“Prezado amigo Afonsinho
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou um Tostão.
Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão.”
(Meio de Campo - Gilberto Gil – 1973)
Na mesma semana em que se declarou a constitucionalidade da Lei n. 13.429/17, que busca irradiar a precariedade do trabalho visualizada pela terceirização, mais precisamente no dia 27 de junho, o STF, desta feita por decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes, apreciando medida cautelar interposta pela CONSIF (Confederação Nacional do Sistema Financeiro) nos autos da ADC 58, determinou “a suspensão do julgamento de todos os processos em curso no âmbito da Justiça do Trabalho que envolvam a aplicação dos artigos arts. 879, §7, e 899, § 4º, da CLT, com a redação dada pela Lei nº 13.467/2017, e o art. 39, caput e § 1º, da Lei 8.177/91”.
Os dispositivos legais em questão dizem respeito à forma de correção monetária das dívidas trabalhistas.
Nem é o caso de discutir se está correta ou não a visão de que os créditos trabalhistas devem ser corrigidos pela TR, índice que, como se sabe e conforme já reconheceu o próprio STF, não é sequer suficiente para a recomposição da desvalorização inflacionária da moeda; ou do acerto de se ter dado guarida processual à pretensão, para aplicação do índice reduzido da TR, de instituições financeiras que cobram juros sem qualquer limite e que, no período da pandemia, sequer estão conferindo empréstimos diferenciados para pequenas e médias empresas (e que, por isso, e não por conta do custo dos direitos trabalhistas, estão fechando).
O que importa, de fato, é destacar que, na prática, a decisão proferida simplesmente paralisa a atuação da Justiça do Trabalho, pois não há processo trabalhista, no qual haja condenação do empregador, sem essa questão.
Vale verificar que, considerando os processos que já estão na fase de cumprimento da sentença (que são milhares) os beneficiados da vez são empregadores que constam de títulos executivos trabalhistas, muitos deles que se identificam como descumpridores renitentes e reincidentes da legislação do trabalho.
E os prejudicados, mais uma vez, são milhões de trabalhadores e trabalhadoras que tiveram seus direitos desrespeitados, foram obrigados a ingressar com ações judiciais e que, depois, de anos, tinham a esperança de receber o que lhes pertence por direito.
Dito de forma mais clara, concedeu-se um benefício a quem cometeu atos ilícitos, praticados de forma reiterada muito antes da crise da pandemia, punindo-se, mais uma vez, os trabalhadores e trabalhadoras.
O curioso é que o fundamento utilizado, para minimizar os efeitos de ilícitos praticados antes da pandemia, beneficiar os autores desses atos e prejudicar os credores de direitos fundamentais, foi a necessidade de agir com “desprendimento, altivez e coragem” para alçar soluções de “adequação constitucional de medidas extremas que buscam conter os impactos econômicos adversos da crise”, para que não se desague “em quadro de convulsão social”.
A solução vislumbrada, no entanto, foi a de sacrificar os direitos sociais, pervertendo “o sistema protetivo-constitucional” e “as salvaguardas constitucionais”, de modo a funcionarem como instrumentos de superação da crise e não como obstáculos. Aliás, as proposições formuladas abstraíram o social e o humano, tendo sido sua viabilidade pautada no “ponto de vista jurídico, político e econômico”.
A Justiça do Trabalho já estava com suas atividades limitadas diante de outra decisão que obstava o prosseguimento de ações que envolviam discussões sobre a validade de normas coletivas.
Agora, teve o seu funcionamento completamente suspenso e tudo isso no momento em que a efetividade dos direitos sociais deveria constituir o compromisso básico de toda a sociedade brasileira, visto o reconhecimento público da relevância do trabalho das pessoas que estão salvando vidas.
Diante desse posicionamento, muitos magistrados, para que os “trabalhadores não sejam prejudicados”, pensam em contornar a situação, deixando de lado, postergando, a definição do índice de correção monetária, ou aplicando a TR, que seria “incontroversa” e, com isso, consolidando a perda econômica dos trabalhadores...
O problema é que essa postura acaba favorecendo a uma espécie de negação do fato em si, reduzindo sua importância, alcance e gravidade. Além disso, em muitos casos, para elaborar os “contornos”, que não deixa de ser uma forma de descumprimento da decisão judicial, acaba-se incorrendo em desprezo a preceitos constitucionais muito caros, como o da vedação da negativa de prestação jurisdicional, conferindo reforço às práticas de descompromisso com a efetividade dos preceitos constitucionais ligados aos direitos sociais e humanos que, efetivamente, têm gerado prejuízos reiterados aos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras.
Fato é que não há saídas jurídicas para esse dilema. As instituições devem reconhecer a integralidade do pacto constitucional, no qual se consagrou a essencialidade dos direitos sociais, e, consequente, preservar o regular funcionamento da Justiça do Trabalho, sob pena de perecimento de todo aparado jurídico e político dos direitos fundamentais e da própria democracia.
Não colhem soluções paliativas, vez que espraiam ainda mais a lógica de fragilização institucional, da qual se valem os regimes ditatoriais.
Não é o caso, pois, de manter os processos em andamento, postergando a discussão em torno da correção monetária, aplicando o índice da TR (que seria “incontroverso), ou, simplesmente, desconsiderando (e, com isso, descumprindo) a decisão em comento.
A decisão judicial foi dada e deve ser cumprida e o mais curioso ainda é que muita gente anda dizendo que paralisar todos os processos em razão da determinação dada “pode parecer uma afronta”. Vai entender...
O que se há de perceber é a enorme contradição de o respeito à institucionalidade jurídica, que implica a suspensão do funcionamento da Justiça do Trabalho, configurar uma situação de autêntico e explícito Estado de exceção.
Por isso, não há contorno possível, até porque já passou da hora das responsabilidades pelos desmontes da proteção social serem publicamente conhecidas, reconhecidas e assumidas. Já passou o tempo em que o único horizonte era “aperfeiçoar o imperfeito”.
Assim, ou o STF – na última sessão antes do mês de recesso (quarta-feira próxima) – restitui a um órgão do poder da República o seu regular funcionamento, ou se submeterá ao julgamento da história por ter contribuído para a derrocada do Estado Democrático de Direito, com a consequente suspensão de todas as garantias e direitos fundamentais, além dos tão aclamados preceitos democráticos.
São Paulo, 29 de junho de 2020.