao absurdo número de mais de 3.000 casos denunciados. É de suma importância, pois, que se prossiga na análise das denúncias e suas respectivas demandas, para que, comprovados os fatos, sejam reparados todos os danos morais e materiais experimentados pelas empregadas(os) assediadas(os), de modo, inclusive, a restituir-lhes o emprego, com a necessária proteção contra a dispensa arbitrária.
Vale perceber que é exatamente a certeza da impunidade que faz com que parte do setor empresarial, de onde partiram os assédios e até mesmo, segundo as procuradorias-gerais de alguns Estados, o financiamento de atos antidemocráticos6, não tenha o menor receio em já se pronunciar para assediar o presidente eleito, exigindo deste que mantenha em vigor a “reforma” trabalhista7, a qual, como se sabe, foi a principal causa e efeito do golpe de 2016. Reduzindo direitos, abalando a atuação sindical e obstruindo o acesso à justiça, a “reforma” trabalhista visou, unicamente, ampliar as possibilidades de lucro de parte do setor empresarial, por meio do rebaixamento dos limites civilizatórios para a exploração do trabalho.
Concretamente, os que utilizaram a máquina pública para a “compra” de votos ou interferir de alguma forma na liberdade do voto e todos aqueles (empresas privadas e públicas, ou mesmo políticos) que cometeram qualquer tipo de assédio eleitoral devem ser responsabilizados por suas condutas, sendo certo que o término do processo eleitoral (e mesmo o resultado das eleições contrário aos seus evidentes interesses) não apaga os delitos cometidos.
A reconstituição da ordem democrática e da autoridade do Estado de Direito requer a efetiva aplicação de todas as sanções penais, civis, trabalhistas, eleitorais e políticas aos ilícitos praticados durante a pandemia e as eleições, isto porque, embora se tenha a sensação de que a pandemia foi superada, esta nova realidade, de fato, não foi oportunizada a milhares de pessoas e, ainda que se tenha por certo que o novo presidente foi democraticamente eleito, a enorme quantidade de ilícitos eleitorais verificados, conforme acima enunciado, explicitaram o quanto nossa democracia ainda precisa evoluir para se afastar do tempo dos “donos do poder”.
Aos que estão por aí (hoje e já há algum tempo) atentando abertamente contra a vida, os direitos fundamentais e a ordem democrática o destino não pode ser o do mero retorno para a casa, como se nada tivesse ocorrido.
Enfim, para uma efetiva reconstrução social, cultural, política, econômica e humana, será preciso passar o Brasil a limpo e, para tanto, é essencial, rompendo-se o despudorado sigilo de 100 anos, que se instaure uma Comissão da Verdade, Justiça e Memória do período do atual governo (com necessária participação popular), de modo a apurar, registrar, documentar e responsabilizar todas as condutas praticadas (nos âmbitos públicos e privados) que se constituam como delitos contra a ordem democrática, os Direitos Humanos e o meio ambiente.
São Paulo, 08 de novembro de 2022.
1 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/11/03/bolsonaristas-agridem-estudantes-em-jundiai.htm. Acesso em: 8 nov. 2022.
2 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2022/10/02/apoiadores-de-bolsonaro-disparam-ofensas-a-nordestinos-por-votos-em-lula.htm. Acesso em: 8 nov. 2022.
3 Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/11/02/estudante-negro-vitima-de-racismo-em-colegio-de-elite.htm. Acesso em: 8 nov. 2022.
4 Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/automobilismo/nelson-piquet-participa-de-ato-bolsonarista-e-pede-lula-no-cemiterio-veja-video,f5ac74f5dea61db86cf2e8c423182583w9o3mkno.html. Acesso em: 8 nov. 2022.
5 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/11/5048951-bolsonaristas-fazem-saudacao-nazista-durante-execucao-do-hino-nacional-em-sc.html. Acesso em: 8 nov. 2022.
6 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/11/08/procuradores-gerais-moraes-financiadores-atos-antidemocraticos.htm. Acesso em: 8 nov. 2022.
7 Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/11/05/demandas-setores-governo-lula.amp.htm. Acesso em: 8 nov. 2022.