Reportagem publicada, talvez não por mera coincidência, pela revista Veja, traz o título: “O duro recado de Gilmar Mendes a juízes trabalhistas que ignoram o STF” (https://veja.abril.com.br/coluna/radar/o-duro-recado-de-gilmar-mendes-a-juizes-trabalhistas-que-ignoram-o-stf/).
Bom, primeiro é importante lembrar que quando tomam posse no cargo, juízas e juízes fazem o juramento de cumprir as leis e a Constituição. Assim, quando dizem (como há décadas têm feito) que há uma autêntica relação de emprego em dada forma de prestação de serviço, fundamentando-se em preceitos legais e constitucionais, estão, precisamente, cumprindo o seu dever funcional.
A novidade agora, que teve início em 2023 – vale registrar –, é que o STF resolveu dizer que a Justiça do Trabalho não pode mais cumprir o seu papel institucional, definido como tal desde quando foi instalada, em 1941, de proferir decisões com reconhecimento da relação de emprego, sob o argumento de que tais decisões estariam contrariando posição firmada a respeito pelo STF.
Se há um conflito, instaurado a partir de 2023, entre as decisões da Justiça do Trabalho e o STF, é porque o STF, sem qualquer amparo constitucional, entendeu por bem redefinir a competência da Justiça do Trabalho e a desprezar os preceitos jurídicos atinentes ao reconhecimento da relação de emprego.
Se, como desabafa o Ministro Gilmar Mendes, o STF está sendo “abarrotado” com reclamações contra decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem o vínculo de emprego em dada prestação de serviço (2.566 reclamações de um total de 4.781) é porque o próprio STF, ao acolher e dar provimento às primeiras reclamações, mesmo sem qualquer amparo constitucional ou infraconstitucional e extrapolando em muito a sua própria competência, sobretudo porque tal análise envolve exame probatório, estimulou a interposição das tais reclamações.
Não são as juízas e os juízes do trabalho que estão “sobrecarregando” o STF, portanto.
Aliás, o que estes números revelam é que juízes e juízas do trabalho continuam respeitando a Constituição e que o STF, de maneira inopinada e arbitrária, simplesmente deixou de fazê-lo, o que é extremamente grave, pois caberia ao STF ser o guardião da Constituição e o que se tem, concretamente, é uma inversão de valores, ou seja, é a magistratura trabalhistas dando um recado duro ao STF de que o desrespeito à Constituição não passará despercebido!
E o Ministro Gilmar Mendes vai além e passa, de forma grosseira, a atacar a instituição, aludindo a “caprichos da Justiça do Trabalho”, quando esta reconhece a relação de emprego “entre pessoas jurídicas e entre trabalhadores de aplicativo e plataformas como a Uber”; e que o STF “perde tempo” anulando tais decisões.
Ora, se fosse de conhecimento do Sr. Ministro os preceitos jurídicos que, com apoio nas normas constitucionais e em inúmeros tratados internacionais ligados aos Direito Humanos, embasam o Direito do Trabalho, não prestaria uma declaração tão gratuitamente ofensiva e desprovida de fundamento jurídico quanto esta. Tal pensamento é o que faz muita gente perder tempo na vida, inclusive o próprio STF, e tem gerado enorme sofrimento a quem se vê obrigado a vender sua força de trabalho no Brasil e se depara com uma realidade em que seus direitos mínimos, previstos nas leis e na Constituição, são espontaneamente respeitados. Bem ao contrário, o que encontra no mundo do trabalho é a utilização generalizada de múltiplas fórmulas de contratação fraudulentamente fugidias dos direitos trabalhistas, acompanhadas de um ataque sistemático, midiaticamente sustentado, a esses direitos – e, ultimamente, com suporte institucional cada vez mais explícito.
Cumpre observar, ademais, que os diversos casos, aos quais as reclamações apresentadas ao STF estão relacionadas, dizem respeito a uma suposta “desobediência” ao entendimento da Corte em que se reconheceu a validade da terceirização, inclusive em atividade-fim da empresa. Ocorre que a terceirização, como se verifica no próprio caso no qual o entendimento do STF foi firmado, não é um contraponto à relação de emprego e sim uma forma de deslocamento da relação de emprego, da empresa tomadora, para a empresa prestadora. O trabalhador terceirizado continua sendo empregado, mas não da empresa tida como tomadora, e sim daquela contratada para a prestação dos serviços, numa espécie de relação triangular. A relação de emprego nas hipóteses de terceirização persiste, de todo modo.
Quando uma empresa contrata um trabalhador como pessoa jurídica não é de uma terceirização que se está falando, portanto. E se a prova dos autos (e só nesta hipótese e não de forma automática ou por um “capricho”) conduzir à conclusão de que esta contratação se deu para burlar a aplicação da legislação trabalhista, ou seja, que foi baseada em fraude e isto se verifica na análise probatória dos autos, compete à Justiça do Trabalho, nos termos do art. 114 da CF e com fundamento nos artigos 2º, 3º e 9º da CLT, declarar a ilicitude, reconhecer o vínculo de emprego e condenar ao pagamento dos direitos trabalhistas aplicáveis aos fatos. Além disso, dado as repercussões de ordem pública que a aplicação dos direitos trabalhistas envolve, compete à magistratura trabalhista determinar a expedição de ofício ao Ministério Público do Trabalho, para que se leve adiante a apuração das irregularidades, quando envolverem interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos, assim como ao Ministério Público, para avaliação a respeito da possível prática dos crimes de falsificação de documento público (art. 297, § 3º, II, e § 4º, do Código Penal) e de sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do Código Penal).
Outra reportagem, coincidentemente publicada no mesmo dia, no site jurídico Jota (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/analise/stf-busca-solucao-para-unificar-jurisprudencia-e-frear-reclamacoes-trabalhistas-20102023), evidencia que a situação é ainda mais grave quando o argumento para “invalidação” (já que não há um nome jurídico para esta atuação do STF) das decisões trabalhistas é o de que as empresas podem escolher o tipo de relação jurídica que terão com os trabalhadores, ou seja, com ou sem direitos trabalhistas.
Como dito na matéria:
“... os ministros afirmam que a Corte tem precedentes reconhecendo a possibilidade de haver contratação por regimes de trabalho que vão além da CLT.
(....)
Apesar disso, os magistrados do Trabalho continuam a condenar empresas que optam por um regime diferenciado e a determinar que elas paguem os direitos trabalhistas, previstos na CLT, a esses trabalhadores."
Entretanto, a Constituição Federal é expressa ao garantir aos trabalhadores um rol de direitos mínimos e não há nenhuma previsão normativa que vincule a efetividade desses direitos a uma concordância das empresas, até porque, obviamente, isto não se daria. Não à toa, aliás, os direitos trabalhistas são irrenunciáveis, são normas cogentes e expressam preceitos de ordem pública vinculados, inclusive, à Seguridade Social e a função social da propriedade, da livre iniciativa e da ordem econômica.
Não bastasse, conforme anuncia a mesma reportagem, sob a presidência do Ministro Luís Roberto Barroso a situação tende a piorar, vez que se prenuncia a casuística e seletiva “criação” de mecanismos específicos para intervir de forma ainda mais incisiva na atuação da Justiça do Trabalho (o que nos remete a uma lógica explícita de Estado de exceção).
Ocorre que, concretamente, se a magistratura trabalhista, diante das provas produzidas nos autos, identificando a fraude, não declarar as ilegalidades verificadas, não reconhecer o vínculo empregatício e não condenar o reclamado ao cumprimento da legislação do trabalho, estará, aí sim, descumprindo o seu dever funcional.
Mas, como se extrai do próprio conteúdo das reportagens mencionadas, juízes e juízas do trabalho estão respeitando as leis e a Constituição.
É hora do STF, em matéria trabalhista, fazer o mesmo!
São Paulo, 22 de outubro de 2023.