O Brasil vive uma onda de moralidade. Isso, obviamente, não é ruim. O ruim é se o argumento da moralidade for seletivo, servindo unicamente ao propósito de atender a alguns interesses, nos quais não se incluam os anseios da classe trabalhadora.
Ora, na perspectiva dos trabalhadores o que é essencial para “passar o Brasil a limpo” é, minimamente, o respeito aos seus direitos conquistados ao longo de décadas de lutas e sacrifício de vidas. A história do Brasil é marcada pelo desrespeito reiterado aos direitos trabalhistas, tendo-se chegado mesmo à institucionalização da prática ilegal, apoiada na impunidade, a partir do argumento moralmente condenável de que no Brasil os trabalhadores têm direitos demais.
Dentro desse pressuposto, não se pode levar a sério arautos da moralidade que expressamente buscam convalidar o desrespeito aos direitos trabalhistas, compactuando, portanto, com práticas ilícitas.
É fácil perceber essa forma seletiva de moralidade quando se depara com temas trabalhistas. Ora, os direitos trabalhistas estão consagrados nas Declarações e Tratados internacionais como integrantes dos Direitos Humanos, sendo, portanto, essenciais dentro da lógica da produção capitalista, para garantir efetividade ao princípio da dignidade humana. Não são meramente custos do processo produtivo dos quais se possam afastar sem com isso negar vigência ao compromisso humanitário assumido a respeito desde o início do século XX.
E a muitos, circunstancialmente, quer parecer que respeitar direitos trabalhistas é uma mera questão de opção individual, não implicando qualquer problema jurídico ou moral, representando, tantas vezes, nada mais que uma espécie de favor.
O problema é que como se está tentando atrair o Brasil para a lógica da justiça, da seriedade, da moralidade e da legalidade, só se pode prosseguir nessa obra se pensada no plano da totalidade, sob pena de, a despeito de se colocar em defesa da moralidade, acabar se transformando em instrumento de difusão dos sentimentos mais mesquinhos da condição humana, refletidos nas práticas da dissimulação e do engodo.
Pois muito bem, nesta semana o Supremo Tribunal Federal decidiu que um cidadão pode ter privado o seu direito à liberdade mesmo que a decisão judicial ainda não tenha transitado em julgado. A decisão foi celebrada por muitos, dentre estes uma parte considerável da grande mídia, como o fim da impunidade.
E seguindo a diretriz inaugurada pela mais alta Corte judicial do país, que, por assim dizer, flexibilizou a exigência do trânsito em julgado em benefício da prevalência de outros valores, também jurídicos, a Justiça do Trabalho passou a executar suas decisões ainda pendentes de recurso.
Mas veículos de informação, no caso específico, a Folha de S. Paulo publicou, na edição de 24/02/16, p. A-14, uma pequena reportagem criticando, ainda que de forma velada, uma decisão da Justiça do Trabalho proferida com este conteúdo.
A reportagem põe em destaque posições que tomam a decisão como uma espécie de “ativismo judicial”, acusando-a de “simplista” e “apressada” ou que “é condenável porque não há como garantir que os trabalhadores devolverão o dinheiro se no futuro o julgamento do recurso for favorável ao empregador”.
Mas vale reparar, como dito na decisão do juiz Flávio Bretas Soares, se o bem maior que é a liberdade pode ser limitado antes do trânsito em julgado, para atender um postulado social de quebra da impunidade, com maior razão é legítimo atingir direitos patrimoniais, ainda mais quando a iniciativa tenha por objetivo proteger a vida, além é claro da própria integridade do Judiciário perante a sociedade, vez que sua imagem pode ser bastante arranhada em virtude de uma duração quase infindável dos processos.
Lembre-se que no caso específico os “beneficiários” da decisão são mais de 6.000 trabalhadores cujos direitos foram desrespeitados por atuação fraudulenta da VASP e que esperam há mais de dez anos para haver o que é seu por direito.
A decisão ainda destaca que muitos desses trabalhadores já morreram e alguns passam por extrema dificuldade, mas mesmo dentro desse contexto a reportagem referida se mostra preocupada em reproduzir a indagação de como os trabalhadores devolverão o dinheiro caso haja uma decisão favorável ao empregador, sendo que uma decisão dessa natureza, bem se sabe, é muitíssimo improvável, impondo-se, reversamente, isto sim, a pergunta de quem vai devolver a vida dos que se foram por conta da demora judicial?
O fato inconteste é que pelo bem ou pelo mal, concordemos com ela ou não, a decisão do Supremo Tribunal Federal não apenas permite como de fato exige que as decisões trabalhistas que reconheçam aos trabalhadores verbas decorrentes de direitos não pagos, notadamente quando a dívida for incontroversa, sejam imediata e inteiramente executadas, como forma de integração mínima dos trabalhadores (com seus direitos) ao status de cidadãos brasileiros, até porque se a decisão do Supremo pode atingi-los na esfera penal, não há porque não o faça na qualidade de trabalhadores, detentores de direitos.
São Paulo, 24 de fevereiro de 2016.